quinta-feira, maio 18, 2006

A NOSSA FALA - LVI - CARCHANTADA

Ouso dizer, sem receio de represálias, que o EX-LIBRIS da nossa aldeia podia e DEVIA SER o Lagar da Lameira.
Quase me nasceram lá os dentes: se não os de leite, pelo menos os definitivos. Com toda a certeza.
Aquele lagar de três varas era um dos três que moíam na aldeia. Para além desse havia o da D.Carminda, ali mesmo onde hoje é a casa do Roupinha Afinéda, acima da casa dos Soalheiros, frente com a casa do professor Marcelo e da ti Catrina Casaca, velhaca como as cobras. Nosso Fernando trabalhou lá um bom par de anos. Havia ainda a FÁBRICA do professor Leitão, a única já electrificada com moinhos de pedra a rodarem sobre superfície metálica e prensas para a espremedura. O lagar da lameira e o da D. Carminda eram integralmente manuais ( se bem que este trabalhasse às vezes com motor Diesel) e a moagem era feita por juntas de bois.
Dediquemo-nos ao da Lameira, que foi aí que eu privei com os lagareiros. Ainda recordo alguns: os velhos Menas, uma família inteira, o velho Manuel, o Chico de andar apressado. Moravam ali a meio da lagariça, paredes meias com a minha bisavó paterna, Isabel, perenamente descalça, pisava silvas como nós andamos em cima de azulejos. Era a mãe do meu avô que dizia que nunca tinha conhecido o pai. Por causa disso não vamos culpar a minha "DESAVÓ". Ensinou-me ainda muita coisa, sobretudo em matéria de ervas de campo e outras que tais: sabeis o que é o LENTICÃO? e o MIJACÃO? sequer ouvistes falar no CU DE GALO, fruto comestível, agre e doce, que ainda hoje "rabusco" por essas baixas vinhateiras? sabeis? Eu sei. A minha DESAVÓ ensinou-me e eu aprendi. Não sou como aquele velho professor que se queixava do ensino ministrado nas faculdades... Instado sobre que dizer da sua aprendizagem nessas mesmas escolas sai-se airosamente com esta: "eles ensinaram-me mal, mas eu aprendi bem". MAINADA!
Assim se passou comigo.
Outros mais recentes que felizmente ainda pisam as ruas de Aldeia- O Zé Lopes, rapaz do dia de Karraio, o Tonho Mota, que já abalou para a Tapada dos calados, o Tonho Lopes, irmão de Zéi, e claro, o inefável Alberto, senhor do Galante, boi de cobrição, que entrou no enredo do desacorçoado.
Voltemos ao lagar senão ainda me dais alguma CARCHANTADA porque escrevi um título e vadio por outras paragens.
O edifício, na sua estrutura base, pelo menos visto de fora ainda está em condições razoáveis e quase um quadrado perfeito. Entrava-se nele por um portão de lata pintado com um preto que mais parecia alcatrão, e dum lado e doutro havia um telheiro coberto, sendo que o da direita servia para armazenar a lenha que o CHAMIÇO garantia quase todos os anos, e só depois, mesmo ao lado do pocinho da água é que se entrava no lagar propriamente dito, por uma porta robusta de duas folhas. Estava sempre acessível durante a safra. Lá dentro havia dois compartimentos: o da direita tinha o pio onde os bois de Alberto moíam os "bifinhos de caroço", a manjedoira e mais ainda uma tarimba onde Beto dormia e ressonava; o lado esquerdo tinha um desnivelado onde os grandes trabalhos eram feitos: enchimento e escaldamento das ceiras; a massa era trazida do pio em gamelas de lata com duas asas que se enchiam à pazada, e onde se situava também a caldeira. A massa era espremida por sistema de varas: enormes troncos de sobreiro que acabavam num fuso com chave, tudo em madeira, dos quais se suspendiam enormes pedras que se levantavvam por meio de uma tranca que fazia rodar o fuso na chave e, assim, permitia maior aperto. O azeite corria directamente para as tarefas (enormes potes de barro) encastradas no granito. A técnica de depuração era o decante, pelo que a TAREFA que ficava mais acima tinha uma torneira de descarga que o lagareiro abria e o azinagre, às vezes com algum azeite envolvido, corria para o INFERNO, ao canto, o qual era periodicamente aliviado para a ribeira que passa mesmo ao lado. Ao canto esquerdo mais perto da porta ficava o canto do bagaço, que o velho Alcides barrigudo ia a buscar para depois ainda ser mais espremido na fábrica de S. Miguel d'Acha.Era assim o lagar.
O ZÉI do CAFÉI comprou-o, em tempos aos três sócios que nunca se entenderam muito bem, Casa Campos, Zé Manel Landeiro e Zé Carreiras...
Era assim a medidura e a respectiva poia: a casa tinha duas panelas à cabeça, e mais uma por cada nove, o lagar (melhor os lagareiros, tinham uma panela (dois litros) por cada dez, a lenha tinha litro e meio por moedura, e a água tinha meio litro por moedura. A média era de três moeduras. O restante ia para o dono da moedura que, ao tempo era de 600Kg.
Não percebestes nada já sei! Aí vai a explicação: os lagareiros eram em número de três e ainda o ganhão que tratava das juntas de vacas que moíam a azeitona no pio. Quando da medidura do azeite, o lagareiro chefe, depois de o decante ter sido bem feito de uma tarefa que recebia tudo para a segunda que só recebia o azeite decantado, media o azeite para o pote do dono da azeitona, sendo que a poia era sempre paga à cabeça.
O trabalho começava por volta das cinco da matina, o que no Inverno não era lá muito agradável. A essa hora lá ia eu a dar água para a caldeira. Era eu, a mulher do Tonho Mota e a mulher do Chquim Lavra-Miúdo. O sistema era rotativo: um tirava a água do pocinho que estava à entrada da porta maior do lagar, outro acarrejava e o terceiro despejava para a caldeira. Não havia luz cá fora (mais tarde lá apareceu) pelo que quem tirava a água do pocinho tinha que"tentear" a superfície da água e fazer o deborco do caldeiro e puxar pela corda. Acabei por combinar com as mulheres: eu ficava sempre a tirar e elas entre si acertavam quem ficava na acarreja e no despejo. Assim foi. Era um prazer acertar à primeira sem tentear a água e o caldeiro entrava deborcado no líquido. Um autêntico motor era o que eu era!
Acabada esta tarefa sentava-me à lareira da caldeira a olhar a ala ou o borralho, e, não raro, dava com cada cabeçada no ar que até parecia que me tinham dado uma carchantada na nuca.
As mais das vezes havia petisco. Aí por essas seis era o desjejum: uma lata de atum sangacho em molho de tomate, meia dúzia de batatas cozidas e sobrantes do jantar do dia anterior, uma cebola das grandes, pão caseiro em fatia de ganhão e azeite, muito azeite. Comia-se sempre à colher e o copo era só um e de lata zincada, suspenso sempre no gargalo do garrafão. Comia-se do barranhão, também ele de lata. Nunca precisava de ser lavado porque ficava sempre bem limpinho com as voltas finais que se davam com o naco do pão. Passava-se pela água a ferver da caldeira e deborcava-se ao lado da pedra até à próxima.
Às vezes havia pândega de mais requinte: bacalhau desfiado, enchido, entremeada e até caça: lebres e coelhos, que ao tempo abundavam...Pudera! Era tudo semeado, desde a lagariça e taliscas até à serra da Raposa e da Marvana, já a dar vistas para a serra de Malcata. Nada do que se passa agora: estevas, giestas e eucaliptos.
Não raro, dormia um sono assado, sentadinho ao borralho da caldeira e vinha Zé Lopes:"dou-te uma CARCHANTADA se te pões aqui a dormir. Inda pegas a maleita aqui a nós e depois vais a buscar o azeite à ribeira".
Duma vez, à noite fui eu à caça com o Mnel Chquim Alma de Sino... À caça, é como quem diz... Saímos no seu ultra famoso Cortina verde, pendurámos por baixo uma tábua, presa com arames e aí vamos para os campos da ribeira da Ceife, ali perto do velho Figueira a dar vistas para o Chico Aleixo: entrámos pela arada adentro (aquele carro era um arrasa montanhas) e, não tardou, já tínhamos uma lebre e dois coelhos, mortos à CARCHANTADA pela tábua suspensa no mais que famoso Cortina verde! E... ala que se faz tarde! Caminho de aldeia! Digo para o Alma de Sino: «Ó Mnel, um coelho destes levo-o eu para amanhã papar com os lagareiros ao fim de dar a água. Tu se queres vais lá a ter aí por volta das seis que já deve estar prontinho». Assim foi.
A panelinha de ferro deixou evaporar um cheiro a cebola e alho com folha de louro, azeite e uma malagueta e coelho bravo; antes de tirar despejou-se um copo de lata de vinho. Assámos umas batatinhas miúdas à beira do borralho, esmagámos mais uns dentinhos de alho, misturámos com sal, azeite e vinagre, murrámos as batatinhas, despejámos o coelho para a gamela que servia de barranhão, e, cada um com sua colher, atacámos ... E foi um ai!
Invariavelmente saía-se Tonho Mota: "Não há dente como o do alho/ nem peixe como o atum/ nem carne como a do c....../ que não tem osso nenhum."
Se coisa há que eu gostava que acontecesse é que este EX LIBRIS fosse adquirido por entidades públicas e se transformasse num museu do azeite. Enquanto é tempo.
XXXXXIIIIIIIIIIIIIII GGGGGGGGRRRRRRAANDDDEEEE

Parir


A questão não é parir ou não parir. A questão é aonde parir. Tal como a questão shakespeariana, parece que esta também não é de fácil resolução.

Foto roubada daqui

segunda-feira, maio 08, 2006

A NOSSA FALA LV - JAVARINO

O melhor do mundo é a canalha. E no mundo da canalha, há garotos mais javarinos do que outros. Habitualmente, até achamos piada aos mais javarinos. Aqui se deixam algumas peripécias de um javarino.

Mário nasceu de uma paixão de Verão entre o Zé Meioquartilho e a Maria Pápófigo. O caso deu o burburinho adequado aos meados dos anos 60 numa aldeia do interior, mas a coisa acabou por se compôr quando eles juntaram os trapinhos e acabaram com o falatório. Que ele era um belo rapaz e ela era uma rapariga séria, todas têm um deslize, ora essa, e não foi Nosso Senhor que disse: "quem nunca pecou que atire a primeira pedra”? Resultado: foi como que perdoado o pecado do Zé e da Maria no palheiro do Ti Ambrósio Meioquartilho, naquela noite da festa do Senhor S. Bartolomeu.

Calhou que Mário nasceu no ano em que o Zé foi chamado para a tropa. Dividido entre o dever patriótico de guerrear pela Nação na longínqua África e o dever paternal de assegurar o sustento da Maria e do pequeno, aconselhado pelo padrinho, Zé Meioquartilho hesitou pouco e, passada a Senhora do Bocesso, deu o salto a caminho da verde França. Nos 10 anos seguintes, todos os 3 meses a Maria havia de receber o suficiente para si e para o garoto. E nesse tempo todo, apenas por cinco vezes, e à sorrelfa, Zé viu o seu Márinho. Regressou de vez, já resolvida a questão colonial do país e também a questão do seu serviço militar.

O garoto cresceu pois sem a presença física do pai, o que terá decisivamente condicionado a sua trajectória e a sua personalidade. Vem nos manuais pedopsiquiátricos, mas nós, as pessoas de bom senso, também o sabemos, que a figura masculina tem a sua função praticamente insubstituível no quadro familiar. (Alguns cidadãos com certas tendências sexuais, acompanhados de outros cidadãos com certas tendências políticas não concordarão. Estarão no seu direito de não concordar. Passemos por cima da problemática, porque ela não se coloca aqui à volta da Baságueda.)

Voltemos ao Márinho. Um autêntico javarino que só tinha más ideias. Entre outras judiarias, era ele o autor - recentemente revelado - da cena do cão a ganir e com um corgalho de latas presas ao rabo que de quando em vez aparecia no adro à saída da eucaristia dominical. O truque estava em escolher um cão cujo dono fosse um católico apostólico romano praticante. O sentido de fidelidade do animal fazia o resto.

Na escola era o brigão maior, a má companhia que convencia os outros a fugir à escola para ir aos ninhos ou à marouva. Sempre que tinha oportunidade escondia a régua ao professor Tanganho, mas acabava invariavelmente por levar com ela, por via dos acusa-cristos. Na noite de S. João era sempre o que mais contribuia com vasos no adro. Bastas vezes, no tempo dos taralhões, arranjava ele uma corgalhada de passarinhos nos costis dos outros. Não perdia oportunidade de se divertir a chamar nomes à velha passarinha, ao tonho maranhão, ao jabão feijão, à chicórrela e a outros típicos da aldeia. A chicórrela era particularmente desgraçada porque não podia estender as ceroulas ao sol que o Márinho ia lá buscá-las e largava no falo do chafariz do Batoco ou no cimo do padrão do adro. As queixas das traquinices do garoto chegavam à Maria Papófigo e ela, lá ia respondendo invariavelmente: "ê no faço nada dele!"

A judiaria que mais gozo lhe dava era a de atar uma linha preta à aldraba das portas das beatas e dos ricos. Uma das maiores vítimas era o Professor Marcelo. A coberto das trevas da noite, enrolava caladinhamente uma ponta da linha a uma das aldrabas de chumbo da porta do velho professor primário, desenrolava cuidadosamente até à esquina traseira da Igreja e, puxava. Numa das vezes, já o madeiro jazia ao lado, a mirrada esposa do venerável mestre aposentado veio de robe cor de rosa e pantufas ver quem batia e, não vendo ninguém, voltou a fechar, julgando ser o vento. Mal deu 2 passos, a aldraba fez-se ouvir de novo. Depois de constatar que não havia ninguém do lado de fora e que o vento mal soprava, começou a rezar baixinho uma Ave-Maria. Passou a Pai-Nosso e em altavoz quando, mal fechou a porta, o batente voltou a cair com estrondo na almofada de metal. O Senhor Professor, para desgosto da esposa, não era homem de fé, por isso, atirou de lá um “qu’arraio de porra é essa mulher, atão isto são horas de rezas, inda por cima em altos berros?” A aldraba insistia e a senhora acompanhava com o Pai-Nosso ainda mais alto. Irritado, o Senhor Professor levantou-se do velho cadeirão e berrou autoritário:

- Cala-te já mulher do diabo!

Apercebendo-se do motivo do terror da esposa, abriu a porta vigorosamente e praguejou para fora:

- Mas que coisa é esta, homem. Eu não acredito em fantasmas, eu rebento é já com o filho da puta que aí está.

Quando tal ouviu, no escuro da esquina da Igreja, Mário sentiu a noite ganha. Foi com prazer tenso que ele puxou a linha mal o velho Marcelo fechou a porta, na ânsia de o ouvir de novo a praguejar. Puxou repetidamente a linha, até que o professor primário reapareceu de caçadeira na mão e lança dois tiros para o ar, enquanto soltava aos berros as imprecações mais ordinárias, fazendo com que a esposa corresse a buscar o terço e se pusesse a rezar ainda mais e com mais fervor, pedindo perdão a Deus pelos desmandos do marido.

Quando sentiu que o café da Rosa esvasiara e o maralhal vinha a saber do que passava, Mário botou a fugir pela caminho abaixo, deu a volta pelos cabeços e entrou no café da Rosa sorridente, mas sem contar a ninguém que era ele o provocador do alvoroço. Havia de repetir a cena mais algumas vezes, quase sempre com o mesmo resultado, até que foi apanhado e metido na garagem do Regedor Xico Sarapião durante uma noite.

Feito o exame da 4ª classe, como repetente, ainda seguiu para o colégio. No Carnaval já quase tinha atingido o limite de faltas, ainda assim, com tempo para infernizar a vida ao velho Professor Barbosa. Entre outras, a sua maior maleita era a asma. Sabendo que ele não suportava o pó do giz, Márinho deleitava-se a bater vigorosamente a esponja no quadro de ardósia, sempre que ia haver aula de Físico-Química, fazendo com que o intervalo se prolongasse por mais um quarto de hora. Depois de dois anos sem aproveitamento e de muitas e variadas javarinices, a mãe de Márinho concordou enfim em que ele abandonasse os estudos e iniciasse a carreira da sua vida: trolha.

A última travessura plagiou-a do pai, corria o Verão de 85, já não no meio da palha do palheiro do Ti Ambrósio Meioquartilho, mas no banco de trás do seu Ford. Acudia a cachopa por Françoise, e era a primogénita do Mnel Jquim Caipila, com quem Zé Meioquartilho tinha partilhado quarto e cozinha em Paris de França nos primeiro anos da sua diáspora. Na entrada do Ano Novo, dispensado do serviço militar por mór do pé chato, partiu Márinho para a Gália. Por lá ficou. Menos javarino, mais homem.

quarta-feira, maio 03, 2006

Definitivamente

1.
Na sua última noite, Abril oferecia uma brisa suave e uma temperatura fresca de Primavera. Àquela hora, ligeiramente adiantada, o céu nocturno mostrava-se limpo e era dominado, no alto sul, pelo Leão, deixando já perceber uma ponta do Escorpião que havia de subir ainda mais um pouco. A Lua ia no segundo dia de crescente apresentando-se com um fiozinho de luz que apanhava a sua Antártida e crescia, pelo lado oriental, até um pouco mais acima do equador. Pareciam estar reunidas as condições propícias para um concerto de excelência e eu decidi que não o podia perder. Tomei o caminho da serra, em direcção à escuridão, fugindo às luzes e aos ruídos. Acomodei-me o melhor que pude, sentado no barroco e apurei os ouvidos. Por esta época, todas as noites, toda a noite, os concertantes mostram o que valem.
Contei 7, cada um na sua árvore, cada um no seu território, cada um com o seu trinado, cada um com a sua partitura, que nunca se repetia. Definitivamente, confirma-se que como o rouxinol, ninguém canta.


2.
O dia apresentou-se bem disposto de sol e de vento. Pouco habitual em dia de Nossa Senhora do Bom Sucesso. À passagem pela Baságueda, parei um instante, só para observar como a água deslizava arrebitada mas serena. Saudei-a e segui para o cabeço onde o arraial fervilhava de vida, como em nenhum dos outros 364 dias do ano. Pelos campos ao redor, por entre azinheiras e estevas espraivam-se os novos burros . Não estavam engalanados com o branco e amarelo das giestas floridas, tão pouco de roxo do rosmaninho. Ao lado da tenda dos ipod’s, tamagoshi’s e leitores de mp3, vendiam-se cabrestos, albardas e cilhas. Ao lado da romaria, a feira, ou seria ao contrário? Definitivamente, a timidez da romaria cedeu à arrogância da feira.

quinta-feira, abril 27, 2006

A NOSSA FALA - LIV - DESACORÇOADO

Já uma vez vos falei do fenómeno linguístico que consiste na lei do menor esforço. Aqui está mais uma prova. Correctamente, a palavra deveria ser descoroçoado - que significa, nem mais nem menos com o coração despedaçado/desfeito /desalentado /sem forças - mas isto daria muito trabalho de dobragem de língua ao zé povinho que prefere, naturalmente, o desacorçoado. Para o povo, em regra, o que serve já é bom, e desde que se faça entender, não precisa mais. Ao contrário de muita gente da nossa praça que se farta de falar e não diz nada de jeito. Só desejo, que no caso vertente, a nódoa não caia no melhor pano... Adiante que se faz tarde.
Tudo começa manhã cedinho: aí obra de umas cinco da manhã. PASSA CULPAS, vai aos gravatos à meda da lenha, apicha um palito a uma pinha, faz uma escaramuça por cima da ala com os gravatos, põe mais alguns, ajeita o pau grosso que tinha ficado da noite anterior, acrescenta uns tocos e umas cepas, desce as cadeias da chaminé, pendura a panela de ferro, já com água de nascente que apanhara na mina, bota para dentro uma gamela de feijão frade que a LIBRA previamente lavara e deixara de molho, verifica a ala, arreda uns paus mai grossinhos, diz à mulher que já volta e sai a caminho do PUTA MALUCA que morava pra lá do ABADE, que lhe dava passagem"por aquilo que é meu", salta o muro do caminho das portelas que vem das oliveiras de melão, arrima à eira, engata na vereda que dá à casa do Puta Maluca e endireita para o palheiro, onde vira uma réstea de luz que rebrilhava da torcida da candeia de azeite que a PATA GALHANA regulava com um alfinete, com que segurava a saia de fora, "por mor de poupér, que o azeite custa a ganhar". Isto porque o velho registo de aumento ou redução da torcida já tinha os dentes do carreto remoídos e não puxavam o trapo. Chaminé já tinha desaparecido e sempre recomendava ao PUTA MALUCA: «põe a candeia em sítio firme e longe da palha e dos cornos da bezerra, tu vê lá !nom nos desgraces» . O PUTA MALUCA fazia que não ouvia.
Bom... O PASSA CULPAS chega-se à porta do palheiro, e, para não assustar, nem o PUTA MALUCA nem a bezerra, que por ser nova, ainda não se acomodara à nova pensão, espreita pela fisga entreaberta e - que vê ele? - o PUTA MALUCA em cima do balde do desaguo, a pôr-se na bezerra. Assim mesmo! A bezerra estava saída e o PUTA MALUCA que já não se lembrava de ir à PATA GALHANA, desacorçoadinho de todo, vem-lhe assim uma vontade e ....bumba! toca de saltar à bezerra...
PASSA CULPAS, fica apardalado, esfrega os olhos, confirma o facto, finge que tosse, mas o PUTA MALUCA, no frenesim do acto não o ouve... PASSA CULPAS entra e vê a cara de prazer do PUTA MALUCA: "Karraio estás a fazer"?...e o PUTA MALUCA: "Dá-lhe lá um beijo na boca que eu num chego lá".
Acto cumprido, Puta MALUCA sentiu o pecado e sai-se: « a puta estava mesmo desacorçoadinha de todo; assim já sei que a posso levar ao Alberto daqui nada» e o Passa Culpas: «Tu é que é que estavas desacorçoado». " E tu num te estavas a pôr na chibeta amarela, ali ao pé do barroco do Rainho, quando a tua se foi à missa? Pensas que num vi? Atirou o PUTA.
Houve silêncio, que o caso não era para menos , mas logo se sai o PUTA: "num me vieste a ver a saltar à bezerra! Vamos ali a malhar um tinto e já me contas... chega-me aí essa paveia, tira-lhe o nagalho e bota aqui na manjedoura!
Lá foram os dois, a torneira da pipa chiou, o copo deborcou-se PASSA CULPAS pede a grade emprestada ao PUTA MALUCA e dirige-se à mulher: "EH cachopa! arranja-me aí cem mil réis que tenho que ir a chegar a bezerra ao boi do Alberto antes que lhe passe o cio". Lá se foi ela à bureca onde guardava o dinheiro dentro duma lata por causa dos ratos, tira os cem mil réis e recomenda:"tu vê lá se o boi enterra bem a bezerra, pega-lhe na sovela com a mão e encatrafia-a assim comédado e diz ao Alberto que, se não pegar, o boi, à próxima, lhe dá o salto sem pagarmos, vê lá!" PUTA MALUCA rosnou e partiu caminho de aldeia.
Alberto, ao tempo, moía a azeitona no lagar da Lameira e quando o Sol começou a clarear lá aparece o PUTA MALUCA, chega-se à orelha do Alberto: " Traz lá o boi que a minha bezerra está desacorçoada de todo. Já a experimentei lá em casa, no palheiro, e nem se mexeu". Alberto, invariavelmente bêbedo:" agora o boi está no acarro, tens que esperar" e vira-se para o TONHO MOTA: «Ó Tonho aqui o Puta Maluca ensaia as bezerras antes de as trazer ao boi. Se a mulher o vê a cavalo na bezerra é capaz de lhe perguntar: "Ah! queres uns cornos, queres,? trocas-me por uma vaca? vê lá se te troco por um burro!" E riram-se. PUTA MALUCA vai pela vara com aguilhão e queria ferroar o Alberto : «Está quieto senão não te cubro a bezerra! «É a tua sorte» diz o Puta.
Acabado o acarro, bezerra presa na parede ali ao pé do Posto de transformação, Alberto traz o Galante, e quando lhe cheira a bezerra saída tira a língua para fora, quase aventa com Alberto e nem houve preliminares. Foi tiro e queda.
PUTA MALUCA assomou-se, viu que estava bem encavado e foi um ar que lhe deu.
«Eu num te disse que ela estava desacorçoadinha de todo? Eu bem sabia.»
Os cem escudos mudaram de mão e Alberto, para fazer as pazes, lá vai com o PUTA MALUCA a beber o alboroque àquilo do Cavalheiro. Só podia ser assim.

terça-feira, abril 25, 2006

Cravo vermelho SEMPRE

Individualmente, uma pessoa aprecia relembrar algumas datas importantes na vida. Não pretendo ir a determinados pormenores como o dia da primeira comunhão (só me lembro de levar uma fitinha branca, mas tenho ideia de que foi bonito), ou o dia da conquista da primeira namorada (quer o dia quer a cachopa estarão algures numa pasta oculta do meu disco rígido, deixa-as estar) ou até o dia da primeira vez (não me lembro o dia certo, mas recordo a circunstância o que vai dar ao mesmo). Mas há outras datas que uma pessoa já tem bem assinalado no mapa mental dos eventos importantes e dignos de comemoração, quanto mais não seja porque a dita comemoração, invariavelmente, mais não é do que um pretexto para uma comezaina (uma excelente forma de comemoração, convenhamos). Ele é o aniversário propriamente dito (o da esposa convém ser mais importante do que o nosso), o de casamento, o dos filhos... Depois não desdenhamos as oportunidades de outros calendários, como o dia da sementeira das batatas, do Senhor S. Bartlameu, da vindima, da matança do porco, do Natal, dos piqueniques na Senhora do Incenso, e na Senhora do Bom Sucesso... Alimentando-nos de pipis, moelas, filhós, ovos verdes e pataniscas, alimentamos e reforçamos a nossa identidade individual, familiar e até nacional.

É aqui que entra o 25 de Abril. A trajectória da nossa identidade nacional teve ali um acerto. O mais decisivo acerto do Século XX, a par do fim da monarquia, atrevo-me a defender.
Como em relação a outros acontecimentos, existem simbolos intrínsecamente associados, existem protagonistas sem os quais o acontecimento não o teria sido. Refiro-me ao cravo vermelho, e aos capitães de Abril.

Isto só para declarar solenemente que não apreciei ver alguns senhores deputados da Nação prescindir do simbolo de Abril, incomodou-me que o Presidente da República, ele, o responsável mór no que toca a identidade nacional, ostentasse o seu desprezo por um simbolo com o significado do cravo vermelho. Não apreciei igualmente ver a passividade dos senhores deputados da direita parlamentar na referência que o Presidente da Assembleia fez aos capitães de Abril.

Aproveito a oportunidade que este blogue me dá para declarar solenemente o meu apreço pelo 25 de Abril e o cravo vermelho. Espero que este singelo acto seja suficiente para me distinguir dos senhores deputados da direita parlamentar e do Senhor Presidente da República Portuguesa, no que concerne à sua valorização e ao seu reconhecimento (do 25 de Abril) para a identidade nacional.

(Ah! também gostaria de declarar solenemente a minha divergência para com o Sr Alberto João).

quinta-feira, abril 13, 2006

A NOSSA FALA - LIII - ZARANZUM

A Páscoa está à porta.
Com ela vêm as festas populares, manta no chão, pastelinho de bacalhau, frango corado, arroz de miúdos, salada de alface, ovos verdes, pão-de-ló, azeitonas retalhadas, queijo, tinto com fartura e pão cozido em forno a lenha, sem fermento mas com o velho crescente - ora arrecadado da cozedura anterior, ora, mais fresco, requerido que fora da vizinha ou amiga que cozia ontem e eu amanhã-.
Que pensais vós? Era mesmo assim. Até mais: algumas vezes fui eu com tenaz na mão ali à casa da ti Antónia Costa , onde agora é um café e antes fora a casa do Carradas que matou o Vigura com uma gadanha (das de agadanhar, nanja daquelas da sopa, também chamadas de conchas) - modernices - , fui eu, dizia, de tenaz na mão, a pedir uma brasinha com que se ateava uma pinha e logo a ala com agulha de giesta ou vide bem seca: assoprava-se com toda a força, que, abano, ou não havia, ou, não convinha, porque espalhava a brasa e era perigoso. A pinha ateava - ou a giesta - e pronto! poupava-se um fósforo. Assim mesmo: poupava-se um fósforo (que ao tempo se chamava pálito). Não era como agora!
Que vejo eu? Arreparai comigo: a malta é agora mais banhada do que nós éramos - não quer dizer que seja mais asseada - ; tomam banho com água do esquentador, quase a ferver, nunca fecham a água e demoram quase uma boa meia-hora com a água a cair-lhes no lombo... Coisa impensável no meu tempo de púbere/adolescente/jovem: aquecia-se no fogão a gás, ou antes, nos velhinhos fogões a petróleo, desentupidos por agulha com arame simétrico, muito fininha e haste de lata reles, regulador de entrada de ar no bojo e êmbolo de pressão na lateral, encimado por uma espécie de trempes encaixadas em orifícios com o feitio de pé de galo e uma grelha que permitia que nos recipientes de diferente diâmetro aproveitassem ao limite o calor proveniente da combustão que não era instantânea, já que, antes, se tinha de deitar numa espécie de patena, um pouco de petróleo azul, que aquecia a cabeça do fogão e só depois é que, quando estivesse ao rubro, se fechava a entrada de ar e se dava à bomba para que o fogão desenvolvesse. O regulamento era feito pela abertura que permitia a entrada de ar. ( Vistes bem o tamanhão deste período ?) -Era assim que escreviam o Alexandre Herculano e também o Imannuel Kant-.
Quem tinha dois, fazia um figurão: nas festas da Srª do Almortão, em Idanha-a-Nova, levava um e isso até possibilitava a feitura do caféi, em pucheirinho de barro, areado para a festa, e assentava com tição, roubado às brasas da assadura do pito ou da entremeada, atirado ao rubro para dentro do pucheiro.
Espetava-se-lhe uma dose de redina bagaceira, rija como um corno, davam-se dois arrotos, as mulheres ficavam arrumar os cestos e a malta ia correr as tendas. Olarilolela!
Casais a percorrer tendas de festa de braço dado era coisa pouco habitual.
Compra obrigatória era um colar de pinhões atravessados por uma linha enfiada em agulha fina. Páscoa sem amêndoas também não fazia sentido, só que, às vezes os velhotes compravam das mais baratas, espécie de bolas redondas com açúcar por fora e muita farinha por dentro: uma purga era o que era.
Havia ainda as santinhas feitas de uma pasta açucarada com a imagem da santa colada e que se comprava junto à porta da capela. Vinha suspensa de um baraço que se punha ao pescoço. Outras compras não vêm aqui ao caso porque já estão poluídas das modernices...
Agora vai tudo de carro ou de camioneta mas antigamente não era assim: a malta preparava o jerico com manta nova por cima da albarda e entre as duas - a albarda e a manta, - metia-se uma pouca de erva meia murcha que serviria para a merenda do animal, regra geral bem desaguado em casa com farelo ralado em caldeiro de água limpinha. Por cima, os alforges em cujas bolsas se metiam as iguarias para o pasto dos maganos e evidentemente cinco litros do verdadeiro. Os mais abonados, com carroça, engalanavam-na com mimosas e outras flores garridas e lá iam a cavalinho sentados no banquinho atravessado. A maioria ia a pé.
Parava-se em sítios estratégicos, tocava-se o pífaro, o realejo, um armónio ou concertina, uns adufes ou pandeiretas, às vezes até umas carchanolas, passava-se a borracha pela malta, dançava-se uma moda ou duas e retomava-se a marcha.
Chegados à festa, procurava-se uma azinheira, oliveira ou sobreira, juntavam-se os familiares ou amigos, punha-se a erva ao burrito atado com rédea meia larga e ... ala para o arraial!, visita à capela, esmola na caixa, acendimento da vela, e... tasca ou tenda até à hora de missa.
O almoço só depois desta e da procissão.
Depois do almoço, com a saudável partilha dos petiscos e intercâmbio entre a vizinhança mesmo que não fosse conhecida, mais uma volta às tendas, arrumar a trouxa, mais um copinho para a assossega e volta para casa.
Os netos esperavam os avós e alguns mais brincalhões atiçavam a canalha:" deixa-te aí estar sentadinho que o teu avô passou pelo curral a deitar a viandita ao bácoro e já te traz a prenda"; o garoto: «sabe o que é?» « é um zaranzum atado numa guita; zune como a puta que o pariu; zune mai ca um enxame de abril!» O garoto corria para a mãe todo contente: «ó mãe o avô traz-me um zaranzum atado numa guita! «Rais o palirem, atão tu inda cais nessa? tu no sabes, meu cagão, que um zaranzum atado numa linha é uma tábua com um buraco presa a um baraço das sacas?»
Lá se ia o contentamento do garoto... Era assim.
Agora, boa boa, foi a do velho Refe que, ao chegar à festa, encontrou o seu Mário deitado no chão e sai-se com esta: «Eu cando vi o mê Mário no chão logo disse: ou ele caíu, ou alguém o tombou! Com toda a certeza, ele sozinho no era capaz.»
Grande lógica esta do Tonho Refe.
Não ajudava a ponta dum corno na preparação da merenda para as festas, mas quando lá entendia que estava na hora da abalada, mostrava má cara, ralhava e, invariavelmente, saía-se com esta: « Não há nada como o combóio: quem está, monta; quem não está, fica. Mulheres dum corno tanto demoram!
Desgraçado foi ainda o Vale Quem Tem que prometera ir de Monsanto, donde era natural, até à Sra da Póvoa, sempre de mãos postas e sem falar. Não lhe passou pela cabeça que podia precisar de mijar. E precisou...
No ano seguinte a mesma coisa, mas agora já podia falar porque essa parte da promessa já a tinha cumprido. Sentou-se nas guardas da ponte a chorar e a Prazeres viu-o, assim a chorar e precurou-lhe a razão: «já o ano passado deixei de cumprir a promessa por via de uma mijadela Prometi vir sempre de mãos postas e agora torna-me a dar vontade de mijar e se deslaço as mãos lá se me vai a promessa outra vez
Prazeres, condoída, olhou à volta e, não vendo ninguém que batesse com a língua nos dentes, disse: "desça ali em baixo que eu desaperto-lhe a portinhola e vossemocê alivia-se».
Vale Quem Tem nem queria acreditar! e a Prazeres: "quer ou não"?
Lá desceram e Vale Quem Tem suspirava de alívio e atreve-se: «já agora, dê-lhe lá uma abanadela que ele está habituado a ela»
Fosse como fosse Vale Quem Tem casou com a Prazeres. Sou compadre deles.
Vamos à festa?
Um XXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIII.

segunda-feira, abril 03, 2006

A NOSSA COMEDURA - VII - PASTÉIS ( BOLOS) DE BACALHAU

O bacalhau é, por excelência , o noso peixe. Quando digo nosso, digo dos portugueses. Não vamos discutir por causa de um filho malcriado, que, tendo vivido mal o complexo de Édipo, bateu na mãe, a ponto de lhe fazer uma guerra;... se calhar estaríamos melhor como espanhóis. Se calhar, não.... Mas, já nada é como dantes. Adiante, que não foi para isto que aqui cheguei.
Festa ou excursão que se preze apresenta sempre pastelinhos de bacalhau.
Vamos ser eficazes. O tempo urge e, ou a receita entra a tempo ou continuais a mamar batata por bacalhau em bolinhos...
Exigências:
1 Bacalhau do verdadeiro: de seca amarela de preferência, bem demolhado. Duas mudas, ou três, de água, de pele para cima e em água fresca o mais que puder ser. Sempre.
2-Batatas das que vêm da terra no tempo que é dado. Nada dessas parvoíces de batatas lavadas e/ou batatas novas que se esfarelam como castelos de areia. Bem descascadas, limpas de resíduos de talos, bem lavadinhas e inteiras. Nada de abrir batata ao meio.
3- Muita e viçosa salsa, lavada, posta a secar e migada comédado! Pois! Vós sabeis.
4- Ovos frescos, varáveis em quantidade conforme os pastéis que se façam.
5- Cebola da branca - evitar a roxa e mais ainda a espanhola, fechada como casulo - a cebola quer-se solta, a tender para o doce e nada daquela cebola apertada dos espanhóis. Espanha tem muita coisa, mas, grande parte da que nos aparece no mercado, vale pouco. De bom têm pimentos, pimentada/pimentão e pouco mais.
6- Alhos, esmurrados primeiro, depois bem esmagados com a lâmina de uma faca grossa em cima da tábua de cozinha. Aproveitar bem os unguentos. Nunca esborrachar e/ou migar o grelo. NUNCA.
7. EM CASO DE NECESSIDADE UM POUCO DE FARINHA SEM FERMENTO E UM CHIRRICHICHI DE VINAGRE PARA QUEM GOSTE DESTE PALADAR NOS PASTÉIS, O QUE NÃO É O MEU CASO. PRESCINDO DO VINHO AZEDO.
8- Um tacho, de preferência em ferro fundido, com água, em lume médio, onde se colocam as batatas inteiras e descascadas e, por cima, no mesmo tacho e água, o belo bacalhau com a pele para cima. Deixar cozer o tempo necessário, escorrer de imediato, retirar o bacalhau, fazer um semi-puré das batatas com garfo -nada de varinha mágica -, meter a mão, conferir se não há grelos esquecidos, desfiar e pelar o bacalhau À MÃO, envolver com colher de pau e combinar, à mão, de forma a conseguir uma massa mais ou menos homogénea.
9- Calcular o número de ovos necessários para fazer a ligação, batê-los, envolver à mão na massa, misturar os alhos bem esmagados, a salsa bem segadinha, conseguir uma pasta solta sem ser líquida, deixar assentar. Se for necessário -estritamente- um pouco de farinha sem fermento para unir e absorver algum excesso de líquido.
10- Deixar repousar aí obra de um dia, ou pouco mais ou menos, tendo o cuidado de ir remexendo a pasta por forma a que os ingredientes se combinem.
11- Aquecer bem o óleo (em sertã ou frigideira que permita a flutuação dos pastelinhos) - que deve ser adequado à fritura a elevada temperatura, para evitar gordura entranhada, deve ser substituído cada três frituras e nele devem flutuar alguns cascarões de ovo para evitar o aparecimento de espuma e consequente desajuste na mexidela
12- Fazer os pastelinhos com a ajuda de duas colheres - obviamente o tamanho da colher determina o tamanho do pastel -; preferi as medianas: o pastel frita melhor, mais depressa e não ensopa.
13- Retirar da fritura depois de virados no óleo quente para um pano/papel absorvente e só por fim colocar na travessa de apresentação.
14 - Degustar e conviver.
(Como reparastes não se fala em sal. O bacalhau é, por cultura, peixe conservado em salga. Tende cuidado. Se for necessário adicionai à massa sal fininho, de mesa.)
Bom apetite. Acompanhai com bons amigos e vinho de uva do bom - tinto ou branco - é indiferente.
Xi e boas festas.

quinta-feira, março 30, 2006

A NOSSA FALA - LII - AVIAR A VIDA

A vida dá muito que pensar. Cada um pensa-a nos momentos e nos locais que escolhe ou dá mais jeito. Mas há um momento que me parece mais ou menos universal para pensar na vida: é quando estamos a aviar a vida. Mesmo considerando que as condições de exercício do acto têm vindo a evoluir no sentido de maior comodidade e conforto, a verdade é que, a solenidade do mesmo se mantém, aconteça ele no recato da divisão aquecida, com azulejos azuis decorados com motivos marinhos, tampa amolfadada, etc. como na largueza do pinhal, acocorado debaixo de uma giesta de 5 anos. Consoante o ambiente, há quem goste de ler, de fazer palavras cruzadas, de ficar a ouvir os passarinhos, ou quem, simplesmente se entregue à reflexão, que é como quem diz, a pensar na vida

Muitas ideias surgem nesse momento, desde que praticado em regime de “slow outfood”, se é que existe o termo, sem calhar não mas, pese embora o estrangeirismo do qual se pede perdão, o que interessa é que se entenda a ideia. Por exemplo, é perfeitamente plausível que DaVinci estivesse a aviar a vida e a olhar-se ao espelho quando decidiu pintar aquele sorriso na Mona Lisa. Nessa perspectiva, a tese do auto-retrato ganharia consistência, ou seja, aquele sorriso enigmático que tantas questões tem suscitado, aquele esgar de prazer que se adivinha naquela face, mais não seria que a expressão de DaVinci a aliviar-se das lentilhas do almoço. Não menos plausível é a hipótese de que Isaac Newton estaria a aviar a vida debaixo de uma macieira bravo mofo quando se desprendeu uma maçã e caprichosamente lhe bateu na cabeça. A percepção da força gravitacional poderá ter surgido a partir da maçã, mas não custa nada aceitar que poderá ter ganho mais força quando Newton se congratulou por os seus dejectos jazerem em terra e não flutuarem. Quem me diz a mim que o próprio Darwin não terá germinado mentalmente o evolucionismo enquanto aviava a vida num ambiente tão profícuo à reflexão como as Galápagos. E Einstein? A inércia da energia, a fórmula do e= mc2, não poderia perfeitamente ter sido como que revelada num momento de reflexão específico como este que agora estamos a abordar aqui? Outros exemplos se poderiam conjecturar, mas não quero abusar.

Permito-me um último pensamento. Provavelmente, a maior invenção associada ao acto, é bem capaz de ser a do papel higiénico. Seguindo a lógica das plausibilidades (!), ao inventor dessa insignificância poderá ter acontecido algo semelhante ao que sucedeu ao Jabão Feijão. Era ele garoto e, sempre que podia, no Verão, juntava-se ao Armando Cabeça Grossa, ao Tonho Espanta Mulas, ao Fcisco CáVai e ao Zé Caga e Tosse e lá iam todos nadar para o tanque do Dr Amândio, espécie de piscina tosca sempre com água porque alimentado por uma mina. Ao lado do tanque crescera uma imponente figueira maranhoa que a canalha utilizava como prancha de saltos para a água.

Um dia, se calhar por via do efeito dos pirolitos já ingeridos e dos dois discos plenos de feijões frades e pimentos assados e salada de tomate que tinha emborcado ao almoço, para acompanhar meia dúzia de sardinhas – ementa desaconselhada para um garoto de 10 anos -, deu ao Jabão Feijão uma caganeira repentina e imparável. Calhou bem não ter que baixar nem calças nem calções de banho, que naquele tempo não se usavam, porque a canalha nadava sempre incoura. Aviada a vida, que ficou de imediato muito mais radiante e colorida, preparava-se para saltar de novo para o tanque quando o Espanta Mulas o avisou:
- Ai de ti qu’entres na água sem limpares o cú.
À volta dele só junça e outras ervas. Já algumas vezes se tinha socorrido de outros materiais como pedras, mas ali só havia pequeninas. Folhas de couve, também já tinham sido muito úteis. Mas o que ele mais gostava de usar era folhas de eucalipto jovem, por causa do cheiro, só que ali não havia nenhum. Ah!, espera aí! as folhas de figueira são verdinhas e largas, descobriu ele, de repente. E vai disto, 10 folhas de figueira maranhoa passaram pelo rabo de Jabão Feijão. Ainda não tinha chegado à água e já ele começara a sentir um prurido anal que rapidamente se tornou em ardor forte. Os outros observaram perplexos uma cena que, noutro contexto e com testemunhas mais crescidas, haveria de arruinar a reputação do Jabão Feijão: um garoto completamente nu agarrado às nalgas esfregando vigorosamente o ânus com a mão direita enquanto dava saltinhos e gritinhos, alguns a atingirem as raias do histerismo. O alivio só chegou dentro de água.

Jabão Feijão ainda hoje deve recordar o episódio, a partir do qual passou a nutrir uma enorme admiração pelo inventor do papel higiénico. Até nós, que pelos vistos, nunca tivemos o doloroso mas enriquecedor conhecimento empírico fornecido pela utilização de uma folha de figueira maranhoa (ou coriga, ou pexixota, ou abêbera) na nossa higiene anal, igualmente lhe devemos estar profundamente agradecidos.

Podereis perguntar: mas ó karraio, qu'arraio de conversa é essa? a que propósito é que isso vem? Bem, há momentos e locais em que uma pessoa se põe a pensar na vida…

domingo, março 26, 2006

A NOSSA FALA - LI - CANCHAL

Hoje apetece-me falar convosco de valores. A afirmação dos valores foi desde sempre questão polémica. Sem grande detenção no assunto inclinemo-nos já para uns contornos bem definidos: os pais tendem naturalmente a pensar que os valores em que gravitam são também o Sol em torno do qual os seus descendentes devem orbitar. Esquecem-se que os valores transitam, que os novos têm outras apetências, que os tempos se alteram, que o mundo oferece opções, situações e problemas que não páram, que as idades são diferentes, enfim, que sei eu?... Veja-se só a título de exemplo que os nossos avós e até os pais de grande parte dos que nos lêem viviam com a prática da poupança. A ordem era gastar o menos possível e amealhar o máximo. Confundiam poupança com economia, diremos nós, mas o que é facto é que essas poupanças permitiram aguentar o país e autorizar o António que morreu, Oliveira que secou, Sal que se derreteu e Azar que acabou (?!) a dizer: orgulhosamente sós. Essa é que é essa !
Nessa altura o país não importa e agora nem se importa.
A malta hoje vive numa ambiência de consumismo desenfreado em que se disputa o mais moderno e passageiro, a marca mais na voga e se deita para o lixo o ainda recuperável.
Já ninguém passaja meias, nem bota remendo em calça, mete palha em enxerga, aproveita resto para vianda de porco, nada, vá!.. Os lixos estão permanentemente atestados de coisas ainda valiosas.
Não há dúvida os valores mudaram.
Em tempos tive conhecimento de um trabalho de campo de investigadores, que perguntavam a crianças entre os 11 e os 13 anos, o que é que elas mais queriam. Invariavelmente as respostas cairam sobre vivendas com piscina, dois ou três carros topo de gama, viagens em volta do mundo, dinheiro com fartura, isto é, tudo o que levasse à boa vida. Nem um considerou o trabalho como um valor, tão pouco a saúde ou a família, mesmo a solidariedade e a paz! Incrível! Mas foi assim mesmo. O mundo virou-se: já nada é como dantes!
NÃO! não sou saudosista do passado. Escrevo com Sophia:"saudades, tenho-as do futuro"!.
Vem tudo isto a propósito de uns valores de que, calhando bem, grande parte de vós nunca ouvistes falar e muito menos tivestes o ensejo de viver ou compartilhar.
Era eu moço, havia algumas rádios piratas, algumas mesmo esporádicas e que emitiam de sítios imprevisíveis e alterados para não serem apanhados nas malhas dos esbirros guardadores da República. Havia sobretudo a Rádio Moscovo e a rádio Argel. Ouviam-se muito mal nos rádios caixote e mesmo nos de FM. Eu ia ouvi-los para o CANCHAL do alto da estrada, ali, paredes meias com o depósito da água a meio caminho para Aldeia de João Pires. O silêncio era religioso. apenas o Nosso Sargento - amigo que há muitos anos não vislumbro - um abraço para ele - tirava fotografias, em pose, à lua... fotos fantásticas, que depois passava a slide e que encantava na sua sucessão. Um espectáculo!
Não era este todavia o CANCHAL mais famoso ali da área. Esse lugar era ocupado pelo canchal da nora, lá para os lados da serra a dar vistas para a Bemposta, por detrás e à esquerda da Carochinha e do João Ratão. Famoso ainda o Canchal da serra Pedreira e, claro, o do Chico Sarapião no batcharel perto da fazenda que o Zé Ferrenho fazia. Um viva a este grande compincha que a gadanha da morte ceifou bem cedo!
De todos, porém, o mais famoso Canchal é o penhasco de MONSANTO, o penico do mundo como lhe chamava o velho Pote, pescador emérito com fémur de platina e sempre de chapéu, mesmo na missa. - Que se sentia encouro sem a cobertura, dizia. O chapéu era para ele um valor! e que valor! Como para mim era escutar os rádios Moscovo e Argel, lá no alto, noite fechada, às escondidas, ouvido colado ao aparelho.
Para o Canchal da Nora, fui eu aos tordos e pombos bravos e o que mais aparecesse, uma noite, mais o Nosso Sargento, o Manel Celestino, o grande, Quinzinho das Águas, os quatro na Zundapp, e noutra mota, Zé Pcanino, o ronquinha, Riconho e Marocas. Tinha eu palmado oito pilhas das grandes da caixa e um punhado de chumbo.
Por volta das 23 , eles aí vão. As viaturas ficam na serra junto ao Barata e o resto do caminho é feito a pé, às escuras.
Marejava um poucachinho, a lua estava tapada pelas núvens, mas o astro ainda assim não era dos piores e a malta aguentava bem o frescor. Era enorme a vantagem desta meteorologia: se pisávamos galho, não se ouvia, se partíamos ramo o pássaro não se mexia, se déssemos com a canela em calhau desalinhado, a dor era abafada pelo musgo que a cobria e servia de amortecedor... Breu como estava, a luz dos Foxes atravessava o éter húmido, o alvo era isolado, o tiro partia, o apanhador arrecadava, tornava-se a carregar, apontava-se a outro e, pronto! era assim. Tudo caladinhamente! Mainada.
Nessa noite vieram para a caçolada 16 pombos bravos, duas rolas, 20 tordos e 56 pardais. Um monte de carne.
Nas voltas e revoltas e até reviravoltas, a gente, sempre a olhar para o ar, perde o tino e logo, a orientação. Foi assim que Riconho, naquela sua inconfudível voz roufenha se sai com esta - estávamos nós já de regresso e tínhamos chegado ao cimo do Canchal donde, ainda que mal, se entreviam as luzes de Penamacor que acompanham a subida desde o actual posto de abastecimento até ao cimo de vila e castelo -: "Ina cum filha da puta! Já chegamos a Castelo Branco! Quando é que agora hamos de chegar às motas! Salta Ronquinha:" Vocêi, Vocêi, está marado, ó quêi? num vê qué a vila, seu babanca!? Nosso sargento, naquela sua calma característica, ria. Eu meti ferro" è Castelo Branco, poi! aquilo ali é a Marechal Carmona (agora Humberto delgado), Riconho tem razão. Temos que caminhar toda a noite para apanharmos as motas. Nosso Mário:«hein,hein! deste volta à cabeça! aquilo é a rua das tílias! e Riconho: «Estamos enganados. Penamacor é para o outro lado! estamos chapados. Se a água começa a cair comédado apanhamos um pneumonia . O melhor é ficarmos aqui debaixo dum barroco acendemos uma ala e esperamos que o sol nasça. » Ataca Celestino: «é, poi! acendes o lume e no tarda nada tens a Guarda Republicana a ver o que se passa. Ficas cá sozinho! Riconho ponderou e atira!: «esperar lá aí um pouco que vou além ao cimo do canchal a ver se vejo a nossa Aldeia. Ele viu luzes, viu, só que, desorientado como estava, apontava teimosamente para a Bemposta e que a Aldeia ' num era para onde nós dizíamos'. Vínhamos caminhando, rindo e mandando calar Riconho e a sua teimosia até que chegamos às motas. Aí, Riconho nem queria crer que estava em casa.
A Rosa estava a fechar e Riconho foi ali envergonhado até aos limites do possível . Ameaçou que ia buscar a caçadeira e que nos vindimava ali mesmo. Valeu a ponderação de Nosso Sargento. Pagou uma rodada e a história só hoje foi ressuscitada!
Outros tempos, outra gente, outra linguagem, outras aventuras, outros amigos, outros valores.
O que vos digo é que se me enagalhou o cachaço de tanto andar a olhar para o ar, que andei 15 dias que mal me podia revirar. Vi-me nas horas del conho para fazer o petisco.
Um dia que calhe dou-vos a receita. XXXXXIIIIIIIIIIIIGGGRRRRRAAAAAAANNNNNNNDDDDEEEEEE!

domingo, março 19, 2006

A NOSSA COMEDURA - VI - BACALHAU ALAGADO

Como os nossos amigos leitores não nos têm dado o prazer dos seus comentários, nem mesmo com a ameaça simpática de lapaxeiro a exigir a presença do Fadista, - (ele só não os encorre porque já morreu) , resolvi contribuir para lhes trazer algumas forças com esta excepcional receita de bacalhau.
São precisos apenas quatro ingredientes comestíveis: azeite, cebolas, batatas e, bien sur, bacalhau.
Outros ingredientes: muita paciência, amigos assim comédado, tinto do legítimo, ali mesmo dos lados da Raivosa, Ferrador, Lameira da Pinta, Batcharel, Pinheiros, Serra, Quelha Funda, Saramaga, Moinhos de Vento,(...) o que é preciso é que tenha cinco ingredientes: uvas maduras, fermentação lenta, trabalho com fartura, higiene e água. Mainada! Depois é só esperar lá pelos fins de Janeiro - nunca antes - para provar a pomada. Qualquer violação desta regra só pode ocorrer em vasilhas pequenas, deixadas propositadamente para os efeitos pretendidos: prova no S. Martinho, matança do cerdo, visita dum compincha, baptizado dum neto, participação nalguma festividade pública e pouco mais. O vinho precisa de arreganhos para aclarar à maneira e quer repouso. Além disso, seja em que circunstância for, quer moderação. É proibido encharcamento. Nem mesmo Baco consta que se embebedasse. Apenas que gostava de bom vinho e de mulheres. Eu também. Só que não sou deus. Melhor para mim.
Pronto! já sei.... trata-se de uma receita de bacalhau! já lá vamos...
Primeiro é decisivo que cozinheis bacalhau e não um parente qualquer. Para quem não seja expert nestas coisa pode - e deve - partir desta simples observação: o bom bacalhau seco raramente é branquinho - antes é, ligeiramente amarelado - depois a barbatana dorsal deve estar virada para cima, senão as duas, pelo menos uma, a escama deve estar toda no mesmo sentido e o rabo há-de parecer uma espécie de V invertido. Nunca comprar bacalhau do Pacífico. Só da Islândia e Noruega. Excepcional é o de seca amarela, que já aparece muito pouco.
O tipo é variável com as preferências pessoais: pode ser Corrente, Graúdo, Especial,... não importa. A demolha deve ser sempre em água o mais fria possível sem ser gelo, com a pele sempre virada para cima. O tempo varia em função da quantidade, da espessura do peixe e da vasilha onde se dessalga. Aconselho um mínimo de 48 horas com pelo menos duas mudanças de água. O arrefecimento da água é facilmente obtido, mesmo no Verão através da congelação de duas ou três garrafas de água previamente e que se introduzem no recipiente de dessalga. Assim fica a água sempre fresquinha e o bacalhau extraordinariamente mais saboroso. Pormenor não menos interessante é ainda a forma de o cortar: pedi que vo-lo cortem primeiro separando as abas na vertical e depois os lombos na horizontal. Deve depois ser escamado e limpo das barabatanas para além de ser exigido que se lhe retire a membrana negra que lhe percorre a parte ventral. Depois disto, aí vai a receita:
1 - Variando de acordo com o número e pessoas e consequentemente postas de bacalhau e mais ainda com o tipo de bacalhau e, claro, com a voracidade dos comensais, o importante é que o azeite tem que ser mesmo BOM e BASTANTE. Para quatro pessoas e bacalhau corrente, confeccionando só os lombos exige-se obra de um quartilho de azeite, tudo para mais que nunca menos.
2- Muita cebola cortada em rodelas inteiras medianamente cortadas. A cebola começa-se a cortar sempre pelo lado da raíz e nunca pelo lado do talo. Quando digo muita é também em função do tamanho, do recipiente - bom é o ferro - e da quantidade de bacalhau. Para o mesmo número de pessoas umas valentes cinco cebolas.
3. Bacalhau - as postas consideradas necessárias - e sempre com a pele para cima.
4 - O mesmo para as batatas: quantidade considerada satisfatória para os comensais.
NB. - Quanto mais largo for o recipiente, tanto melhor. Tem que ficar sempre tapado e é OBRIGATÓRIO que seja confeccionado em lume brando.
Então é assim:
Cortam-se as cebolas às rodelas, alagam-se com o azeite, sobrepõem-se as postas de bacalhau, e depois coroa-se com as batatas também elas cortadas às rodelas bem grossas. Tapa-se, pode ser lume vivo até levantar fervura, mas depois ,lume brandinho. Evitar abrir. Não precisa água. O bacalhau e as batatas cozem na sua própria essência , misturados com o azeite e a cebola.
Sirva-se bem quentinho e, se possível, acompanhai com uma fatia de pão caseiro,uns pozinhos de salsa e umas azeitonas retalhadas das verdadeiras.
Ide desempapando com o vernáculo tinto e dai-me inculcas desta maravilha. Bom apetite!

segunda-feira, março 13, 2006

A NOSSA FALA - L - ENCRIR OU INCRIR

A Lameira não foi como agora está. Com início no chão do ti Zé Latas, havia um "alcaduque" (espécie de alvanel coberto, formando um túnel) que a canalha atravessava de gatas à luz de bocados de borracha ateada numa pinha. Muitas vezes o atravessei... Claro que esta aventura só era possível durante o Verão , pois, de Inverno esse "alcaduque" ficava cheio de água por mor de uma ribeira que passava junto às figueiras do Zé Maroco , por debaixo do pontão que dava para o beco da Ribeira e desaguava por detrás do lagar na "nossa ribeira", depois de ter passado por debaixo do caminho do cemitério. As mulheres lavavam a roupa nesta ribeira e punham a roupa a corar estendida num banco de relva que sempre por ali havia. Não vos falo das oliveiras e das amoreiras que nós tínhamos que fintar quando jogávamos a bola... Não falo nem é preciso...
Tal como agora também então a Lameira servia de campo dos mercados aos segundos Sábados de cada mês. O que já não era igual era a mercadoria que ali se trocava ou vendia: porcos, burros, vacas, cabras e ovelhas, fora as tendas. As brincadeiras dos velhotes tinham piada e se algum garoto por ali aparecia,logo um provocava: "ó catraio, sabes qual o animal que dá o fruto antes da flor? No sabes? É o burro, é o burro; espera aí sentado até que bote cá fora os cagalhões e verás que o cu dele depois se abre como uma camélia encarnada!" E riam-se a bom rir... E outro: "gostas de castanhas? olha: o burro as caga e tu as apanhas" Mais uma risada. O tempo nem custava a passar e se o negócio se fechava lá estava o alboroque à espera naquilo do Cavalheiro. Era sempre assim.
Três foram, pelo menos, os burros ou burras mais famosos de aldeia: a burra do velho Freitas, inteligentíssima, até sabia escrever e sabia sempre o tempo que fazia. Se chovesse ninguém a arrancava do palheiro e para se desaparelhar bastava que o velho lhe desapertasse a cilha e lhe sacasse o rabo do atafal que ela dava um safanão e deixava tudo direitinho no balcão da parede junto à manjedoura...Outro que não lhe ficava atrás era o ESTUDANTE, burro mais que famoso do Zé Luís Barata, que lavrava sozinho, fazia a torna na perfeição. Zé Luís ficava dum lado e seus filhos Zé ou João ficavam em cada extrema da leiva e apenas viravam a aiveca. O ESTUDANTE fazia o resto. Inultrapassável era também o jerico inteiro do João Rela: pequenino, mas verguio como a puta que o pariu. Em Março - por este tempo que agora corre - mal via uma burra aventava com cinco escritos ao ar, atirava com os aparelhos, arreganhava as beiças, alevantava o cachaço, zurrava e espirrava, chegava às burras e nem que o desancassem com porrada nunca desistia enquanto não farejasse o cu da fêmea. Era mau filho de puta este burrico. Fora isso era manso como a Terra.
Deixava-se montar pela ti Conceição e ajeitava-se ao batorel. Aguentava teso quando estava à carga. Mal via as cordas de ENCRIR - estas cordas serviam para segurar a carga ajustada à albarda do burro e que tinham uma forma própria de se colocarem, por forma a permitir que as duas sacas ficassem uma de cada lado e até pudessem sustentar mais uma ou até duas de sobrecarga, em média media cinco braças (ou braçadas), cerca de metro e meio cada uma e que se obtêm esticando os braços ao máximo da sua extensão - , o burro ajeitava-se logo e nunca se mexia, nem que a mosca o arreliasse. O mesmo com o ESTUDANTE, só que este era muito mais valente e as cordas de INCRIR tinham mais uma braça, dada a altura do animal. Mais parecia um cavalo. Era mesmo um animal nobre. Um cigano ouvi eu oferecer cinquenta notas batidas pelo ESTUDANTE ao Zé Luís. Ele é que não esteve pelos ajustes :"Desaparece-me da vista senão apicho-te aqui o fadista que te encorre até Medelim. "
Admirais-vos agora de a nossa aldeia ser a terra dos doutores e engenheiros? Dizia o senhor Arnaldo, que em tempos trabalhou nas Finanças de Penamacor, que Aldeia do Bispo tinha mais pessoas formadas em cursos superiores do que o concelho todo.
Olha a admiração! Aldeia que tinha burros destes, pouco espanta que tivesse tanta gente formada. E em forma. MAINADA!

sexta-feira, março 03, 2006

A NOSSA FALA - XLIX - OGAR

Indagações empíricas e circunstanciais nunca foram nem são premissas justificativas de uma asserção. Facto é que tendo eu utilizado este nosso vernáculo OGAR em vários sítios, conferi que ninguém o conhecia. Este termo é deturpado na zona do pinhal e vem duma espécie de onomatopeia de AGUAR. O povo pouco diz aguar e diz mais AUGAR. Daqui até OGAR é um passo. Nas outras localidades portanto este termo é utilizado para significar REGAR, verter água com um regador ou mesmo com um tubo, ou não importa o quê, sobre as novidades evitando assim que a geada as queime. Não é esse o valor da palavra para os xendros.
Ah! pois! há sempre uma estória... Podia começar assim:
Velhaco, velhaco era o meu avô, comandante do Inferno : os filhos tinham que se despir para ele lhes bater e berrava:" a roupa não tem culpa nenhuma das vossas asneiras... "E mais ainda... gabava-se de nunca ter posto as mãos num filho para lhe chegar a roupa ao pêlo... E, por incrível que vos pareça, o velho comandante, figura do mais honesto que me foi dado conhecer, falava verdade... Efectivamente sempre lhes bateu, mas com uma verdasca, uma corda, um changoto,..., que sei eu?.... Nunca lhes punha a mão em cima o malandro do velhote!
Todos sabemos que, por via de regra, as famílias mais antigas dos que ainda povoam transitoriamente este terceiro planeta do sistema solar, eram numerosas de filhos. Cedo ajudavam na luta pela sobrevivência e não consta que alguém alguma vez se tivesse preocupado com o trabalho infantil... Outros tempos!
Se havia trabalho que a mim que custava fazer era - e ainda é - ceifar. Embora o instrumento de trabalho seja dos mais leves - a foice - ou o foição - aquela posição de costas sempre viradas para a torreira do sol era coisa que não me quadrava. Nem a mim, nem aos meus quadris (ou cruzes).
Muitas vezes negoceava com o meu pai: eu tirava o estrume aos porcos - coisa que ele também detestava - e ele ceifava. Assim fomos resolvendo a questão da repartição de tarefas.
Só que às vezes não me podia safar e, quem está por baixo obedece porque quem está por cima manda:" Vais à vinha dos pinheiros e ceifas a erva que lá há; começas por baixo das oliveiras; oga-me bem os molhos não se escarapucem quando os for carregar. Faz o nagalho curto. Aí quatro braçadas por ogadela chegam."
Tinha que ser. A princípio, ogar uns molhitos de erva - paveia - não era, ainda assim, tarefa das piores, mas quando a erva crescia e a erva secava e dava colmo, (ou colmeiro) aí o caso era outro...
Ora eu que sempre fui "encalorado", de pouca roupa, abraçar a palha com pragana no braço nu e ajeitá-la por forma a constituir uma paveia que depois juntava outra e mais outra para dar o molho de semente, sempre bem ogado, caladinho, protestava do mais fundo do meu imo!
Aquilo sim! eram umas férias estudantis assim mesmo comédado!
À noite, por este tempo, luminho aceso, panelinha de ferro suspensa das cadeias, lenha concentrada que era preciso poupar, coziam-se umas espigas de couve com uma buchanha, uma farinheira ou uma daquelas deliciosas morcelas batateiras que não há em mais lugar nenhum do mundo, senão na aldeia dos xendros, juntas com umas batatas e, na mesa de engonço, a mor parte das vezes, lá se metiam debaixo da camisa, acompanhadas com um naco de pão, valente, e um pucheirinho de vinho. A água da cozedura não se deitava fora: estava ali o caldeiro da vianda e uma pouca ia para o alguidar da lavagem da loiça. Não era preciso esfregar muito que aquilo ia tudo bem lambido com o último naco do casqueiro.
Como era cedo ainda para se dormir, ali se ficava a ver extinguirem-se as brasas, mirando, de quando em vez uns espanhóis que se desprendiam e logo se transformavam em fonas: «Bem feita espanhol dum corno! quem te mandou meteres-te com os portugueses? Já te esqueceste de Aljubarrota?» A canalha ficava toda contente com a morte dos espanhóis quando deixavam o brilho da incandescência e tombavam lentamente. A mãe passava a vida a varrer fonas para a pedra do lar...
Duas estórias, dessas que se ouviam aos serões, ali, entre a parede da casa e as taipas do quarto, forradas a papel de jornal e coladas com farinha amassada, ao calor e luz titubeante do borralho:
Um espanhol veio a Portugal e empontaram-no para o canto do lume, onde estava o cântaro da água (asado) e o montinho da lenha que mantinha reguladamente o lume aceso. Coitado!
Dizia um: "alimente a fogueira quem está do lado da piorneira!" O espanhol não entendia e foi obrigado a aprender... já que logo lhe chamavam filho dum corno! "quem está do lado do asado, dê uma volta ao sobrado!" Outra vez o pobre do espanhol a ser chamado filho dum corno até que dava a volta com o copo de água, tirada do cântaro, a todos os circunstantes... Não admira que quando voltou a Espanha dissesse para os seus compatriotas:" mira! se fores a Portugal, no te pongas ni do lado da água nem do lado del piorno,sinon te lhamam hijo dum corno!"
Ou esta:
Um homem andava com ganas de bater na mulher e procurava motivos para a arreliar. Era sabido que se ela lhe alevantasse a voz, ele tinha, por assim dizer, o direito de lhe chegar a roupa ao pêlo «Ó mulher, hoje trago a lenha torta» e ela: "o lume logo a corta! "No dia seguinte:«Ó mulher, hoje trago lenha direita!» e ela nas calmas:" O lume logo a ajeita"
É melhor ficarmos por aqui hoje , senão ogo o molho muito grande e depois ninguém pode com ele, o que vale por dizer, que se o texto é grande ninguém o lê!
Ogo-vos a todos num XXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIIII CCCCOOOOORRRRRRRRAÇÃAO

CHANESCO

Daqui se saúda o CHANESCO , um vizinho que vem no mesmo espírito aqui do Baságueda.

Diz ele que Chanesco (tchanesco) não tem significado definido. Não significa nem parvo nem esperto e significa os dois em simultâneo. O seu significado tem de ser entendido de acordo com o humor de quem utiliza a palavra e com a entoação que lhe imprime.

Força aí ó Chanesco!

sábado, fevereiro 25, 2006

A NOSSA FALA - XLVIII - AMAGAR

Diz o povo, quem sabe se com ou sem razão, que a verdade é como o azeite e vem sempre ao de cima. Virá(?)
Se a verdade fosse só uma ainda se aceitaria, mas o que nós constatamos cada dia é que os mesmos assuntos são lidos diferentemente por diferentes intérpretes. Para uns o Orçamento de Estado é um freio às despesas públicas, para outros o mesmo orçamento é um desperdício de dinheiro em obras que em nada contribuem para a melhoria do país, isto só para servir de exemplo.
Se a minha verdade é verdade e a de outro, podendo mesmo ser a oposta da minha, também é verdade, então a verdade e a falsidade são irmãs gémeas e indistintas. Se tudo é verdadeiro, então, tudo é falso. A verdade acaba sempre por ser discutível. Se se discute é porque tem ponta por onde se lhe pegue e portanto à partida já não é verdade porque senão era tempo perdido andar à procura de outra diferente daquela que é o nosso ponto de partida. Quando eu discuto o que alguém afirma como verdade é porque já implícita e explícitamente estou a partir do princípio que a afirmação do outro é falsa. Ou não será assim? A própria Terra só começou a andar à volta do Sol quando a ciência começou a defender esta tese. Até aí estava parada e houve até quem tivesse sido assassinado por defender tal heresia. Será preciso morrer para defender a verdade? Vivamos então na mentira. Galileu estaria de acordo: mais vale um cobarde vivo do que um herói morto.
Já vos estou a ouvir: «Afinal o que este gajo quer? Para que são estas milongas todas?». Olhai para o povo: "saber esperar é uma virtude" e "quem espera sempre alcança," mas logo a seguir: «quem espera desespera».
Continuamos sem saber onde está aquilo que procuramos, mas o facto paradoxal é que continuamos permanentemente em busca dela. Parece uma insensatez. Será este um dos sortilégios do homem? Neste vórtice de correrias para toda a parte sem se saber ao certo para onde se vai, o homem sai de si e vai apresentando resultados das suas viagens deixando-nos pasmados com as suas progressivas descobertas, pelo que o progresso é desde logo a inequívoca demonstração que a verdade se nos escapa quanto mais a tentamos agarrar. Se calhar a verdade é o que está oculto como já queria Freud e o que é preciso entender não é o que se diz mas o que não se diz. Que grande barafunda!
Vamos lá a ver se me faço entender e se esta minha deambulação tem ou não razão de ser e pode ser justificado que a verdade em vez se ser arquitectónica é, ao contrário, polémica.
Quem de vós já se encontrou num rancho de caçadores, à noite , ao fim do primeiro dia de caça?
Será que o que ouvis é o retrato fiel do que se passou? Ou antes, é a "conveniente" leitura do relator do evento?
Vede só quem estava no grupo: chquim pardalim, coiote pete, toco jabão, riconho, ronquinha, jbão pitincouro, bertcho albardinhas, nosso cabo, para além dos inefáveis batedores,Domingos Molhano, o patanisca, e eu, pois claro.
A caçada até que não fora famosa mas o tacho estava cheinho do que é bom. Cozinheiros não faltavam, vinho ainda menos e, claro, com dois padeiros, o pão sobejava.
Enquanto o lume se avivava e as trempes se aconchegavam por forma a que a ala fosse mais ou menos homogénea a incidir no fundo da sertã, reviviam-se momentos inolvidáveis desse dia de caça. (Deve dizer-se que chamar àquele recipiente uma sertã é o mesmo que chamar cagalhão a um marmelo, com licença da mesa e passe a expressão...). Aquilo era, para todos os efeitos um caldeiro de vianda do porco do Tonho Nunes, que o foi sacar da trave escura onde a mãe cozia as batatas para o bácoro. Bem areado - chovia naquela noite - esfregado comédado, eu e coiote pete, pusemos o caldeiro a reluzir ...
Quando as primeiras gotas de azeite para o esturgido cairam no fundo do caldeirão e o braseiro aqueceu a gordura, confirmou-se que podia nele ser confeccionada a tachada. E foi.
Uma caldeirada de carne brava: duas lebres, três coelhos, um pirolis, duas perdizes e um naco de teixugo porco, para dar unto. Na panela de ferro coziam-se batatas com casca que seriam descascadas na hora do manjar para o qual tinham sido convidados mais uns quantos que depois poderão aparecer...
Arranca o nosso caboó Domingos com aquela é tu me chapaste- punhas-te a gritar : aí vai, aí vai, aí vai - eu fitava o espaço com a arma pronta e nada... Uma vez e mais outra e outra ainda e... porra! isto não pode ser, vou-me a ver o que se passava e o Domingos sentado ao toro dum sobreiro a mamar na borracha espanhola e a mastigar um naco de pão com chouriço... Atalhou o patanisca: cui..da..do, comcom o queque dididizes, quando eu grigritavavva que ia, ia mesmo. não ia era para ti... Pitincouro, logo: "ele já fez isso mais vezes..." Domingos levanta-se e agarra pitincoiro pelo bibe: "ó meu sasaccana,vê lá se se te esfofolo o coicoirate!pá!
Grande Celestino, ourives, que chegava naquele momento, abre os braços como Cristo na cruz e lá acalmou aquele início de convívio com uma rodada de tinto. Nosso cabo e riconho altercavam por causa de um coelho que saía dum roto sacado pela Loc, cadelinha mais que adorada por toco jabão e que riconho deixou fugir e nosso cabo ardulhara logo ao primeiro tiro: Você, baforava riconho, você num viu que a cachorra ia a queimar o cu ao coelho e que se eu disparasse podia virar a cadela!,que se chape o coelho, agora aquela cachorra se eu a atingisse o toco mandava-me um foguete nas nalgas que nunca mais me podia sentar...você apanhou o coelho em terreno limpo... Ronquinha atesta:« era perigoso era...mas pior foi ali o pardalim que viu aquela lebre, que agora ali está no caldeiro, a dormir na cama e armado em otário a enxota com o cano da espingarda, grita:oi! oi! e erra os dois tiros. Se eu lá no estivesse agora não a mamáveis...Pardalim logo: «e tu,minha merda, a perdiz passou a cagar-te na cabeça, avias-lhe dois tiros e nada. Quem foi que a pôs à cinta? vá, diz lá quem foi... Mania pá!
As coisas iam neste enredo qual" encanto de alma ledo e cego" quando entro eu depois de uma prova ao molho: «Tiro assim mesmo com se impunha foi aqui o do toco jabão. Disse-lhe eu depois de o encontrar ao fim da batida: chega cá.Toco veio a correr... O que que está ali amagado? Toco afina o olho...É uma puta duma raposa! Só ouvi:Pum! virou-a logo...estava longe como um corno.Aquilo é que foi um tiro...o barulho alevantou uma lebre que também estava amagada e Pum, valente toco ! virou-a de pantanas. Assim está bem: um tiro,uma peça. Coiote Pete, que tinha morto o pirolis, troféu raro de carne branquinha e paladar esquisito, quase tão bom como a galinhola que também se amaga junto aos choupos das ribeiras e nem os cães dão com elas, via que estava a ficar para trás e avança: «Vós é que não vistens a distância a que eu virei o pirolis..., Aqui a minha boneca afitou-o, dá-me sinal e mal pergunto: o que é boneca? o cabrão, sai do amago e começa a querer levantar, nem a meio metro do chão chegou. Já há muito que não mandava um foguete assim...
Entretanto o caldeiro da vianda, a poder de mais uns bons tocos e mais molho de vinho lá cumpriu a missão e, sem nada ter ficado esturrado, lá se verte para uns quatro barranhões de barro espaçados pela mesa da padaria do albardinhas onde se punham os tabuleiros do pão antes de enfornar, cada um pega na sua arma e, depois de toda a gente já ter um copo dos grandes bem servido, quem tinha posto os moços (um bocado de pão espetado num garfo, que proibia que alguém começasse a comer, sob pena de pagar a despesa) retirou-os e foi um ataque que só visto!
As travessas das batatas com casca assistiam e questionavam-se então e a nós, ninguém nos quer, para que nos cozeram se não nos pelam e papam...?
À medida que a carne foi desaparecendo e o molho crescendo, entram então as batatas. E se elas eram boas naquele molho bem avinhado,! Não se amagavam à carne...
Foi mesmo um regalo ao fim ver como coiote pete, sozinho, devorou uma travessa inteirinha de batatas com o molho de dois barranhões.Toco jabão: «Vá a comer batatas para a raíz da grande pata que o pôs!»
Risada geral e mais uma rodada que paguei eu, pois então!
Se tiverdes razão não vos amagueis, mas se virdes que a verdade está do outro lado agachai- -vos e pagai uma rodada. Mainada!
Se encontrardes por aí alguma verdade que valha a pena, deixai-a registada. XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII!

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

A NOSSA FALA XLVII - CÓDÃO

- Tá cá um CÓDÃO, oh!

No Inverno, as noites estreladas anunciam manhãs geadas. Os campos apresentam-se cobertos com aquela camada esbranquiçada, entre o gelo e a neve. É a geada, a russa, a barbeira, o CÓDÃO.

- Tá cá um códão, oh! – é uma bonita expressão que soi ouvir-se nestas manhãs de Inverno que se seguem a noites estreladas.

Numa destas noites, aparelhei-me com casaco felpudo, cachecol, gorro e botas da tropa e aproximei-me do céu o mais que pude. Também me muni de uma pequena lanterna, binóculos, e do mapa do céu de Fevereiro do Máximo Ferreira – a minha fonte habitual em matéria de astronomia. Desta vez, ia em busca da cabeleira de Berenice. Conta o Máximo que a detentora de tal tufo de invejável beleza no efeito e na cor, era rainha no Egipto lá atrás no século menos 3, e que os deuses, eles próprios extasiados, deliberaram (por unanimidade?) colocá-la no céu para contemplação geral. Seguindo as instruções, procurei a constelação do Leão e, à esquerda da cauda, lá estava ela.

Berenice. Imaginei-a a passear na longa varanda do seu sumptuoso palácio de Tebas, contemplando a água prateada do Nilo, em noite de Lua Cheia. Estou a ver o seu perfil ondulado, como o cabelo, em contraluz, vestida apenas com uma túnica de linho quase transparente. A cabeleira cai até ao fundo das costas. Que linda cabeleira tem Berenice. Chamei-a baixinho. Ela virou-se, sorriu para mim e apontou para o céu, para a constelação de Leão.

Observei atentamente aquele ténue aglomerado de estrelas, não muito nítido, mas belo, para quem aprecia o cosmos, mesmo os mais pequenos pormenores, porque sabe que os pequenos pormenores, são na verdade gigantescos. Aproveitei para apreciar o esplendor daquele céu estrelado de Fevereiro. Aquele infinito esmagava-me, induzia-me uma forte sensação de nulidade cósmica. Para norte, lá estavam as Ursas, a Cassiopeia, Pégaso. A sul, o espaço sideral era claramente dominado pela imponência de Orion, o guerreiro de cinturão de estrelas, seguido do Cão Maior onde se destaca a nossa mais brilhante estrela nocturna: Sírio. Os cornos do Touro ameaçavam o guerreiro e, por cima, as Plêiades, um aglomerado de estrelas muito interessante, as sete filhas de Atlas e da ninfa Plêione, que Zeus transformou em estrelas. O povo chama-lhe sete-estrelo ou sete irmãs, e eu concentrei-me a contá-las. São mais, muitas mais. Estava na disposição de fazer a contabilidade mas lembrei-me do dito do povo que quem conta as estrelas lhe nascem "berrumas" nas mãos. Ora, "berrumas" nas mãos, não!

7 da manhã. Estremunhado, a bocejar como se fosse abocanhar uma abóbora menina, cheguei-me à janela que dava para a estrada. Céu limpinho, o dia começava já a azular, ainda a desfazer-se das últimas estrelas. Contemplo demoradamente a mancha esbranquiçada que cobre o campo. Ouvi-me o inevitável “tá cá um CÓDÃO!”

Sem me dar conta, deixo-me ficar a contemplar aquele momento de Inverno.

Começo a ouvir o trabalhar mortiço do motor de uma mota em 4ª velocidade que devia vir em 3ª e imediatamente identifico: “olha! lá vem o Mnel Azenagre”. Fiquei atento, muito atento, porque sabia que, a meio da pequena subida mesmo em frente à minha janela, ele havia de meter a 3ª. Fixei-me na sua boca, no momento da mudança da mudança (não, não é redundância nem pleonasmo, é mesmo assim). Em 4ª, ele trazia a boca meia aberta (ou meio fechada, como quiserem, não é o momento, nem o local para dissertar sobre tal problemática), no momento em que apertava a embraiagem com a mão esquerda e, com o pé, esquerdo, pisava para entrar a 3ª, nesse pequeno lapso de tempo, o Azenagre fechava completamente a boca. Depois, enquanto largava lentamente a embraiagem, ele voltava a abri-la ligeiramente, quase timidamente, aumentando gradualmente a abertura (da boca) na mesma medida em que acelerava a 3ª mudança. Faria o mesmo um pouco mais à frente, já em estrada plana, boca fechada na passagem para 4ª e boca a abrir acompanhando o barulho do desenvolvimento da 4ª. Desconheço, e tenho quase a certeza que nunca saberei porque nunca lhe perguntarei, e ainda que o fizesse ele não me responderia, ou melhor seria bem capaz de me responder algo sem qualquer relação com a pergunta e que era: “o senhor, quando abre a boca à medida que acelera, fá-lo mudo, ou imita com a voz o som do desenvolvimento da mudança?” Ou seja, a mímica era muda ou sonora? Ficarei na ignorância no que toca a tal matéria.

A propósito de motas, lembrei-me da história do Mário Ái que toda a sua vida andou em máquinas de 2 rodas, primeiro uma pasteleira marca Súria e depois uma Zundapp X3. Há pouco tempo, comprou uma daquela carripanas de reformado, aquelas que não precisam de carta de condução para serem conduzidas. Na primeira viagem que fez à vila espetou-se logo ali na curva antes da ponte das taliscas porque, tão habituado que estava à mota que, distraído, inclinou-se para a esquerda para fazer a curva, em vez de rodar o volante.

Lá em baixo, na estrada, surge a Alice Gonita que ganha balanço para ir ao povo e, quando passa deixa escapar:

- Bom dia, está cá um CÒDÃO, ó Nazaréi!

domingo, fevereiro 12, 2006

A NOSSA FALA - XLVI - ABEQUILHA OU ABOQUILHA

O meu amigo, grande amigo, Ti Cá, que não é de aldeia - mas é de outra aldeia - , diz-me frequentemente:" às vezes a mimória drome". Figura de raríssima qualidade - é um poço de saber empírico - tem um modo de contar estórias que só Marceau (cá volto eu a Marceau) seria capaz de igualar: para cada palavra um gesto e, as mais das vezes, nem usa palavras: apenas reproduz mimeticamente o que quer dizer.
E O MAIS DECISIVO É QUE QUEM O RODEIA SABE DO QUE SE TRATA SEM SER PROFERIDO UM ÚNICO SOM. Verdadeiramente raro este castiço de 87 anos. (Com bem faça os 88 para o mês que vem!)
Ele, mais a ti Lianor, mulher desempenada, que corrige muitas vezes o nas suas deambulações pelas estórias das suas vivências, é outro poço de energia e , se bem que procure pronunciar assim comédado alguma palavras, acaba sempre por denunciar a linguística de orelha: um BARBECUE é um bórrocu, uma tupperweare é um tapué, um bacorinho é um bacrim e por aí fora...
Mas isto tudo vinha a propósito de a MIMÓRIA DRU(O)MIR... Pois. ..
Se calhar, a maior parte dos que me lêem, não sabe nem nunca ouviu falar da GRÁFICA DO OUTEIRO, onde os manos João e Domingos Alguitarra eram os tipógrafos e o inolvidável Padre Zé Pedro o mentor e tutor; se calhar, poucos se lembram de um rancho folclórico, capitaneado pelo excelente bailarino e cantor, apesar de coxo, que era o ti Zé Soalheiro, alguns, porventura, ainda se lembrarão das festas das bonecas em que a estrada com alferes Rei, a lagariça com os Menas, o oiteiro com o já referido Zé Soalheiro e mais o sr. Joaquim Vicente, barbeiro e médico artesanal, o cavacal com Machos, Pitincouros e Freitas e o bairro novo com Albardinhas, Chquim modas e Ave de Rapina, disputavam entre si a glória da melhor boneca e dos rosmanos mais cheirosos. Aquilo é que eram noites assim comédado!
O maralhal corria as festas todas e o comum entre elas eram sempre as borracheiras, que os cântaros do vinho não faltavam nessa noite.!Outros tempos.
Afinal, contrariando o meu querido ti Cá "a mimória no drome!"
Quando eu andava com aquele mais que famoso e conhecido carrinho quadrado a transportar bilhas de gás, sacas de ração, milho e o que mais fosse, logo por essas seis da manhã (ainda hoje, a essas horas ou até antes, quem for de fora e se aproximar de aldeia, se observar com atenção, há-de reparar numa espécie de névoa que cobre os telhados, por esta época do ano e até aí fins de Abril, conferirá a verdade inabalável do ti Cá: "é o povo a fazer a miguinha da batata...") E era!
Quando abria o trinco da porta - àquela hora já o gado estava acomodado e as portas já não estavam fechadas à chave - chamava: «Ó CHQUIM!» " Quem vem lá?- entra homem: Teu pai é chapado, põe-te a cabanir da cama logo cedo: Já comeste alguma coisa? " «papei dois figos secos e um bolo de leite,» dizia eu. "Assim no vais lá...um home quer-se com génio...e virava-se: eh! cachopa! traz aí uma planganita com uns feijõezitos e um naco bom de pão mais uma çabola! "«ó tchquim inda é cedo!». "A gente pra beber um copo tem sempre que meter uma abequilha, cassenão no se aguenta: metes três colheradas de feijão e bebes uma lata ficas pronto pra malha! " A lata era realmente uma lata. Tinha uma asa também de lata, normalmente obra de Zé Pantelhão e levava 4/4 de litro. Era obrigatório emborcá-la de uma vez...
Pelo menos na casa do Chquim Modas...
Prendia-se-lhe um pouco a língua, mas andava ligeiro e era sempre o primeiro a despejar a litrada: "Viste? é assim. Podes beber as que quiseres mas sempre inteiras e sem parar. A isto é que eu chamo uma directa."
UM LITRO DE VINHO ÀS SEIS DA MANHÃ COM UMA MALGA DE FEIJÃO GRANDE ENCARNADO UMA FATIA DE PÃO E MUITA AZEITONA.Um veneno era o que era.
Dizia o Chquim Modas que na aldeia eram poucos os que eram capazes. Ainda o acompanhei uma boa meia dúzia de vezes. E ele:" és valente catano. És dos bons. A gente nunca se agacha. Se os outros são capazes, nós tamém."
Era uma filosofia bruta, de difícil concordância, mas, documentada ao vivo, não dava hipótese:" a gente com uma aboquilha bebe até cinco litros!". E eu : «Ó Tchquim, pior ca nós só o Zé Moreira, ali dos cucos, que com uma azeitona bebe um almude!» E ele: "eu a raspar um caroço de azeitona despejei cinco litros." Rematou com esta:
"Ficas a saber: a gente para se aguentar a trabalhar, a beber, a comer, a fazer o que quer que seja, precisa sempre da aboquilha! A mim sem abequilha nunca me vês beber. E mais:não bebas nas tascas; bebe sempre do nosso. O vinho é medicinal: de verão refresca o corpo e de inverno aquece a alma!"
Que havia eu, cachopo ainda de voz em falsete, contrariar, face a uma argumentação destas? O importante é a abequilha.
Ainda hoje tenho este hábito, mas não com o alcatruz do Chquim Modas: quando se bebe um copito de prova, pincha-se sempre algo. É a aboquilha. Podeis chamar-lhe mata-borrão, tapa, pincho, acompanhamento, côdea, entretem, raspa, calço, é tudo o mesmo: o que é preciso é fazer a boquinha para o sangue de Cristo. Mainada.
Logo vos voltarei a falar da gráfica, dos Alguitarras e do Zé Soalheiro.
Com uma abequilha e um copito do bom, depois de uma sesta assim comédado, pode ser que a memória no druma e a estória surja!
Ide aboquilhando enquanto esperais...
Deixo-vos outro XXXXXXXXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIII.

quinta-feira, fevereiro 09, 2006

A NOSSA COMEDURA - V - DO LEITÃO COMÉDADO AO ESPARREGADO DE COUVE À BRUTA

O homem e a arte sempre estiveram perto. Foram muitas as discussões sobre o juízo do BELO. A Estética - preocupação, por excelência, do estudo do belo - acaba por se emaranhar já que tão fácil é (?) defender que o gosto depende dos sentidos, que (in)(en)formam a razão humana em função do que lhe é dado a contactar pela via dos sentidos, como se pode defender que o juízo estético é, por natureza, reflectinte, desinteressado, puro, "a priori", garantindo assim uma universalidade e uma objectividade que, aliadas à necessidade, quase permitem afirmar que o que é BELO para um , em princípio, devia ser belo para todos, porque quando eu emito um juízo de gosto de forma desinteresada, parto, A PRIORI, do princípio que qualquer pessoa que estivese na minha posição, diria da obra de arte (ou dum leitão bem tostado e pronto a ser degustado) o mesmo que eu digo. Exijo a adesão dos outros ao meu juízo. Neste sentido, como eu igualo o subjectivo ao objectivo e a liberdade à necessidade, o juízo estético seria universal e o mesmo para todos. MAINADA!
Daqui se infere: " os gostos não se discutem... O que se passa, todavia, é completamente diferente e como diz bem Henrique CAYATTE, excelente designer português," se há coisas que devem ser discutidas, o gosto ocupa o lugar cimeiro."- EU ASSINO POR BAIXO!
A esta hora já estais vós a barafustar:"com filha da puta! Um gajo vem à espera de saber como se confecciona COMÈDADO um reco e apanha com uma meditação lúgubre(!?) sobre problemas de estética a nível hiperurânio. Este Blogue é assim mesmo: quando lhe dá para jogar ao sério ninguém o faz rir. (Apenas MARCEAU e a sua inigualável arte de mimar.) Atendendo a isso, vou dar-vos um MIMO: REVELAR-VOS OS SEGREDOS ESCONDIDOS DA ASSADURA DE UM RECO ATÉ AÍ OBRA DE UNS DOZE QUILOS EM FORNO A LENHA E EM SUSPENSÃO.
TOMAI LÁ A RECEITA E EXPERIMENTAI :
(APROVEITO PARA DIZER QUE AS RECEITAS QUE AQUI SE APRESENTAM SÃO, FORAM E SERÃO, RESULTADO DE provas reais, LOGO, DIGNAS DE TODO O CRÉDITO.
O que precisamos:
1 - um(a) reco(a) aí até 12 Kg de máximo
2 - um forno a lenha com 55 cm de raio, pelo menos. Equivale a 1,10 m de diâmetro
3 - evidentemente, lenha para atear e aquecer o forno até à têmpera adequada.
4 - um tabuleiro que entre na boca do forno e com duas hastes ao centro nas paredes mais curtas do rectângulo com a altura bastante para suportar o bácoro no ar sem bater no chão. Se for necessário prendem-se as patas ao corpo do cochino com um arame.
5 - Exige-se que, ao matar do cerdo, apenas se abra um rasgo no pescoço para tirar a gola e outra ferida no ventre por onde se tiram as tripas.
6 - um pau de loureiro (de preferência) ou outro, ou até mesmo um espeto, suficientemente comprido.
7 - Uma agulha de albardeiro e respectiva guita (barbante) para coser o porco.
8 - É conveniente que o animal seja temperado de véspera.
9 - Para o tempero:
- mais ou menos 20 gramas de sal por Kg de leitão
- 250 gramas de banha de porco
- pimenta branca e preta moídas
- alho com fartura
10- confecção:
- esmagam-se os alhos (20 a trinta dentes abertos, escarchados e sem grelo) com o sal, num almofariz; quando já estiver tudo numa pasta envolver bem a banha; em caso necessário adicionar um chirrichichi de azeite para permitir melhor ligação; juntar as duas pimentas (meio pacote de cada) e continuar a envolver.
11 - a pasta deve estar homogénea, a ligação corredia, mas espessa; pica-se o interior do bacorinho por dentro com faca aguçada, tipo matadeira, mas de modo a que a pele não seja furada.
12 - Pelas aberturas (gola e ventre) barra-se o cochino muito bem.
13 - cose-se com o barbante, fechando COMÈDADO os orifícios; unta-se por fora com a pasta restante .
14 - Mete-se o pau de loureiro pelas traseiras do tó, até às dianteiras e suspende-se o porco no tabuleiro .
15 - Prepara-se o forno, tendo o cuidado de deixar algumas brasas nas laterais e de cobrir o roncador com papel alumínio.O LEITÃO DEVE ENTRAR SEMPRE COM O DORSO PARA CIMA (não esquecer que deve ir tapado com papel alumínio).
16 - se se tiver tido o cuidado de ter preparado umas batatinhas em forma de meia lua, temperadas à maneira: com azeite, vinho branco, água, pimentada caseira, uns nacos de cebola à alma do diabo e uns cheiros de toucinho de presunto, uns raminhos de salsa e pimentada caseira para dar o sal, metem-se os tabuleiros e encostam-se às paredes do forno tendo o cuidado de os cobrir com papel alumínio.
17 - introduz-se o animal com a cabeça virada para dentro e espera-se aí obra de 15 minutos e veda-se a porta do forno
18 - abre-se o forno, destapa-se o porco do papel de alumínio que o cobria, despeja-se um bom meio litro de vinho branco para o tabuleiro e volta-se a fechar bem o forno.
19 - esperam-se mais 10 minutos até que a pele do dorso toste bem, retita-se o tabuleiro para o porco "constipar", tapa-se bem o forno para não perder têmpera, barra-se com o próprio molho, entretanto caído para o tabuleiro misturado com o vinho branco, e introduz-se de imediato no forno, que volta a ser bem fechado.
20 - Meia hora depois, torna-se a vazar vinho branco no tabuleiro e veda-se o forno.
21 - Ao fim de mais ou menos duas horas o animal deve estar pronto a partir para os comensais.
...
Enquanto todas estas fases ocorrem, vai-se à horta, cortam-se umas couves de variadas espécies: lombarda, bacalan, coração de boi, penca, valhascos,... , cortam-se grosseiramente, enquanto uma panela grande aquece no fogão a água para as cozer, lavam-se bem, deixam-se ferver até cozer sem amolecer, escoam-se da água e reservam-se.
Descascam-se uns 20 a trinta dentes de alho, espalmam-se, TIRA-SE O GRELO, e esturgem-se numa caçarola onde caibam as couves escorridas.
Quando estiverem a amarelecer, despejam-se as couves e, com colher de pau, envolvem-se bem no AZEITE onde se esturgiram os alhos.
Quando estiverem bem untadas, já embebidas do gosto alhado, salpicam-se com vinagre de vinho tinto a gosto, envolvem-se em farinha sem fermento e abafam-se.
Da parte da água onde se cozeram as couves pode fazer-se um arrozinho malandro.
Vai tudo para mesa em simultâneo: leitão partido, acompanhado com gamelas do molho que se retirou do seu próprio interior, batatinhas forneiras, arroz em água de couve e o esparregado feito à bruta.
Degusta-se, acompanha-se com tinto bom de uva (que ainda o há) e enfeita-se com os mais variados comentários. Convive-se.
Nos finalmentes, pode servir marmelada caseira com queijo amanteigado, ou requeijão, simplesmente queijo curado vazante, uma boa ginja de dois anos, um café travado, e um Jameson para arrebater.

CUIDADO COM AS VIATURAS E COM QUEM VAI NELAS.
...
podeis então discorrer sobre quem tem mais razão: se quem defende que o prazer e o gosto (a AITSESSIS) são de cariz subjectivo e derivados das informações sensoriais, ou, qualquer gosto é uma aparência da realidade longínqua da perfeição gustativa única de que este gostoso prato apenas participa...
Um bom apetite e melhor proveito são os desejos dos tutores do blogue. UM XXXXXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIII
Sempre é melhor tema que futebol ou gajas (déjà vu).

quinta-feira, fevereiro 02, 2006

A NOSSA FALA -XLV - TRAMONCO OU MATRONCO

Vedetas da nossa xendrice são, sem dúvida, Chquim e Jó Camião. Que me lembre, em matéria de cortar língua, só Zé Melgo, o partenair de Tonho Feduchas, serradores que eram no tempo do caibramento em madeira, poderia rivalizar com eles. Com os copos havia outros: o mais famoso será, sem dúvida, Agostinho Cagarela, também conhecido por Cabo Vermelho, que, como morasse para os lados da quinta do Ramalhão e tinha que passar as poldras, ali onde agora está a ponte, a seguir à casa Queimada, ele ia pela água enquanto o garrafão, esse ia pelas poldras, não caísse e fosse perder-se o precioso líquido. Era um espectáculo ver o equilíbrio de Agostinho a salvar o tintol, semelhantemente a Camões a salvar "Os Lusíadas". Só que esta épica façanha nunca fora antes contada. Se não chegou à Taprobana, não há dúvidas que muito se exigiu também à força humana . Fica agora o registo e mais ainda: «cale-se tudo o que a musa antiga canta/que outro valor mais alto se alevanta» e «Cantando espalharei por toda a parte/Se a tanto me ajudar o engenho e a arte.»
Em tempos, a avó de Jó e mãe de Chquim, a mais que famosa e inultrapassável velha Pieres, limpava tudo quanto era valeta e caminho apanhando todo e qualquer gravato. Era com eles e com a silvas que ia catando das divisórias limítrofes das parcelas dos chões, que, dia a dia, acendia o luminho que a aquecia a ela e ao Chquim e fazia a comida, numa panelita de ferro que poucas vezes era lavada, guardando sempre o unto de umas refeições para as outras. Muitas vezes a vi eu com um molho à cabeça, sem molídia, mais parecendo um ninho de cegonha a andar, rasteirinho.
Diziam as más línguas que o pai de Cquim Camião era outro Chquim, o ti Chquim Cavalo, homem espadaúdo, mais alto ainda que o chquim Camião e da largura de Jó e meio. Calçava 47. Mandei-lhe virar ainda algumas botas na torcedeira ou vergadeira e o Manuel Vinagre dizia sempre que demorava o dobro do tempo a palmilhar umas botas daquelas e que assim não lhe interessava ter fregueses daqueles.Era o que se podia chamar um HOMENZARRÃO. Vinagre era mais para o lado do tamanco e dizia que aquilo não era um homem, mas um matronco. A Mari Varónica, que morava em frente, corrigia: « não é matronco, é tramonco ».O ralho começava ali. Ilda aparecia também e o Cavacal, ali para os lados da rua das Aranhas animava, já que vinham logo Bandeira de Guerra, mãe de Ilda, um pote de veneno, a avó de Amílcar Faiçal, mulher de Estica, G. N.R., reformado, e que tinha uma cabrita que mais parecia um cachorro, cantora esganiçada, sempre na igreja, junta com Albertina Molhana e Rosa Rei. Dos assistentes faziam ainda parte, Tonho Félix e sua mãe Velha Lorpa, às vezes, a cunhada velha Nacha, aquela mesmo que Zé Luís tinha enganado dizendo-lhe que iria cantar à Rádio Renascença, ao programa do António Sala e não raro, as manas Rancheiras. Dificilmente se encontraria melhor. Nem com uma candeia, ao meio-dia, se juntaria melhor grupo. Vinagre de sovela na mão e avental de sapateiro, tirava os óculos e virava-se para a Varónica: "onde é que queres a cama?"
A discussão ia acesa, quando eu, carrinho quadrado com rodas maciças, vou a passar, transportando uma bilha de gás e uma saca de 115 para os pitos em crescimento, destinada ao velho Bezerrinho, pai do ' mê filho DOTORRE ADVOGADO '.
O velho Estopa, pata galhana, que morava paredes meias com a Varónica e estava a acender o lume para cozer umas couvitas com um naco de entremeada do porco do Maregas, aparecia à porta e vou eu:«o que que passa, ó ti Mnel?» «E eu que sei, cachopo!? Ouvi para aqui esta balbúrdia e vim ver o que era! Vejo o Vinagre e a Varónica a aldeagarem e o resto do povo, cada um para seu lado a ver se os acalmam, mai no sei!». Parei a viatura, pus-me a ver o que se passava e vou-me ao Vinagre: «Que é lá isso?» Ouvi a estória, levantei os braços e proclamei:
« ambos dois têm razão». Aí calou-se o chavascal... «Isto é segundo e conforme, continuei, se for uma mulher é um MATRONCO, mas se for um homem é um TRAMONCO».
Perante uma sentença Salomónica destas, não havia mais razão para ralhos. Mnel Coveiro, companheiro de Varónica, que entretanto tinha ido por um enxada a fim de abrir a cabeça ao Vinagre e não perder a embalagem para lhe abrir a cova no cemitério, voltou à loja e pendurou-a no arame, Bandeira de Guerra, não sem cuspir, quando passou por Varónica,«puta, que és uma puta», recolheu a casa, Vinagre chamou-me de parte e mais ao velho Estopa, foi por um pucheiro de vinho novo e solta: «ó rapa a unha, (era assim que me chamava), tu és chapado! atão mas é verdade que os homens são de uma maneira e as mulheres doutra?». E vou eu: «é, poi; ainda há outro género no latim que é o neutro e mais um no grego que é o dual. Isto é assim: há coisas que só têm duas hipóteses, por exemplo, ou pegas com a mão direita ou com a canha, ou sobes ou desces, ou és gordo ou és magro, ou é de noite ou de dia, quer dizer, ou é uma coisa ou outra, não há meio termo. Aqui é igual, ou é homem e é Tramonco ou então é mulher e é Matronco.» Estopa sai-se: "ele há coisas dum filha da puta! já aos anos que ando no mundo e nunca tinha arreparado nisto. Ó Vinagre, rica pinga, bota aqui mai uma cochada!».
Estávamos nós nesta aula de perfeccionismo linguístico quando pai e filho Camião passam em frente da loja de Vinagre:« Olha, ali vão dois Tramoncos!»
Chquim ouviu e vira-se: "Tramonco era teu pai quando te fez as orelhas"
«Já está aqui o fado armado outra vez» diz o Estopa!
Voltei à carga, empurrei o Vinagre que já se ia ao Camião com a pedra de bater a sola:
« Calma, porra! Ó Chquim, segura aí no coucho que hás-de provar se aqui só há Vinagre ou também há vinho!» Jó começou-se a rir:« esta fô boa, fô, fô! bem fêta,Vinegre, bem fêta!»
Camião emborcou o coucho, e o Vinagre:« tu és chapado, ó rapa a unha, és chapado »!
Bebemos mais um copo e lá me fui com o carrinho quadrado de rodas maciças a levar a bilha do gás e a farinha 115 prós pitos em crescimento ao Bezerrinho, pai do DÓTORRE ADVOGADO.
É a vida.