segunda-feira, setembro 29, 2008

A NOSSA FALA - CXIV - PAVIOLA

Não são raros os casos em que a permuta, elisão, ou mesmo acrescento de letras ou sílabas, ocorram na linguagem do nosso povo. O exemplo que ora vos aporto é disso demonstrativo: em vez de padiola aparece a paviola. Em desuso, como as angarelas, por ex. , era de utilidade suprema em terrenos de socalco, mais a mais super povoados, com vinha por baixo, oliveiras por cima e, sazonalmente, batatas de sequeiro, e até alfobres ou erva para o gado. Servia para transportar muitas coisas, desde pedras para muros e paredes, lenha para o lume, até esterco para sítios onde nada mais tinha acesso.
Os seus dois braços dianteiros e traseiros com aquele patamar no meio possibilitavam uma distribuição equilibrada da carga e arrumação fácil.
Outros exemplos podem ser vistos em PEDIVES por pevides, CARAPINTEIRO por carpinteiro, CRAVÃO e CRAVOEIRO por carvão e carvoeiro, pomates por tomates,... . Ao fim e ao cabo as alterações fonéticas de pouco interessavam ao povo que por não saber francês não deixou de emigrar.
Não vai asssim tão longe o tempo em que galinhas, burros e porcos conviviam com pessoas, senão dentro de casa, logo ao lado, em furdas ou furdões, currais, apriscos, redis, pocilgas ou palheiros ou pardieiros. O Chico Miguel, a Tonha Costa, o velho Valente, o Rela, o Júlio Casqueiro, O Pirolas do Zé Nicas, o Fatela, a Manta Rota, e tantos outros, todos tinham os porcos, paredes meias com a casa e as galinhas tinham o poleiro por baixo das escadas que davam acesso pelo exterior ao primeiro andar das casas. Alguns desses poleiros serviam para outras funções quando a porta e o escadéu que lhes dava acesso o permitiam. Há quem diga que a Rancheira se serviu de muitos. Outros tempos, outras modas, outras vidas e outras histórias.
Tal como a PAVIOLA, foram desaparecendo. Agora só há andores, mas esses são para santos e santas.
Os irmãos Manetas eram três - Chquim, Manel e Zéi -, tão depressa andavam bem, como, num Domingo qualquer, se zangavam e, por isso, ficaram conhecidos como os Guerrilhas. Eram todos sapateiros. Faziam mangação, cada um do trabalho dos outros e sapato, bota ou sandália feita por Zéi e que passasse pelas mãos de Chquim: "mal empregado material nas mãos deste cerdo" e o mesmo se passava com os outros.
Chquim tinha a oficina por detrás da fábrica dos Leitões, quase em frente do cruzeiro do Cavacal e a pipa do vinho estava ali mesmo à mão, que, na casa onde morava, não havia espaço e Fatinha não queria lá ver pipos nem borracheiras sem vergonha a toda a hora, para além da burrinha que comia refastelada na manjedoura e, de Inverno, servia de ar condicionado, que o estrume que ia fazendo sempre libertava algum calor.
A mulher ficava por cima e lá ia ocupando o tempo com tarefas mais domésticas.
Um dia vinha eu a passar com o inefável carrinho quadrado das bilhas do gás quando :" Ó catano, eras mesmo tu que me fazias falta! Ajuda-me ali a levar esta paviola até ao chão do Branco por mor de à tarde lá semear o alfobre da couve que já é tempo". Arrumei o carrinho e lá vou com Chquim e a paviola do esterco por uma vereda mesmo à tangente. "Bem hajas tu, cachopo... A minha já num podia com este peso e eu ao caldeiro nunca mais fazia o serviço, bem hajas! Mas agora vamos ali a boer um copinho do meu." Fomos. Ajoelhou-se em frente da pipa rodou a torneira, aparou o tinto, deu-me o copo e continuou de joelhos com o dedo a tapar o orifício da torneira. «Alevante-se...Para que está aí de joelhos» - "Cala-te, dianho, tu num vês que a bicharada rala?" Fiquei meio taranta, bebi o copo, ele o dele, depois outro, Queres Mai? que não, disse eu, rodou a torneira sempre para a frente por mor do calo e lá se levantou. Ia eu a perguntar e a resposta já saía:" tu num vês que a torneira chia e aquele fardo - era a ti Celeste - dá conta; quando vou pró caldo ao meio dia logo me assobia à orelhas que já lá fui tantas vezes... Assim só ouve uma e o bicho já num rala»
Mais uma, digo eu. Há que aproveitar e meter na paviola ou padiola. Ficai-vos com a que quiserdes, na certeza que qualquer delas já pouco funciona...
Eu servi-me dela, a maior parte das vezes para transportar calhau ou estrume. Não me importava de a voltar a usar para arredar para bem longe muito do que por aí anda- e alguns a comandar-nos. Havia de ser bonito se os agarrasse na minha PAVIOLA ...
XXXXXXXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII. Logo volto.

segunda-feira, setembro 15, 2008

A NOSSA FALA - CXIII - PUCHEIRO

As voltas que o povo dá às palavras para, depois, as fixar num fonema com um som - o significante de Saussurre - são imprevisíveis. Assim é com esta forma. Repare-se: o espicho é o jacto de vinho que jorra de uma pipa onde não se quer meter a provadeira - cana com uma racha ou abertura que possibilitava a certificação se o vinho já estava claro e que, no orifício natural da cana até ao nó fundeiro, permitia transportar vinho bastante para um copo - . O espicho era feito quase ao cimo da vasilha onde o orifício respirador era tapado com uma rolha estreita de cortiça e vedado com cebo. Uma sovela, normalmente feita de vareta de guarda chuva, penetrava cebo e cortiça e o néctar saía com a pressão, aí para quase um metro afastado e era um regalo aparar o tinto no copo: fazia espuma e exalava um cheirinho que só quem teve a oportunidade de provar pode agora recordar. O orifício era fácil de tapar e até de selar: bastava pôr o dedo e /ou mais um pouco de cebo que estava sempre à mão e ele lá continuava a sua fermentação.
Havia também o vinho da balsa que resultava da inclinação da dorna e cuja claridade era aferida através de um rasto ou um bico velho de charrua, que se atirava para o líquido, às vezes ainda fervente: se o rasto fosse ao fundo, já estava claro, e não criava engulhos na garganta pelo que já se podia beber. O sabor a mosto era dominante mas, como não havia melhor, aquele era excelente. Fiz o meu tirocínio com o velho Comandante que, aí ao quinto dia já lhe arreava assim comédado.
Vem isto tudo a propósito das vindimas que agora estão no apogeu.
De caminho queria aproveitar para vos apresentar uma figura de xendro inigualável: de tudo sabia, de tudo dava conta e novidade que lhe caísse na orelha, passado pouco tempo estava mais torcida que uma cepa: a Chicorrela. Sempre ali pelo chafariz do batoco, tudo mirava, com todos se metia e até ia ao tribunal - banco só de homens onde a maledicência imperava e a linguagem era do mais verrinoso e viperino que imaginar se possa -. Chicorrela ou Relochica como eu lhe chamava, nada temia e desafiava qualquer um para dizer mal de quem quer que fosse. Seguia aquele velho aforisma: temos que dizer mal dos outros porque eles também dizem mal de nós .
A casa de Relochica ficava pertinho da velha casa do Barata, velho tugúrio onde se criaram nove filhos e cujo espaço seria aí duns 18 metros quadrados: subia a cama descia a mesa, subia esta
descia a primeira, a canalha dormia a monte, raparigas dum lado e garotos do outro.
Apesar do curto espaço ainda cabia, logo à entrada, um tonel de 400 l ,onde Barata guardava o vinho. Por cima estava, sempre de borco, um pucheirinho, copo único, de asa partida, que tinha que ser bebido de uma só vez, sob pena de não mais o provar.
Na perpendicular entre a casa do Barata e a de Relochica, em frente da velha Libra, morou a mãe de uma das ilustres personagens, José Antunes Ribeiro, de alcunha o Pucheiro, nunca soube porquê, e que foi alto magistrado. Chicorrela não tinha pucheiros. Ao lume estava a panelinha de ferro e havia umas gafeteiras, sempre de luto, por dentro e por fora, onde, de quando em vez, se fazia uma chicória, de borra assente com tição ardente, que servia de café. O açúcar era água de figos secos, guardada religiosamente em escoureiro bem tapado e vidrado.Nunca ninguém soube bem o que Relochica comia porque passava o dia no trequelareque do batoco a dar troco ao Chico Pedro, Manel Freitas, Augusto Estanqueiro, Zé Luís, e companhia...
Notícia que lhe caísse na língua, depressa fermentava e o que seria uma inocente lagartixa logo se tornava tiranossauro rex. Se os ilustres lorpas que gerem os nossos bancos e as empresas do PSI fossem comparados a esta nossa Relochica, pouco passariam de pigmeus face a Gulliver. E a preços muito mais módicos.
Vamos lá ver agora como derivou a palavra PUCHEIRO, nesta forma de entrada na língua que leva o nome de LEI DO MENOR ESFORÇO. Diga-se a talho de foice que, ao menos as palavras entravam e eram assimiladas; agora é uma algaraviada de siglas e de palavras emprestadas que arrepia: já ningúem diz AMA, mas baby-siter, ninguém merenda, todos lancham, ele é teen-ager, o open, o coffee break,... que sei eu!? quando se devia dizer tão só adolescente/jovem, abertura ou intervalo para café... Olhai os espanhóis: não basket, mas baloncesto, nem andebol, mas balonmano, não corner, mas saque de esquina, ...
Agora é que é: a palavra deriva do ESPICHO, já acima explicado; ora esta mesma palavra já é derivada por sufixação de PICHO (o ES vem do latim EX que significa movimento de dentro para fora, como em Ex-pulsar, por exemplo); como sabemos uma das funções do picho é essa mesmo de expulsar por jacto o líquido que está no ventre; daí a PICHORRO/A é um passo como vaso para aparar o líquido do espicho; a linguagem que diga respeito aos genitais é sempre castrada e isso parece pertencer a um inconsciente colectivo, que, um dia destes, logo vos trarei aqui, pelo que não admira que se alivie a conotação da forma mais simples - lei do menor esforço - de Pichorro derivou foneticamente por ditongação o nosso PUCHEIRO. Simples não é? Como o povo, e todos os que são competentes.
Como estamos também no início do ano lectivo, aqui vos deixo a questão: já vistes algum BOM PROFESSOR complicar o simples? Aposto que não, mas aqueles tarefeiros do ensino, que não preparam aulas nem se esforçam pelo seu brio e dos seus alunos, esses complicam... E então já nada é simples.
Para concluir e verdes que não há só cultura popular aqui vos deixo registadas as medidas internacionais e respectivos nomes para garrafas de vinho em vidro:

Nabucodonosor - 15 litros
Baltasar - 12 litros
Salmanazar - 9 litros
Galão - 7,5 litros
Matusalém - 6 litros
Garrafão - 5 litros
Jeroboão - 3 litros
Magnum- 1,5 litros
Garrafa - 0,75 litro
Púcaro - 0,5 litro
Meia garrafa -0,375 litro
Quarto de garrafa - 0,180 litro

Deste lado, vos deixo algumas medidas antigas:
Almude- 28 litros
Cântaro - 20 litros
Deca - 10 litros
Quartão- 7 litros
Cântara - 5 litros
Canada - 2 litros
Gafeteira - 1 litro
Quartilho - 0,50 litro
Meio Quartilho - 0,125 litro
Copo de três - 0,020 litro

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