quinta-feira, julho 07, 2016

A NOSSA FALADURA - CCXLIV - GALHANA

Desenho: Carlos Matos


Três eram as mulheres de pata galhana na terra xêndrica: Pieres, Nacha e Lorpa. 

Nenhuma era mais alta que 1,50 mas apresentavam um pé que, a bem dizer, se podia chamar de redondo. Mais pareciam uma raquete de ping-pong, tão espalmados eram. Faziam-me lembrar a minha bisavó Isabel que pisava carapetos de silva e esborrachava  até lacraus com a sola do pé. O calo era tal que quase - perdoe-se-me a ousadia - podiam levar cravos com ferraduras nos cascos em vez de sapatos. Sempre descalças - uma e as outras - nem o alcatrão a escaldar no pino do verão ou o gelo nos rigores do caramelo de algum modo as preocupavam. Podia dizer-se sem receio de errar  que eram absolutamente insensíveis na planta dos pés.

Se as três calhassem a pisar um alfobre, não nasceria uma única couve...

Pieres limpava ruas e estrada de tudo quanto fosse gravato. Andava sempre de molídia na cabeça e não sei como é que ela segurava verdadeiros ninhos de cegonha escarapuçados sem qualquer nagalho: uma verdadeira equilibrista...

Nacha julgava-se cantora: a sua voz estridente de cana rachada arrepiava e deixava meio mundo com pele de galinha. Zé Luís Barata, essa vedeta, especialista em aldrabices conjuntamente com Mnel Freitas, iludiram Nacha um dia dizendo-lhe que o António Sala e a Olga Cardoso a queriam ouvir ao vivo na Rádio Renascença e não fora o seu filho João Manel - o Salazar - de tantos roubos que fazia, a telefonar para o irmão Chico que era bombeiro em Lisboa, e Nacha apareceria na Rua Ivens, no programa da manhã, pronta para cantar a Senhora do Almortão, a Senhora da Póvoa e a moda de Castelo Branco da Eugénia Lima...

Lorpa dava conta de tudo e calcorreava desde o bairro à Lagariça e do cemitério ao Ribeiro cimeiro. Nada se passava nas terras xêndricas que Lorpa não desse conta e em primeira mão desse notícia na zona do Tribunal, quer dizer, no Batoco. Foi ela que anunciou o julgamento em tribunal de dois primos, porque ela (a prima) engravidara do tal primo e o relato era mais ou menos assim: " Tu não o negues, primo Chico...duas vezes mo pediste e três vezes o tiveste: uma vez a cavalo na carroça a caminho da Lameira da Pinta, outra na quelha funda, ali prós lados da tapada do bargão e a terceira na adega do meu pai, um dia que ele tinha ido à lenha para a minha mãe fazer as filhós... Tu não o negues, primo Chico” ...As minhas desculpas por alguma infidelidade na transcrição, mas  isto já se passou, vão para aí cinco mãos cheias de anos... Adiante...

Posso, todavia, afiançar-vos que a elas não as afectava, pelo menos pelo lado dos pés o reflexo ou reflexos do texto que convosco a seguir partilho. Chama-se o homem físico-químico-eléctrico:

1-Antes de ser indivíduo o homem é um ser social.
Antes de ser racional é emocional.

2-  As emoções impelem a uma acção: ou fuga, enfrentamento ou indiferença.
Todas elas são reguladas por processos físicos/químicos/eléctricos.

3- Damos, então, razão a Feuerbach:

«Nós não pensamos, quem pensa é o fósforo».

4- Se repararmos, em absoluto, somos um processo químico:
4/5 do nosso corpo é água (H2O) e o resto é um pouco de cálcio nos
ossos, mais ferro, magnésio, sódio, potássio, zinco,…Química, enfim.

5 – e físico, pois claro, obedecendo como tudo às leis da gravidade e do
movimento, à temperatura do corpo, ao ritmo cardíaco, aos ciclos
circadianos,…

6- Eléctrico: quem não bateu já como cotovelo numa esquina e não disse que apanhou um choque?! Os influxos nervosos são eléctricos. A nossa relação com o mundo está dependente das informações que vão chegando ao cérebro. A mensagem vai e vem como a energia eléctrica nos condutores. Até as avarias são semelhantes: interrompem o circuito.

7-As emoções alteram o nosso bem-estar, proporcionando-lhe desde a euforia à depressão, até às psicoses e à loucura.
A causa de tudo isto são as nossas componentes hormonais.
As hormonas são as vedetas destes fenómenos. O nosso organismo fabrica essas hormonas através de glândulas específicas.

8 – Se estamos quentes em excesso as glândulas sudoríferas cumprem a função de nos arrefecer, se mastigamos, as salivares liquefazem os alimentos, se se nos irritam os olhos, as lacrimais irrigam o globo ocular, … mas há outras glândulas ocultas que lançam no organismo outro tipo de hormonas que são decisivas no nosso comportamento.

9- Do bom funcionamento hormonal depende muito o nosso sentir.
As químicas que elas segregam de forma autónoma – por isso o cérebro nem se preocupa muito dada a sua eficácia na resolução competente dos problemas que vão surgindo - são indispensáveis ao bem estar bio-fisio-psico- sócio-eco-religio-geo… do ser humano.

10- Se o pâncreas não fabricar insulina o excesso de açúcar pode causar a diabetes com tudo o que isso implica, se a tiróide não for regular a carência ou excesso da tiroxina altera gravemente o relacionamento com o mundo e com os outros, se as supra renais não produzirem adrenalina pareceremos umas lesmas, se as gónadas não cumprirem as suas diferentes funções seremos uns indistintos sexualizados, …

11 - Mas é a nível do cérebro – esse órgão superior do nosso organismo - que o mais decisivo de passa.
Não é por acaso que juntinhas, mesmo no centro do córtex (acreditando no mapa cerebral) se situam as funções determinantes e as glândulas respectivas: o hipotálamo, a hipófise, a amígdala, o hipocampo,… e cada uma dela segrega uma ou mais químicas.

12- Nem nos damos conta mas até quando adormecemos são essas vedetas que nos regulam, e quando comemos também, e se sentimos sede ou apetites sexuais são ainda essas glândulas que nos estimulam ou inibem.

13 – Um pensador contemporâneo, húngaro, disse que o homem é o produto melhorado da evolução da matéria. É como que a sua refinação.

14 -Contas redondas: o ser humano é uma máquina com uma engrenagem muito complicada e o sistema relacional entre as diferentes peças está muito longe de ser conhecido. Do ser humano sabe-se tanto como do oceano: quase nada.

15- Apreciemos sumariamente o papel de algumas hormonas e, concretamente daquelas que interferem directamente no nosso comportamento diário e têm implicações no relacionamento com os outros.

As hormonas são neurotransmissores e actuam directamente sem precisarem de “ordem” do sistema nervoso central, que só depois se dá conta do que resultou dessa interferência autónoma.


16 – Serotonina: reponsável pelo bem estar, pelo estado de calma e tranquilidade, lassidão;
Dopamina: actua directamente sobre a nossa disponibilidade para a acção, liberta energia para enfrentar situações não habituais;
Norepinefrina: facilita a apreciação de situações e ilumina na selecção da alternativa correcta;
Tiroxina: decisiva na homeostasia comportamental: o seu excesso dá irritabilidade constante e a sua carência uma incapacidade reactiva e sonolência continuada levando à abulia;
Insulina: reguladora da quantidade se açúcar no sangue e, portanto, se ela for em excesso conduz ao aumento inevitável do stress;
Noreadrelina: capacita para uma sobreatenção em situações mais complicadas.

17 – Há alimentos que facilitam a sua produção e outros que a impedem ou reduzem.  Por isso, às vezes, temos apetites específicos.
Esses  alimentos não são exclusivamente comestíveis: podem ser tácteis (uma carícia, ou um estalo), visuais, (uma paisagem encantadora ou uma serpente), auditivos (uma música relaxante ou uma discussão arreliadora)…

18 -  Mas melhor que todas esta potencialidades organísmicas somos nós e a nossa personalidade os responsáveis maiores pela aquilatação e  modus operandi  face a uma situação concreta. Mais ainda se for resultado de uma relação entre pessoas.

19 –Foi talvez Vygotsky quem pela primeira vez e de forma fundamentada chamou a atenção para a importância do nosso ambiente social nos primeiros tempos de vida.
Foi ele que provou que todos os nossos comportamentos superiores radicam na nossa socialização e enculturação.

20 – É assim que leitura, escrita, comunicação, linguagem, abstracção, criatividade,…, assentam nas bases sócio económicas em que vivemos.
Enquanto indivíduos estamos no ponto de encontro entre o orgânico e o social e não há dúvida que uma alteração cognitiva influencia os estados emocionais e que estes contribuem decisivamente para as flutuações cognitivas.

21 – Os estados emocionais são filtros sempre presentes na nossa tomada de consciência do mundo envolvente.
Ora a interpretação do mundo é feita pelo cérebro e se este está bem irrigado por um coração calmo e alegre, faz uma leitura diferente daquela que faz quando o sangue que lhe chega vem dum coração triste e agitado.

22- É aqui que voltam à baila as nossas hormonas já que não podemos parar para dar ordem para elas actuarem. O nosso cérebro substitui-nos e o sistema nervoso actua por nós. Se ele estiver saudável a resposta é a melhor e se estiver doente a resposta pode não ser a mais adequada. O simpático e o parassimpático agem por nós.

23- Num mundo como de hoje onde tudo é efémero, onde não temos tempo para ter tempo, um sistema nervoso saudável resiste melhor às vicissitudes, ocorram elas onde ocorrerem: casa, família, trabalho, instituição,… É consabido que hoje por hoje se instalou o individualismo e,…,

24 – Se vivermos numa situação de stress crónico o nossos sistema imunológico fica depauperado e, em consequência, as nossas resistências são diminuídas e acabamos por nos deixar vencer pelas situações em vez de lhes conseguir resistir de forma inteligente e criativa.

25- Sempre que há relações interpessoais há atritos: desde o lar, à instituição, à sociedade. Nada há que satisfaça a todos com satisficiência como queria Herzberg.
Afinal foi o Caim que matou o Abel e não ao invés: o mal e a inveja é que ficaram: a honradez e a honestidade morreram.

26 – Basta que numa instituição haja um perverso para, tal como no cesto das maçãs basta uma podre para contaminar todas as outras, para, dizia, todas as relações interpessoais viverem num ambiente de desconfiança, frio, azedo e intratável.

27 – De sua natureza, o perverso bate e foge, mente, camufla, morde por trás, achincalha, desqualifica, atenta contra a dignidade das pessoas, não tem princípios éticos e a sua consciência não o remorde.

28- Há sempre que desconfiar se alguém nos incumbe de uma tarefa e não nos fornece os meios para a cumprir. Pode muito bem ser que se inicie aí uma perseguição muda mas contínua…é o que se chama mobbing ou acosso profissional.

29 – Quando nos perguntamos a nós mesmos «porquê eu, porquê a mim, que mal fiz eu para merecer isto», algo vai mal porque já nos estamos a sentir injustiçados e isso mexe connosco… Mais a mais se pusemos no trabalho que cumprimos o máximo da nossa competência e afinco.

30 – Daí ao stress é um passo e as consequências podem ser muito complicadas: já não restam dúvidas da relação directa entre os distúrbios emocionais e as perturbações cardio-vasculares, digestivas e imunológicas; problemas de integração social, irritabilidade constante, insónias, agressividade desajustada, dificuldade de concentração, esgotamento, AVC, enfarte, úlceras, colites…

31- O Poder e o anseio por ele e consequente desejo de manutenção é muitas vezes a causa de toda esta perversidade. É um maquiavelismo renascido. Mais a mais num mundo como de hoje onde os grandes valores da ética clássica se perderam e o humanismo perde para um materialismo e consumismo desenfreados.

32 – A ideologia neo-liberal, hoje reinante, conduz inevitavelmente a uma voracidade de pessoas e bens que se repercute no seio de pequenas instituições como uma escola por exemplo.
A liberdade quando exagerada leva ao descalabro e à desavença permanente, ao desejo de vingança e à ausência de compreensão e inter ajuda.

33- A competência dá lugar apenas à competitividade e todos os meios são legítimos desde que favoreçam os desígnios de quem detém o poder.
É o cumprimento do reino do instinto mais primário, de um niilismo arrasador, de uma transformação radical do homem.

34 –É aqui que entra a resiliência, essa capacidade que um homem de bem, de personalidade íntegra e de força de  vontade indomável ( sem ferir os outros) senhor das suas capacidades e rendibilizando-as ao limite, se levanta face às maiores desventuras, atrocidades, injustiças,…

35 – A resiliência é a não desistência face a contrariedades, é a capacidade mais que física, antes psíquica e social de, ao longo do ciclo de vida, saber viver com a idade que tem e adaptar-se a todas as circunstâncias não se deixando abater por nenhuma. A resiliência implica uma visão positiva de tudo o que nos acontece. Mais que resistência é ultrapassagem.

36 – Muitas vezes a superação de dificuldade é difícil se não impossível por parte de uma pessoa sozinha: é aqui que a saúde do próprio, dos amigos, dos companheiros de profissão, da entidade hierarquicamente superior e até dos familiares, médicos e outros agentes se torna necessária porque,

37 - Nenhum de nós é melhor do que nós todos juntos.