domingo, novembro 27, 2005

A NOSSA CRENDURA -I

Lembrei-me de trazer à mnese algumas crenças, crendices, lengas-lengas, rezas e outras tradições que o tempo vai apagando na inexorável sucessão de dias e noites. " Cada noite páre um dia" e "porque atrás de tempo, tempo vem" a verdade mesmo é que, aos poucos, algumas formas de estar e viver se vão esboroando, ruindo anacronicamente e, ao fim, desaparecendo. Não vamos ser lamechas com uma ideia de um retorno ao passado, ( o sebastianismo é tão típico português!...) mas também não vamos condenar à partida quem tal não merece. Aprendi com Sophia que o decisivo é "ter saudades do futuro" e que, ao contrário de Joaquim de Carvalho, que defende que a saudade é exclusiva do povo luso, no seu Ensaio sobre a Saudade, mais próximo fico do professor Lloyd, que vê também a saudade no gesto feliz de um cão ao abanar o rabo, qual limpa- pára- brisas em dia de chuva intensa, ao ver o dono, mesmo que seja anos passados, como o demonstra claramente o de Ulisses quando, incógnito, pretendia entrar em casa para aquilatar da fidelidade da sua Penélope, vindo da sua Odisseia.
Dizem os nossos companheiros menos novos que" o tempo tudo leva e tudo traz", o que, bem vistas as coisas, não é em absoluto verdade, porque muito do que vai nunca mais volta.
Comecemos por uma lenga lenga:

Sarra madeira
no cu do zé Peneira
lá vem o leão
c'a tranca na mão
feijões p'ra mim
cagalhões p'ra ti

ou estoutra

pipa nova, pipa velha
foi ao mar arrebentou
aqui está meus senhores
quem se cagou

prossigamos com uma oração:

nesta cama me deitei
sete anjos nela achei
três aos pés
quatro à cabeceira
Nª Srª à dianteira
Nª srª m'apareceu
e Nª srª me disse
tu drume e repousa
não tenhas medo
de nenhuma cousa


Mas... baságueda, sem estória, perdia a tarimba. Cá vai ela:
Nosso senhor encontrou-se um dia com o diabo. Rivalizavam entre si acerca de quem era o mais poderoso e o mais esperto. Iam caminhando e chegaram a um chão todo cultivado, onde reverdesciam umas batateiras de " alto lá com elas". Diz Nosso Senhor para o diabo:« Vês aqui esta magnífica plantação?» « Claro» , disse o diabo.
«Então dou-te a escolher : queres ficar com a parte de cima ou com a parte de baixo ?» O diabo vendo a viçosidade das batateiras, floridas e com muitos frutos pendentes, apressou-se: "quero por cima!", Nosso Senhor disse-lhe: «então: está bem. Quando vires que estão capazes, ceifa-as e recolhe-as que eu cá virei buscar o que ficar por debaixo da terra,.» O diabo aguardou mais uns dias, poucos- que a pressa de ganhar o cegava - e ceifou a rama da batata. Nosso Senhor passados dois dias lá apareceu e arrancou as batatas, encheu o forro e comeu durante todo o ano, enquanto o diabo via as folhas a murcharem e os frutos a não ter qualquer utilidade.
Furioso dirige-se a Nº Senhor: "Tu já sabias. Tens que me conceder a desforra. " Nosso Senhor pediu-lhe que escolhesse o que quisesse. O diabo encontrou uma seara já com as espigas pendentes. Disse então: "Vamos apostar sobre esta seara." Nosso Senhor lá o convenceu a esperar um pouco até que acabasse de comer e dirigiram-se para a seara. Chegados ao sítio de onde a seara proporcionava melhor vista - o chamado PENEDO GORDO - o diabo propôs:" vês esta seara? Eu agora quero ficar com a parte de baixo". Nº senhor concordou. Quando o grão já estava grado e bem sazonado, Nº senhor ceifou, levou para a eira, malhou e arrecadou. O diabo esperou mais uns tempos convencido como estava que o fruto agora iria engrossar ainda mais e por fim decidiu-se a arrancar o restolho. Constatou que mais uma vez se tinha enganado. Como não tinha vergonha nenhuma e perder era o que menos queria - a vaidade emerge sempre -,voltou junto de Nº Senhor: "Até aqui foi a brincar, mas a partir de agora é que vai ser a sério. Quem ganhar desta vez é o melhor de nós dois". Nº Senhor, impávido: « escolhe o que quiseres" . O diabo esperou que as árvores florissem, e:" O que primeiro comer um fruto de árvore é o melhor"! As amendoeiras estavam todas floridas, naquele espectáculo magnífico que conhecemos e, logo o diabo: "quero ficar com o fruto daquela árvore" . Nosso Senhor: «Pronto, de acordo»!
O diabo, para aparecer logo com o primeiro fruto e poder cantar vitória, montou cama debaixo da amendoeira e nem de lá saía. Só que, entretanto, Nosso Senhor foi comendo nêsperas, macãs, pêras e o que mais de fruta havia e até oferecia ao diabo, que raivoso, roía as unhas até ao fundo do dedo.
E, já agora, ficais a saber que para sacar carapetos de silva do calcanhar , o melhor que há é unto sem sal. O unto sem sal é enxúdia de galinha doméstica guardado em papel de cartuxo em buraca onde rato não entre.
Para tirar espinhas de chicharro espetadas na garganta, nada que chega a papas de linhaça a ferver onde a pessoa se senta e ao gritar por causa da escaldadela, expulsa a espinha. Outro dia logo vos conto esta história...

quinta-feira, novembro 24, 2005

A NOSSA FALA XXXVII - GIRALDINHA ou GERALDINHA

Riconho era maluco pelos Rolling Stones. Mas não só: adorava uma cantora francesa de nome Sheila.Uma senhora febra! Riconho não se cansava de olhar para a capa do disco onde ela aparecia em todo o esplendor dos seus cabelos negros compridos e uma pele morena de revirar os olhos. Riconho tentava cantar ao desafio com Sheila: Écoute ce disque /et il te dira/que l'amour existe/et je pense à toi./Écoute ce disque/et tu comprendras/que l'amour existe/car je pense à toi. De polaina na mão, enquanto afagava os aros de uma porta - Riconho é carpinteiro - o gira discos passava a Sheila e Riconho arramalhava no seu francês de orelha: Écoute ce disque...
Paralelo no apreço por Mick Jagger e Keith Richard, só mesmo o camarada Licas e Chibeto. Licas acima de todos com o indispensável: «I can get(no) satisfaction.»Impagável o prazer de ouvir Licas a cantar e a dançar este monumento musical. Havia outros artistas na aldeia que um dia poderão vir à liça...
Riconho tinha uma bicicleta que partilhava com 'o nosso Mário'. Aos Domingos um e outro rivalizavam no cabelo com Brylcream e cabelo à Elvis. Apareciam no adro por essas 11 horas. Aí começavam as histórias e a disputa pela liderança da conversa. Engraçado é que nessa altura se tratavam por VOCÊ:
«Cale-se, você é um abre-nó! Errar uma perdiz daquelas que quase lhe cagava na cabeça!!» dizia Riconho;' Nosso Mário não se ficava atrás:"Atão e você?! sentado no barroquinho do Rela, a lebre a dormir-lhe aos pés, armado em otário, vai lá com um gravato a enxotá-la, grita Hei!, manda-lhe dois foguetes e nada! se eu lá não estivesse para a ardulhar, você via-a mas é ir embora! você é um azelha!" Era um prazer apichá-los e nisso tanto eu como Coiote Pete éramos exímios. Era mesmo um gozo!
A malta juntava-se e era risada de arrebentar até ao santo sacrifício da saída da missa. Nessa altura miravam-se as 'chicas' e toca para o almoço.
Invariavelmente Riconho alugava o táxi do Fatela e ia para a giraldinha! (ou geraldinha)
Duma vez foi com toco jabão à Covilhã ver um filme com música dos Rolling Stones, feito num espectáculo ao vivo em Los Angeles e onde ocorreram alguns assassinatos. Tinham sido os Black Angels da segurança privada dos Stones... Riconho que teve que pagar o bilhete ao Tonho Fatela, Tôco, fora o táxi vem pior que estragado:" ganda porcaria de filme! nem uma puta de uma cena erótica, nem uma boa tranca de mulher".
Quase ia perdendo o gosto pelos Ralingstanes, como ele dizia. Pela Sheila é que ele nunca perdeu o gosto: Écoute ce disque....
Outra amiga da giraldinha era Maria Bila. Ia a tudo quanto era excursão: Sra do Incenso, Sra do Bom Sucesso, Santa Luzia, Senhora de Fátima, Santa Maria Adelaide, e o que mais houvesse, Nazaré, Óbidos ou Peniche, Viana do Castelo, Serra da Estrela, tudo. Queria ir sempre nos lugares da frente, e era engraçada quando se apresentava, toda equipada, para mais uma corrida uma viagem: saia comprida reluzente de nódoas, ensebada a ponto de ser impermeável e blusa de chita de manga comprida com três botões no punho, bem vincada, aí com umas quatro linhas de ferro de engomar, boné a preto e branco na pála, escurecido como fora de tanto o pôr e tirar, alpergatas espanholas, que permitiam vislumbrar uns tornozelos encardidos com samarras de negridão, impenetráveis a qualquer doença que pretendesse invadi-la de fora, bolsa de merenda que mais parecia alforge de besta e, claro, uma cabaça de vinho a tiracolo cruzada no ombro por um baraço cuja cor não aparece em nenhum catálogo cromático. Um verdadeiro asseio, esta ti Maribila.
À hora de comer lá puxava ela da sua bolsa e depois de abrir o nagalho que a fechava, metia a mão e sacava-a com um bolo de leite, um pastel de bacalhau, três ou quatro azeitonas, uma talhadita de queijo, punha tudo no colo da saia e: "Eh! cachopos e cachopas, querendens provar da mnha merenda?" Logo uma a repreendia:«rais ta parta Maria. Atão tu misturas tudo dentro da bolsa? olha pra isso,tudo misturado umas coisas com as outras! Aí é que está um preparo! rais ta partissem.» e ela: «Atão?! Cá dentro não há prateleiras, cá fora escusa de as haver» e Eu: "MAINADA"!
Era trabalhada para voltinha esta ti Maribila. Pouco faltava para quase andar tanto na giraldinha como o nosso Riconho.
O pai, o ti Domingos, já desdentado com o queixal de baixo quase a comer o nariz, tanoeiro, punha aduela em pipo, martelava aro, compunha tampo, estancava fenda, bem lhe dizia: «eu no sei que vida há-de ser a tua ...sempre na giraldinha...

sexta-feira, novembro 18, 2005

A NOSSA COMEDURA -I - A MELOREJA

Iniciamos aqui um entremeado na nossa faladura. O homem nem vive só de pão nem só de palavras. Se o pão for bem acompanhado sabe melhor. Embora o povo na sua filosofia bruta diga quando algo lhe ocorre contra os seus desejos que "mais vale pão seco do que tal conduto", bom, bom,é que o pão e o conduto sejam aprazíveis ao paladar e que a sua degustação não sofra quaisquer contratempos. «Que vos faça bom proveito à barriga e ao peito são as contas que eu lhe deito.»
Nesta altura do ano começam as matanças e nada melhor para ensaiar a nossa comedura do que uma boa meloreja. Assim comédado!
A matança tem regras:
1- Determina-se o dia da matança
2- Convidam-se os amigos/familiares e verifica-se se não há empanques por parte de ninguém.
3-Na noite do dia anterior a vítima fica sem comer, por mor de não ter a tripa cheia ao outro dia.
4-Trata-se de preparar todo o apoio logístico: tripa, laranja, algodão, cominhos, tesouras e facas, loiça adequada, lenha com fartura, alho sal, pimentão do bom, azeite do melhor, tábuas de migar a carne, tabuleiro para as tripas ou até alguma carne, aventais...
5- Cedinho, por essas sete ou antes chegam-se os homens junto ao local da matança
6-O lume já está aceso e um pucheiro com aguardente desmanchada com água e açúcar amarelo já começa a circular para matar o bicho, metem-se as botas na ala, esfregam-se as mãos e
7- Prepara-se uma corda para atar o animal por uma pata
8 - O dono salta para a furda e "nalguda! oh nalguda!!" coça-lhe o samarro e tenta por bons modos enfiar a laçada da corda numa das patas traseiras do bicho
9 - A bem ou a mal o porco/a lá deixa os aposentos e é conduzido até junto da banca
10- Tomba-se o animal, o matador aperta-lhe o focinho com um baraço, sobe-se para banca,lava-se a barbela com água quente, limpa- se com um pano, ata- -se bem à banca quando não até a uma árvore que esteja perto,os homens põem-se a postos um agarrados aos presuntos outro às mãos, o matador faz o sinal da cruz, abre a matadeira e pica o desgraçado, aparece o alguidar com sal e uma mão sempre a mexer o sangue que cai, vão tirando algumas farropas de coalho de sangue,o porco grunhe até dar as últimas.
11- Desapertam-se cordas e baraços, vai mais uma rodada de aguardente desmanchada e doce e
12 - antigamente com colomo de palha, agora com maçarico ,chamusca-se a preceito evitando queimar as mãos de quem raspa. São vários os utensílios usados, desde facas velhas até chapas de lata,ou mesmo as unhas das mãos.Tiram-se as unhas ao quadrúpede e inicia-se a lavagem com água quente.
13 - Quando já branquinho de todo faz-se o cu, e o picho se for macho, ata-se com um baraço,abrem-se os nervos, mete-se o chambaril e ala
14-Pendura-se o animal,limpa-se bem limpinho
15 - Embrulha-se rapidamente uma talhada de queijo fresco e quatro azeitonas retalhadas, uma dentada de pão e limpa-se o esófago com um tinto do novo apanhado do espicho de esteva e
16 - Inicia-se a abertura do ventre, aparam-se as tripas para o tabuleiro e enquanto o matador vai separando as peças e um vai à procura de duas sovinas pra deixar as banhas suspensas, dois ou três homens deitam-se à separação das tripas, ajuizando da sua qualidade.Há sempre algodões prontos para alguma fatalidade
17 - Sobe-se o caldeiro suspenso das cadeias, põem-se as trempes do lume, a meloreja é rapidamente migada e começa a cozer dentro da caçola ou de uma sertã de duas asas; batatas com casca são postas a cozer em panela de ferro.

18 - Aí vai a receita:

deita-se para a sertã aí obra de 2dl de azeite e logo a carne, esmagam-se alhos,tiram-se-lhes os grelos e atiram-se para a sertã, vai- se mexendo com colher de pau até a carne ficar meia frita, duas folhas de loureiro bem lavadinhas,picante a gosto,pimentada caseira se houver, rega-se com água, sempre a pouco e pouco,já que carne deve ficar entre o frito e o cozido, prova-se, rectificam-se temperos, e quando estiver quase pronta, um bom meio litro de vinho tinto para a confecção mexendo sempre, tiram-se as batatas do lume, descascam-se ou pelam-se, chama-se o povo para a mesa, despeja-se a sertã para um barranhão, parte-se pão com fartura põem-se as batatas em travessa e, cada um com seu garfo,pica na carne e molha a batata no molho e toca a comer. Não raro aparece um esparregado de nabo para dar o verde ao prato.O vinho é sempre a encher até o barranhão ficar limpo.
A seguir pode-se alindar esta classe de cozinhado com um prato de sopa de couve traçada e massa da grossa em puré de feijão encarnado, um arrozinho de osso da suã, fígado e soventre, sempre com azeitona retalhada e culmina com um galo ou um coelho bem guizado. Para sobremesa um arroz doce, pudim de ovos, tigeladas, e no fim um café e um bagaço do rijo para arrebater.
Às 11 os homens estão despachados e bem comidos e "ala para o sol".

quarta-feira, novembro 16, 2005

A NOSSA FALA XXXVI - CATANOS M'A CHAPÉREM

Ti Domingos Feduchas era um “engenhocas”. Deitava a mão a tudo: pingo em caldeiro roto, meias solas em bota gasta, remendo em agueira de telhado, enxertia de carapiteiro em pêra marmela, mergulho de videira, ilhó em cabresto, portado em capoeira, capador e matador de porcos, corte de cabelo, construção de carros de bois... Foi aliás um destes que lhe abalou a reputação: meteu-se a conceber e a construir um carro de bois dentro do palheiro, com rodas de pau revestidas a aro metálico e tudo, mas só no fim é que deu conta que não cabia na porta. O povo, quando soube, riu-se muito e, claro, teve choradela de Entrudo.

Era tempo de castanhas e a mulher, Ti Angélica Chamiça, entretinha-se a morsegar as martainhas que tinha comprado naquela manhã, enquanto Ti Domingos ajeitava o borralho. Avaliando oportuna a hora, lançou:
- Ó Domingos, atão sempre vamos a Lesboa ao casamento da filha da afilhada ó não? Já só faltam 15 dias e temos de dar uma resposta à rapariga. Tamém parece mal no irmos no encontras tu?

Ti Domingos Feduchas era avesso a viagens. A filha que tinha na França muito insistia para ele lá ir, mas ele, "está quieto!", "vinde cá vós se querendeis". Não sentia necessidades de sair do seu mundo onde tudo dominava. Era um verdadeiro homem do campo. Bastas vezes, quando chovia, calçava as galochas, agarrava no guarda-chuva de pastor e passeava pelos campos, sem destino, só para ouvir a água a cair e sentir o cheiro da terra molhada. Ele conhecia os caminhos como ninguém, sabia de cor a quem pertenciam todos os bocadinhos. Admirava os que os apresentavam arranjadinhos, reprovava o desleixo e o abandono. Claro que nenhum se comparava ao seu chão da quelha funda, à sua vinha da raivosa ou à sua horta na saramaga. As suas oliveiras e árvores de fruto apresentavam-se sempre devidamente limpas, a vinha exemplarmente podada e escavachada, a horta alinhada a régua e esquadro, com a ajuda de dois ferros e um baraço. Na agricultura, mandava ele hóstias. E no resto, que viesse o primeiro, mesmo apesar da história do carro de bois. Agora, tinha de ir a Lisboa, “rai's parta o diabo”. O vivo ficava entregue ao irmão, ficava bem entregue.

No dia anterior à partida, deu uma volta por todos os prédios, inspeccionando tudo demoradamente, como se se despedisse deles por muito tempo. Ti Angélica passou o dia atarefada a encher 4 cestos de verga com repolhos coração de boi, azeitonas carrasquenhas retalhadas, adoçadas à pressa à custa de uns escaldões, queijos de cabra, enchidos vários saídos do azeite, garrafas de jeropiga, figos secos, nozes, frascos de tomatada e de pimentada, malgas de marmelada nova, alhos, cebolas, ovos, pão e bicas de azeite cozidas no forno das traseiras. Já noitinha, ao Ti Domingos coube coser a serapilheira que tapava os cestos com guita e agulha de albardeiro. Foi nessa altura que Ti Angélica se lembrou que não sabiam a hora da camioneta. Aflita, corre Lagariça abaixo, sem mesmo se assustar com a botelha em forma de cara e uma vela acesa lá dentro que os garotos tinham pendurado numa oliveira. Estava tudo escuro e silencioso, mas ela não deixou de bater enquanto não lhe responderam do lado de dentro.
- Ó Rosa, atão a qu' horas é que passa a camineta das seis pa CastéBranco?

Como era de prever, Ti Domingos não se deu muito bem na capital da Nação, encafuado nas 4 assoalhadas do 10º andar frente, onde a afilhada morava em Odivelas. Custaram-lhe a passar aqueles 4 dias.
Na última noite, à ceia, descaiu-se para o afilhado que nunca tinha visto o mar. No dia seguinte, cedinho, foi conduzido ao Guincho. Embasbacado perante a imensidão, Ti Domingos Feduchas, homem simples, homem do rural profundo, soltou:
- CATANOS M'A CHAPÉREM! Já tinha ouvisto dezer qu’era grande, mas no fiz que fosse tanto.
O afilhado ficou-se de lado a apreciar, divertido, a expressão de espanto do padrinho, por isso não estava à espera que mesmo ali Ti Domingos Feduchas fizesse a sua análise de “engenheiro”:
- Ó Chico, o mar é bonito é poi! E grande com’á puta qu’o pariu…mas, o qu´ê gostava de ver era o paredão que aguenta tanta água.

quarta-feira, novembro 09, 2005

A NOSSA FALA XXXV - ÃIÃ

O café da Rosa é uma instituição. É ela a única que ainda mantém a traça original. Havia outros, mas a gadanha da morte já os ceifou : O Fatela, onde por estes tempos de chuva se jogava o fito e a raioula, o Chico Miguel, com talho ao lado e pocinho estreito e fundo com cesta presa por corda onde se refrescavam sumos cerveja e vinho ao natural - uma delícia -, O Zé Rolo, onde a Ti Maria Labouxa fazia jeropiga com laranjada Prazeres, açúcar amarelo e groselha, - uma purga - , o Zé Júlio com loja atrás para a troca dos taleigos e o Zé Cavalheiro que todas as semanas ia a Penamacor buscar a mistela para conceber um vinho branco que era a causa de muitas caganeiras do povo. Vá lá que a ribeira estava perto....
A Rosa também não foi sempre assim: Quando o Zé Augusto e a Rosa juntaram os trapinhos aquilo era uma casa em derrocada mais parecendo um palheiro. Ainda ajudei a subir as vigas lá para cima. Havia uma divisória que primeiro serviu de barbearia - o Zé Augusto foi ainda barbeiro - e depois funcionava como tasca com mesa de matraquilhos onde Tonho Branquinho, para além de se ufanar das suas capacidades pedreirísticas arreliava tudo e todos com os seus golos à cagadinha. A Rosa arranjava por lá uns petiscos de se lhe tirar o chapéu: lebres com couve, coelho bravo com batata cozida, meloreja, nacos de carne na caçola com entremeada e entrecosto à mistura e colorau com fartura, rolas estufadas, perdiz guizada, e o que mais houvesse! Eram poucos os dias em que, de Verão, eu jantava em casa.
Podia trazer aqui muitas histórias que se passaram dum e doutro lado do café/tasca da Rosa. Aí vai uma: Certa vez, um sábado, era para aí meio da manhã, um viajante todo bem posto entra na Rosa e« arranje-me um garoto se faz favor». A Rosa saíu, demorou-se um instante e sai-se com esta:« Desculpe lá mas agora não há por aqui nenhum; só está ali o meu, mas está a fazer os trabalhos da escola» . O homem começou a rir, a Rosa não achou piada: " ora o filho dum filho dum filho do diabo, hein! Não queria ele agora que o meu Zé Mnel deixasse de fazer as coisas da escola para o vir a aturar! Não queria ele mainada! Era só o que faltava! ÃIÃ!
«É assim mesmo Rosa! Uma mulher quer-se com génio! » diz o Tonho Pedro, alfaiate, que àquela hora já tinha enfardado aí umas dez ginjas com aguardente. «É preciso ter descaramento, um gajo que a gente não conhece a pedir para lhe arranjares um garoto! ÃIÃ! Eu mandava-o logo para a real grande puta que o pariu!»
É lugar comum dizer-se que a água lava tudo menos a má língua. Eu concordo. Só por isso, e não quero ser má língua, me atrevo a contar uma outra história ocorrida nesse fabuloso café da Rosa. Devo mesmo confessar, em abono da verdade, que em tempos não ainda muito afastados, não havia café mais saboroso que o da ti Rosa.Era um café marca ZULU. Acima de excelente. Mas como tudo o que é bom tem um fim rápido, também esse café desapareceu. Ainda bem que a Rosa não.
Aí vai a estória: a mulher do velho Melro chega ainda quase noite (embora fosse já madrugada) a casa de ter ido tratar do 'vivo' e encontra a filha Mariana toda nua na cozinha a tirar um prato de sopa da panela de ferro pendurada nas cadeias.«Atão que preparos são esses? Já não tens roupa para te vestires?» "Ai mãe, logo vossemocê apareceu; mas sabe: isto é o fato do amor!"(Esclareça-se que Mariana se tinha casado dois dias antes e por não ter ainda arrumada a casa para onde ia viver com o Amândio Solipa, tinha ficado a viver na casa da mãe, que naquele tempo não havia lua de mel).
A mulher do Melro apesar de tudo acabou por ter gostado de ter visto a filha como já havia muito não a via e até cogitou:« é jeitosa a minha filha! Não admira que dê que fazer ao Amândio!Bem bonda eu que nunca me apresentei assim ao meu Melro.»
A imagem e a frase da filha tornaram -se uma cisma para ela.Não lhe saía da cabeça aquela beleza de corpo e vieram-lhe uns apetites que há muito já não tinha e uma vontade enorme de naquela noite se encostar ao Melro que, coitado, também já tinha mudado a pena e devia ver mal que não reparava nela senão para lhe ralhar.
Rumina, rumina e decide-se.
Nessa noite a Mariana e o genro iam jantar à casa dos compadres e deviam vir tarde. O Melro andava à jorna, chegava cedo, comia alguma coisa e 'ala que se faz tarde! cama!'.
Até se arrepiava de ser capaz de fazer o que em todo o dia tinha andado a pensar.
Quando lhe pareceu que eram horas de o Melro chegar, ateou o lume, pôs lenha de calipo seca para a casa ficar bem quente e toca a despir. Só ficou com uns chanatos por mor do sobrado que lhe arreganhava a sola do pé.
O Melro chegou, subiu as escadas e dá de trombas com a mulher naqueles preparos:"tás maluca ou quê? Vai-te a vestir, dianho!Olha se por aí chega alguém! Rais a afundem!" E ela: «Sabes,Melro, hoje de manhã agarrei a nossa Mariana assim incourinha , chamei-a à atenção e ela : "ò mãe, tu não vês que isto é o fato do amor?"»Solta o Melro um som de chateado e sai-se:"Se querias apresentar o teu fato do amor devias tê-lo passado antes a ferro".
Esmoreceram os apetites da velha e só soube desabafar: ÃIÃ!