Tempos inefáveis eram aqueles em que, apanhado o comboio em Castelo Branco, a malta da região que, na altura, estudava em Lisboa e não era assim tanta que não se conhecesse, ocupava toda uma carruagem - às vezes até já estava parada na estação e depois era só atrelá-la à máquina - .
Embora a viagem demorasse umas boas cinco horas, o tempo não custava a passar. Não raro, e porque a carruagem era sempre a última e o comboio parava em tudo quanto fosse estação ou apeadeiro, lá apareciam uns fregueses das Benquerenças, do Retaxo, dos Amarelos, das Sarnadas e por aí abaixo. Aquilo era fatal: mal se acomodavam, o cesto da merenda era logo aberto e "são servidos"? Ai não que não éramos!
Quantas foram as vezes que o meu pai me dava cinco litros para oferecer à Senhora da casa onde eu me hospedava. Nunca o vinho chegou sequer ao Entroncamento. Depois comprava outro vinho e era esse que oferecia. Era a vida.
"Olha, filho, não botes a cabeça fora da janela do camboio que ele passa numa ponte tão rente, tão rente que já se contam por nove os que lá ficaram." Invariavelmente era assim. E continuava: "Vê se te portas com trambelhos de gente...Já és um homenzinho!"
"Olha, filho, não botes a cabeça fora da janela do camboio que ele passa numa ponte tão rente, tão rente que já se contam por nove os que lá ficaram." Invariavelmente era assim. E continuava: "Vê se te portas com trambelhos de gente...Já és um homenzinho!"
Voltas dei eu para descobrir donde raio vinha este termo TRAMBELHO. Lá descobri: o trambelho era uma espécie de registo que regulava a entrada da semente na mó - se se queria a farinha fina apertava-se o registo, se mais grossa alargava-se o trambelho.
Assim também aquele que se porta comédado e tem os cinco alqueires bem medidos tem trambelos de gente o que não tem regra e ora aperta ora alarga sem rei nem roque, não tem tino, é um taranta. Ah! o registo aqui não é o assento no livro do registo civil. Não. É uma roda dentada na ponta de um eixo, rachado ao meio, que atravessava os candeeiros a petróleo na parte metálica onde assenta a chaminé e servia para regular a chama desse candeeiro. Havia-os também nos fogões a petróleo e com a mesma finalidade: regular a potência da chama.
Figura inolvidável da xendrada era o Zé Bondito. A paciência que a ti Maria teve em aturá-lo só a divindade a saberá. Só apanhava uma bededeira por ano: de 1 de Janeiro a 31 de Dezembro. mesmo nos bissextos. Duma vez o encontrei eu deitado na valeta ali ao fundo da curva do muro do Marcelo, em frente da casa do Geadas... Chovia sem trambelhos nenhuns. Água com fartura!
Vinha eu de levar uma bilha de gás ao Rancheiro, lá por detrás do cemitério, com o incansável carrinho quadrado, boina na cabeça e bota cardada, quando, depois de passar a ponte, começo a ouvir um rosno compassado. Apuro a orelha: era o Bondito!
"Ó tzéi?Tzéi! "clamei.... "rais o afundem... "Voltei atrás àquilo do Cavalheiro e lá engatei o Fainica, que era vizinho do Bondito, e o João Feijão, que só veio a troco dum copo. Os três lá arrastamos Bondito para debaixo do alprendre do Geadas, onde é agora a loja do Licas, mesmo na curva do aidro. Fui pôr o carrinho na garagem estrela, ao canto do Fatela por debaixo do baturel da velha Batista e vou-me à casa da ti Maria, quase ao cimo da Lagariça, paredes meias com o velho Comandante e bem perto da velha Passarinha, vedeta outra que um dia trataremos aqui comédado: - era Passarinha, porque era a parteira de serviço na Aldeia e, claro, tinha que ver muita passarinha - !
Bato à porta e lá oiço passos do lado de dentro, apercebo-me do aumento da luz no registo do candeeiro a petróleo : "quem está aí?" Lá me identifiquei, já a velha Pássara estava no cimo do balcão, a Maria Chan Chan já vinha com uma pinha acesa a ver o que se passava, o velho Sarrabeco com a voz catarral "que é lá isso,home? e até a mari troncha, que antes queria ter um filho,(e teve oito antes de o seu Jabão se enforcar) aparece à esquina tentar ver à luz dum fósforo que acabara de riscar na lixa da caixa, brada: «O que queres à mulher a esta hora, ó fedelho" tu num sabes as horas? já num há trambelhos nenhuns!-
A ti Maria, é preciso dizê-lo, era uma das forneiras da comunidade, já dormia - que o dia começava às quatro da manhã para ela quando deitava lume ao forno da D. Carminda, do outro lado das escolas velhas, um pouco acima do Tonho pitincoiro e em frente do velho Forelho. (Isto é que são dados geo- estratégicos! qualquer rasca, curioso em G.P.S.. daria no forno com estas indicações).
Voltemos à narrativa...
Lá venho com a Ti Maria - esta malta, a bem dizer, dormia vestida - direitinhos ao alpendre do geadas, mas ... Bondito, viste-o!
Ao fim de algum tempo lá o achamos na rua de trás, portinhola desapertada e a cantarolar: "Ela já anda na rua!ela já anda na rua! côtche!côtche! côtche!"
«Vergonha da família, vocêi num sinvergonha deste porte, seu porco sujo?!» e ele: « ela já anda na rua! ela já anda na rua!... Caminhe à minha frente para casa, seu badalhoco!"
O Bondito, aquecido como estava, nem arrastava o pé! A água continuava a cair!
"Estou chapado!" digo para mim. De repente penso:" vou a buscar o carrinho , sento lá o velho e...ala!."Foi um instante.
Empurrei o velho lagariça acima, levei-o em braços até à soleira e deixo-o para a ti Maria: "bem hajas tu! meu home! bem hajas tu! é a minha cruz.... O Comandante ouviu e conheceu a minha voz:"és tu ,Changoto?! "Sou, meu avô!" Não tardou já estava a descer as escadas com a candeia baixa, a abrir a porta da adega, ali mesmo em cima do barroco que tanto servia de eira como de passadeira de figos:" ó porra! estás molhadinho que nem um pito! anda lá pra cima pró pé do lume!" A custo lá lhe disse que não, que bebia um copito e me ia à cama!
Aos poucos lá se foi convencendo: "vês o que dá a falta de trambelos do Bondito! Ê tamém gosto dele mas vêi lá se algum dia me viste borracho. Um homem tem que honrar o tchapéu que traz na cabeça. A canalha é que pode perder o tino! um homem tem que andar com trambelos de gente. "
«Já me vou avô! Fique descansado que eu tenho trambelhos, assim comédado! Dê-me a sua bênção» "Deus tabindçôe, mê filho! e te faça um home de bo sorte!Amén"
Desci a Lagariça sem trambelos nenhuns com o carrinho a saltar na carecada das pedras de quase meia calçada e só parei ao lume, já o meu pai dormia e a minha mãe estava em cuidados. Quis saber a história. Contei-lha, deu-me um beijo, e deitei-me.
Quereis mais trambelhos que estes?UM XXXXXIIIIGRRRRRRRAAANNDDDDEE!