sexta-feira, julho 25, 2008

A NOSSA FALA - CX - NHONHAS

Domingos Lúcio, mais conhecido por Domingos Lucho, vivia sozinho lá para os lados da quinta do ramalhão. O tugúrio que habitava era compartilhado por ratos quantos bastassem, um cachorro com as convenientes pulgas e, no Verão, algumas carraças, que Domingos lhe tirava, quando delas dava conta, no meio de um praguejo que até fazia sangrar a resina do pinho que tinha quase em frente da porta.

Domingos governava-se com pouco. Criava na horta a maioria da alimentação e o que lhe faltava era adquirido na aldeia com parcimónia que a vida não estava - e agora ainda menos - para desmandos.

Não valia a pena contratá-lo para tarefas de campo que fossem exigentes. Apenas se podia contar com ele para a apanha da azeitona grossa -bical, cordovil e real - para conserva e para as vindimas, podas e enxertias. Tudo o mais que fosse trabalho de campo- ceifa, mondas, sachas, sementeiras, malhas, e até na construção serviço de serventia,.. - isso não valia a pena. Não pagava um copo a quem quer que fosse nem tão pouco bebia se lhe pagassem.

Dos poucos que se podem gabar de ter bebido uns copitos com ele devo ter sido eu. À sombra do pinho lá apareceram o garrafão, um tanoco de pão e uma malga com umas azeitonas divinais.

Colhia vinho para todo o ano e só quando via que a vinha já não se estragava é que vendia a quem ele muito bem entendia uns garrafões do seu néctar. Posso dizer-vos que era vinho de eleição. Os belos rufetes e arintos davam uma têmpera e um paladar típico do melhor vinho de aldeia.

Era famoso na enxertia, mas passava o dia a queixar-se das costas e se o cobridor - sabeis vós o que é um cobridor? - que normalmente era quem o contratava, não o fosse acelerando ele era o que se podia chamar um verdadeiro NHONHAS. Era artista no queixume. A ideia, está bem de ver, era fazer render o serviço. A enxertia é trabalho leve, mais de habilidade, jeito e sorte, e convinha a Domingos ir-se fazendo de nhonhas porque assim sempre enchia o fato - e se ele comia, meu deus! - e sempre facturava mais uma jorna. A verdade é que eram poucos os enxertos que lhe falhavam e rivalizava com Zé Lopes. Dizia que tinha aprendido com o velho CUCHARRA mas nunca lhe chegou aos calcanhares. Como o Cucharra ainda está para nascer quem... vai lá vai...

Vamos agora, à moda de Camilo, interromper a narrativa para nos determos numas meditações profundas sobre a flexisegurança, a mobilidade ...

O velho Comandante - aposto que já o tínheis esquecido -, o velho comandante, dizia que « um homem tanto é canho como direito - ou seja, se quem vem trabalha à direita eu abro o corte e ala, vou sempre na frente para ele ver que o facto de eu ser canho não me impede de competir com ele, seja em que serviço for. E era. O velho comandante que era canho era igualmente desenvolto à direita. Assim também eu: onde acabo começo e não há diferença no rego, gaiva, ou corte. Um artista é o que eu sou. Andai para cá.

O que eu queria saber é se o nosso Socratezinho, agora Robin dos Bosques que quer tirar aos ricos para dar ao pobres - pobre diabo - se não fosse político se safava como engenheiro. Aí é que eu gostava de ver se a mobilidade e a flexisegurança pegavam... Não tardava nada estava nos supranumerários e ia para a mobilidade à força. Era limpinho! Quem é NHONHAS é sempre NHONHAS. Tal qual Domingos Lucho. O Socratezinho é de LUXO! É um NHONHAS de Luxo. Olá se é. Ides ver como ele vai dar a volta por cima à rapaziada. E sempre vos digo que se ele limpa isto com maioria então é que tendes vós que vos deixar de nhonhas, que ele é artista, junto com o Frei tuck do Mário Lino e o JOE Pequeno do Teixeira dos Santos, mais aquela figurinha nemátoda do Pinho, ELE(S) É (SÃO) ARTISTA(S) PARA VOS FAZEREM A FOLHA. Não vos ponhais a pau que, tal como Domingos Lucho ele vai saber arrecadar e vós a pagar sem nhonhas.

sexta-feira, julho 11, 2008

A NOSSA FALA - CIX - PÔR A PITA FORA

Quando de põe a pensar, o povo, habitualmente, raciocina simples, mas encerrando profundidade e, não menos verdade, verdade. Os ditados e adágios populares são disso claros exemplos. Quanto se põe a falar, o povo, habitualmente, é espontâneo, prático e económico, em termos lexicais, fonéticos, sintácticos e semânticos. Claro que convém introduzir aqui a condicionante da matriz cultural e geográfica onde a fala se fala, o que faz com que as falas sejam simples e entendidas sobretudo para quem partilha dos mesmos códigos semânticos. Eis este humilde blogue e essa modesta rubrica "a nossa fala" a atestá-lo.

Quer a estrutura do raciocínio quer a do linguajar popular se hão-de poder arrumar, desconfio, segundo uma matriz de categorias. Os quadros teóricos da lógica filosófica, da psicologia cognitiva e da linguística, entre outras disciplinas, haviam de ajudar a compreender a estrutura das operações lógicas mentais e discursivas que informam o raciocínio de uma pessoa cujo universo só reconhece as leis newtonianas, e nem todas, mas sobretudo, privilegia o lado prático e pragmático das coisas. Deixemos esse trabalho para outros trabalhos e fiquemo-nos pelo trabalho de campo, porque, como bem se percebe, simplicidade de raciocínio e de discurso não parece ser o forte deste linguarejar. Reconhece-se que há muito a aprender com o Ti Ambrósio e com a Ti Perpétua, como a seguir se verá.

Ti Ambrósio Patanisca e Ti Perpétua Pardala formavam um casal peculiar, um par ímpar. Físicamente, ele era alto e seco e metia os pés para dentro, ela baixa e rechonchuda e caminhava com os pés a marcar as 10 e 10. No temperamento, ele era discreto e ponderado, senhor de pensamentos lineares mas cautelosos, ela era palradora e espontânea, adepta do juízo fácil que, bastas vezes, resultavam em boato. Ti Ambrósio caía para o lado do cepticismo e da dúvida metódica, achava desnecessário tirar o chapéu quando tocava a avé-marias, bem como não via utilidade em contar a sua vida nos buracos do confessionário. Ti Perpétua tinha uma quase doentia veia religiosa, na qual misturava indistintamente a fé na Santa Igreja Apostólica Católica Romana com a fé na crendice popular mesmo na mais primária. Ti Ambrósio deu-se conta deste traço da personalidade da mulher logo na noite do casamento. Como ela se recusava a apagar a luz, ele deduziu, logicamente, que lhe estava a dar um sinal claro sobre a sua vontade em continuar com as brincadeiras que dois jovens recém casados é suposto terem na cama. Viria a descobrir, desconsolado, que afinal, ela só não se atrevia a tomar a iniciativa de apagar a luz porque, acreditava piamente, aquele que o fizesse, morreria primeiro.

Ti Ambrósio apreciava o final das tardes de Verão no jardim do Batoco onde a vida da aldeia transitava em julgado mas, por vezes, se abordavam também temas mais profundos e complexos. Naquela tarde, enquanto à mesma hora se continuavam as celebrações do solstício do Verão em Stonehenge, o Batoco discutia o derivado popular do confronto paradigmático do geocentrismo versus heliocentrismo.

Partidário do primeiro, Ti Mnel Talha Burricos agarrava-se inabalavelmente ao argumento empírico:
- Essa agora! Atão o sol no s’alevanta do lado da Espanha e no vai andando, andando, andando, até se deitar do lado do Fundão?
- E à hora da comida está sempre ali em cima de Aldeia de João Pires, no falha – junta-se Ti Fcisco Furdas.
O Senhor António, que ganhara o direito a tratamento deferente por via da sua condição social de descendente de família mais abastada e por ter dedicado mais tempo à caneta do que à enxada, não perdeu a oportunidade de afirmação que a ocasião e o tema lhe proporcionava. Pedagogicamente, tratou de abrir a mente dos companheiros de vara para as certezas científicas da astronomia e da física, conjugando com a denúncia dos falsos juízos induzidos pelo recurso apenas aos sentidos, rematando:
- O facto de se ver o sol a andar no céu ao longo do dia, não quer dizer que ele anda à volta da terra. Isso era o que os antigos pensavam porque era essa a sua percepção, era isso que eles viam.
Ti Ambrósio ouvira com atenção. E, sem nunca ter lido ou sequer ouvido falar de Wittgenstein, surpreendeu o improvisado professor:
- Ó Senhor Antonho, atão se os antigos diziam que o sol é que andava à volta da terra porque era isso que eles viam, atão o que é que nós vemos agora, se afinal é a terra que anda à volta do sol?

À mesma hora, no batorel da casa da Ti Perpétua, a que se juntara uma dúzia de vizinhas da rua da Lagariça, o tema era mais terreno, partilhando todas o esforço de consolar a dor da Ti Amélia Refa, que tinha enterrado o homem trêsantontem. Cada uma à sua maneira, emprestavam à prostrada viúva a sua solidariedade incondicional. Ti Perpétua, na sua vez, exibiu a sua faceta mais positiva quando colocou a sua mão sobre a da outra e lhe disse, com voz chorosa:
- Deixa lá Amélia, isto é só desgraças. Olha, a ti morreu-te o homem, a mim, foi-me a pita a pôr fora.