sexta-feira, maio 15, 2015

A NOSSA FALADURA - CCXXXVI - PRI(E)ADA

Ti R’ção Chicórrela, baptizada Ressureição - no domingo de Páscoa do ano em que a Alemanha assinou o armistício reconhecendo a derrota na 1ª Grande Guerra -, pelo padre Zé Maria na velha pia côncava de granito talhada por mestre pedreiro na arte de manusear martelo e escopro, ficou viúva muito cedo. Ambrósio Balatreco, o seu homem, finou-se com uma cirrose, contraída à conta dos para cima de muitos copitos mal comidos. Senhor de uma gola larga, o tinto escorria sem empancar em nada até ao estômago. Era homem para precisar de 1 segundo e alguns milésimos para despejar um vaso de meio quartilho, mais ou menos o tempo que levava o líquido a sair do seu continente. Havia quem lhe pagasse copos só para apreciar o espectáculo.

Ambrósio ficava priado quando a mulher o ia chamar à taberna, numa tentativa de adiar o seu inevitável fim precoce. Foi vã a sua ralação e ignoradas as humilhações sociais que lhe infligiu. De maneiras que Ti R’ção teve de se fazer à vida sem a ajuda do seu Ambrósio para criar os 5 filhos que ele ainda teve tempo de lhe semear no ventre. O seu principal ganha pão provinha da venda de produtos hortícolas no mercado do Sabugal.

Quem sobe do Vale de Lobo para o Terreiro das Bruxas há-de reparar que a flora vai mudando, e por alturas de Santo Estêvão parece que se entrou noutro continente: a temperatura baixa, começam a rarear as hortas, as oliveiras e as árvores de fruto, em compensação, passam a abundar os prados, os castanheiros e os carvalhos negrais. E toda esta transição se opera em menos de 2 léguas. Para cá da Senhora da Póvoa cultivam-se boas hortícolas e boa fruta, para lá de Santo Estêvão, produz-se batata de excelência, castanha e carne tenrinha.

Foi neste quadro de complementaridade territorial que Ti R’ção encontrou uma oportunidade de negócio, um nicho de mercado: no tempo, carregava a carroça de nabiça, tomates, pimentos, beringelas, feijão verde e demais hortícolas e rumava a norte. A mula Andorinha estava ensinada e não precisava de muitas instruções para se meter direito à quelha funda, "às endireituras da fonte Carvalho, subida ao talefe do salgueirinho, passagem pela capela do Meimão, às endireituras do castanheiro das merendas e depois era sempre a descer até ao Sabugal". No regresso, acarrejava sobretudo batata de semente e castanha. Levava sempre 2 ou 3 dos seus filhos para lhe fazerem companhia mas sobretudo para a ajudarem nas contas que ela não sabia fazer. Quase ninguém o sabia mas a Ti R´ção, nalgumas viagens, meteu-se a contrabandista, feita com dois irmãos de Quadrazais a quem fazia chegar café e açucar e recebia alpergatas e fazendas que entregava a um primo de Castelo Branco. Uma oportunidade de negócio perigosa, mas rentável, facilitada pela situação económica espanhola que ainda lambia muitas feridas da guerra civil.

Uma vez, meava Junho, ali ao fundo da vila na água férrea, é interceptada pelo cabo Estrela, agente da Guarda Nacional Republicana conhecido pelo zelo com que cumpria o seu dever de fazer cumprir as leis do Estado Novo, a bem da Nação, que lhe pergunta pela licença da carroça.

O Estado Novo impunha leis peculiares. Careciam de licença o uso de isqueiro, as bicicletas, era proibido beber coca-cola, jogar às cartas nos comboios, dar beijos em público, as senhoras professoras tinham de pedir autorização ministerial para se casarem, etc. Ti R´ção não tinha licença nenhuma, tão pouco alguma vez lhe passara pela cabeça que era preciso ter. Não facilitou o nosso cabo e passou-lhe a respectiva multa de oitenta mil e quinhentos escudos. Mesmo analfabeta, logo ali percebeu que o lucro do dia ia todo para pagar a multa. Preada, fez o caminho de ida e volta a rogar conjuras ao intransigente agente, praguejando-o a ele e a toda a sua ascendência.

Na semana seguinte, no mesmo local, volta a ser parada pela GNR. Ela, orgulhosa exibe uma licença:

- Desta já no m’apanhandeis filhos d’um rai, aqui stá a licença, bem haja quem m’a emprestou.