quinta-feira, janeiro 26, 2006

A NOSSA FALA - XLIV - A MANDINGA

Zé Borges ( o prometido é devido) era mais aldrabão que os políticos em campanha eleitoral (façanha julgada impossível). Era uma bomba de palavreado! Sempre bem arreado, bota reluzente que de vez em quando era reforçada no brilho com tinta coureina e cuspo do Zé guerrilhas, onde Borges se dirigia para quase nelas se ver ao espelho... de andar meio gingão, frequentemente metia as mãos nos bolsos e, ao mesmo tempo, puxava as calças para cima, deixando ver o cano da bota e mais ainda umas meias alvas, bordadas pela D. Lurdes com cinco agulhas - um esmero -; ficava nessa altura com a aparência de ser um pouco mais alto do que realmente era - era uma das mandingas que utilizava para provocar ilusões; entrava nas tascas mas não bebia nem pagava; o interesse era sempre meter conversa e achar campo para enfiar mais umas boas galguérias. Não raro, aqueles que o conheciam de gingeira, serviam-se da mesma mandinga e puxavam as calças para cima ou subiam para cima dum qualquer banco que estivesse à mão e cantavam o "arregaça, arregaça a calça, que se soltou da alsa"...Aí Zé Borges via que o peixe já não rendia, servia-se de uma tosse gutural, embolsava uma escarreta e atirava-a para o centro da estrada, dizendo invariavelmente: "ah! puta! com um tremoço no meio parecias um ovo estrelado"; o cabelo estava sempre nos trincos e de tamanho curto, próximo do rente: é que Zé Borges fora marinheiro, dizia ele, CAPITÃO DE FRAGATA, e dispunha-se a mostrar a jaqueta com os galões a quem o quisesse comprovar - mais uma mandinga - .
Contava ele que em África tinha visto uma jibóia com 15 metros e que com um arrocho tinha partido um dente de marfim a um elefante e que duma vez se viu frente a frente com um leão: calmo, como se impunha, agarrou um pequeno estadulho e quando o leão abre a boca para o apertar nos dentes afiados, enfia o estadulho na boca do rei da selva que, ferido no céu da boca, mete o rabo entre as pernas e foge acagaçado com a calma de Borges. Em Lisboa o comboio andava 30 metros debaixo de água e na aldeia tinha ele tido uma ovelha que tinha parido e criado oito gatos.
Um dia, Chquim Mouraria, mais conhecido por Malagoto, genro de padre Zé, mandador nas eiras onde se fazia a malha a mangoal (ainda vos lembrais dele?), velho Prim, aquele mesmo que um dia enquanto o velho Remédios, viúvo já, descia à loja para trazer um pucheirinho de vinho e dar um copo ao Prim, ele, o mal agradecido, com um gravato, saca a farinheira que o velho cozia na panelinha de ferro e, apercebendo-se que ele já subia, enfiou-a na fralda da camisa e, embora a dor da escaldadela fosse enorme, aguentou firme e emborcou o copinho ao velho; quando chegou à tasca do Fatela mostrava a cicatriz da escaldadela: "só queria uma farinheira mas fiquei com duas," dizia o malandro), bom, mas então era o Malagoto, o velho Prim, o Marrafa (que passava os dias sentado no baturel do Fatela ou do Chico - era só atravesar a estrada -, e mais ainda o velho Corlha, Zé Espantado, Zé Ferrenho, Manuel Freitas e Zé Luís - uma equipa de rara envergadura em matéria de artimanha - combinam espetar uma ao Zé Borges. Depois de muitas hipóteses Malagoto decidiu: pagamos um copo ao João Feijão, para o Borges não desconfiar e é o Feijão que lhe vai dizer que a cadela aqui do Ferrenho pariu dois borregos e que os dois tinham uma cabeça para a frente e outra para trás e mamavam à vez com a boca em cada uma das tetas da ovelha. E foi.
O Feijão, ao princípio, ficou relutante mas com mais uns copinhos lá se foi ao Zé Borges e dar a notícia. Não tardou que Borges aparelhasse a burra - animal invejável, sempre bem calçado de ferradura e aparelhado com gosto, albarda sempre coberta por manta de farrapos, arreios reluzentes, e, que eu me lembre, a única burra que tinha estribos - e se pusesse a caminho à casa do Ferrenho que ficava para lá das Portelas, no Batcharel, mesmo em frente ao pinhal do Chico Sarapião, regedor que era, ao tempo.
Ferrenho, bem instruído por aquela equipa de mandingas, fez-se de novas e mais atiçou Zé Borges: « Ó Sr. Zéi, ele verdade, é, sim senhor, mas veio cá o veterinário e levou-os para a Vila. Só se cá vier amanhã!» Volta Zé Borges à aldeia prometendo que voltaria no dia seguinte. E voltou... mas não encontrou o Ferrenho e ficou sem ver nada outra vez. Fez a viagem todos os dias da semana. Esperou o Ferrenho à hora de missa no Domingo e lá combinaram dia e hora.
Ferrenho via-se agora encalacrado porque já não sabia como descalçar a bota. Calhei a passar, passo a mão pela careca do Ferrenho, Mnel Freitas sai-se logo:"oh! tu és cma elas: só gostas dos carecas!",ouvem-se os risos do costume, passa-se por cima e acabo por saber a história contada pelo Malagoto que, proibido como estava dos médicos de tocar em pinga de álcool, se oferecia agora à mulher para ir tratar das pitas à capoeira, onde tinha escondida uma garrafinha com aguardente da rija. A pobre da mulher nunca desconfiou desta mandinga do Malagoto! Abalou cedo, coitado! Bem,... mas adiante
Digo eu ao Malagoto:« Óh Chquim, agora só vos safais se disserdes que, dada a raridade do fenómeno, o Estado vos confiscou os borregos e os levou para o Museu de Arte Natural».
-"Diz lá outra vez!" Eu repeti umas quantas até que o Ferrenho foi capaz de dizer direitinho a tramóia.
Malagoto, que ao tempo, trabalhava em Castelo Branco assujeitou-se a perder meio dia só para ver se o Borges aparelhava a besta e ia ao encontro do Ferrenho a ver dos borregos.
Borges, militar como fora, - tratos são tratos - à hora aprazada lá estava. Ferrenho portou-se à altura.
Nesse dia no adro não se falava de outra coisa.
Borges, só tarde e às más horas é que se apercebeu da mandinga.
Tendeirinho, figura rara na aldeia, pedreiro em Campolide, esposo amado e dedicado de Mari Chã Chã, numa de filósofo da àgora grega, sai-se com uma de se lhe tirar o chapéu:«Bem feita! ia por lã e veio tosquiado!»
Até o Tonho Bondito e o Zé Balão tiraram as mãos dos bolsos e bateram palmas!

quinta-feira, janeiro 19, 2006

A NOSSA FALA XLIII - ENCRENCAR

Em cada aldeia deve haver um homem assim - sim, refiro-me apenas a eles. Um homem sempre pronto a dar à língua, a meter o bedelho em tudo o que não lhe diz respeito, cuscovilheiro (não constava no meu dicionário, não sei se a grafia é esta, mas deve entender-se com o mesmo significado que habitualmente se atribui a certas mulheres e - sinais dos tempos modernos - também a alguns homens), gozão, malino, desconfiado, provocador, convencido, uma espécie de torgalho, mas refinado. Avelino Falabarato era um desses. Um dos melhores sítios para o ver em acção era na sessão de sueca da tarde de domingo. Não importava que estivesse a jogar ou de fora, era certo e sabido que ele encrencava a jogatana e o resultado era sempre o mesmo: valentes discussões que divertiam uns e exasperavam outros. Tudo porque o outro não jogava as cartas que devia ter jogado. Irritante para todos era a sua maldita balda para desconversar e para dar um sentido maldoso às palavras.

Quando um dos seus compinchas se despedia era inevitável ouvi-lo:

- Já vás? Anda vai e vem qu’inda m’aqui agarras.

Havia os que já lhe conheciam a faceta e nem ligavam. A maioria, não apanhava o sentido, e ainda que atento, raramente o visado levava a mal. Uma vez, o Alfredo Mamanaburra levou, e não foi de modas: deitou as mãos à portinhola das calças de fazenda do Falabarato e... apertou com força, como quem espreme os tomates para fazer a tomatada. Avelino teve de aguentar a dor e a galhofa das testemunhas. Quando era ele a despedir-se lá vinha:

- Atão vá! Já me vou qu’hoje vou a dormir com uma mulher casada.

Em situações raras, tinha boas tiradas como aquela no casamento de um sobrinho em que o 4º quente da ementa era cozido à portuguesa e a senhora de decote generoso lhe encheu o prato de cenouras.

- Ó mnha senhora! atão vomecêi cuida que eu não tenho cenoura? Ande tire lá isso que já tenho que chegue.

- Olhe que dizem que faz bem aos olhos…- quis ela ser ingenuamente simpática.

- Pois, está bem! Mas ande que eu vejo bem a carne…

Sempre que apanhava um novato no grupo, desafiava-o para a aposta habitual. Mostrava-lhe a mão fechada, assim como que a jogar à moedinha e atirava:

- Tu queres apostar a todo o dinheiro de nós os dois juntos que eu tenho mais dinheiro aqui na minha mão do que tu?

O outro, se calhava ter a carteira bem recheada, e calculava que seria impossível o Falabarato conseguir guardar numa mão fechada a mesma quantia, atrevia-se:

- Olha que perdes! Vamos lá atão a ver.

Triunfante, o Falabarato exibia uma moeda de 1 euro e perguntava:

- Eu tenho aqui 1 euro. Mas é meu, tu não tens dinheiro nenhum teu aqui na minha mão.

Naturalmente, a aposta considerava-se saldada se o perdedor pagasse uma rodada.

Doutra vez, arranjou um sarilho com a Lurdes Malagota que vinha da horta com um caldeiro cheio de cabeças de nabo na molídia e o Falabarato não resistiu:

- Ó Lurdes, os teus nabos parece que não são lá grande merda. Os meus é que são bons. Olha, eu tenho lá um nabo que tem talo no grelo.

A Lurdes não a apanhou, mas o homem dela sim. Valeu o Feduchas que se pôs no meio e convenceu o ofendido que o Falabarato estava a brincar.

- Ele que vá a mangar c’a puta qu’o pariu, ora o filho dum corno.

Eram conhecidos outros jogos de palavras da mesma laia que o Falabarato gostava muito de usar, provavelmente desde que comprara uma cassete do Leonel Nunes na Senhora do Incenso: ele era “o meu feijão verde tem fio”, “ a minha uva tem cacho”, “a minha couve tem talo no olho”, ou “o bacalhau tem rabo”, etc.. Um malabarista da palavra, o Avelino Falabarato.

Mas aparece sempre um mais esperto. Um dia, ia ele a caminho da vinha armado de tesoura e serrote para a poda, no coldre de cabedal enfiado na correia das calças, passa pelo chão do Moca que estava armado de guilho e marreta a rachar lenha. Vira-se o Falabarato:

- Ó Moca, dou-te 20 euros se me venderes aí o monte da lenha.

O Moca olha para as 3 toneladas de lenha de azinho, sorri para o brincalhão do Falabarato e responde:

- Se me deres os 20 euros, sou capaz de te vender a lenha.

Avelino Falabarato ficou surpreendido com a oferta, mas não podia voltar atrás. Agarrou na nota de 20 e passou-a para as mãos do Moca.

- Pronto! Negócio feito, vou já a buscar o meu ratatau e ainda levo hoje a primeira carrada.

- Levas o quê? Tás parvo ó fazes-te? Eu disse que aceitava os 20 euros para te vender a lenha, não disse quanto é que queria por ela.

- Ai o rai! Já m’encrencaste!

quarta-feira, janeiro 18, 2006

Karraiazinha

MADALENA

(foto retirada devido a processo de desactualização irreversível)



Ano II

Tenha tudo de bom
O que a vida contém
Tenha muita saúde
E amigos também

sexta-feira, janeiro 13, 2006

A NOSSA FALA - XLII - CATREFA E/OU CATREFADA

Isto hoje vai ser mais variado: começamos por uma lição de fonética e acabamos com uma receita de coelho doméstico com couve de repolho.
Então é assim: Catrefa deriva do latim CATERVA. Significa GRANDE QUANTIDADE. Vergílio, na Eneida, e cito de cor que agora não tenho aqui a obra à mão, escreve assim: Et regina, magna cum stipante CATERVA virginum, dum maximus pontifex ad aram ascendebat... Aí vai a tradução: e a rainha, acompanhada por uma grande quantidade de donzelas, ao mesmo tempo que o sumo sacerdote se dirigia para o altar, lá no alto ...
Como é por demais sabido, o povo faz a língua e segue frequentemente a lei do menor esforço. Isto é mais visível quando algumas consoantes são muito próximas em termos de som e pronunciação ou quando a articulação da palavra oferece alguma dificuldade. Nesse caso, dá-se a volta por cima. Foi o que aconteceu com a passagem de caterva a CATREFA: Dá-se uma metátese (reparai que se passa de CATER a CATRE e depois verifica-se um abrandamento do V ao F. Reparai que estas duas consoantes se pronunciam quase da mesma maneira: são labiais, só que o V é sonoro e o F é surdo. Vai daí, o povo não está com meias medidas: fica CATREFA, e não se fala mais nisso. E ficou. Voltaremos a esta temática um dia que calhe!
Era Sexta-Feira à noite.Verão assim quente comédado! Junto ao muro do Marcelo estava eu com Coiote Pete, Jorge Alguitarra, J.J. Cabeças, Barbaças e Abraço de Basuca. A conversa entre cachopada vai sempre a dar ao mesmo: gajas.
Avaliavam-se várias figuras, quando nisto, passa o mardlhequinho (chamavam-no assim porque não era capaz de pronunciar bem os dois RR e como tinha marrecos e estes iam até à ribeira em fila indiana, ele quando os queria de volta à capoeira ia à ponte e punha-se: "mardlheco mardlheco, mardlheco, mardlequinho!...."O facto é que os marrecos acudiam à voz e aí iam perfilados atrás dele como os gansos iam atrás de Konrad Lorenz.
Diz Coiote Pete:« OH! se o mardlheco vem a esta hora, dorme cá. O velho tem uma coelheira dum corno. Fui lá outro dia com o Tero e vi. A porta está fechada com um baraço num prego e o cão é manso como a terra.» E vai o Cabeças:« porra, mas o carregal é longe!» Logo atalha Alguitarra:« vamos de tchasso.»« Só há uma», diz o Barbaças...E eu: «Vou buscar a do meu velho e empresto-a. Eu a roubar os coelhos não vou, mas posso-os cozinhar e emprestar a bicicleta.» Nisto o irmão do Basuca passa na bicicleta e é logo interpelado: «Ó puto, vai a pé para casa e deixa ver a chincha.» O cachopo protestou mas a ameaça do Basuca resolveu tudo num instante. Aí vão eles: Coiote Pete, Cabeças e Basuca. Eu fui pelos garfos, colher de pau, louro e a bifar uma bilha de gás , um redutor com tubo e um fogão Presmalt de dois bicos que a minha mãe levava para as excursões, alguitarra arranca a buscar o vinho e o pão e o barbaças foi-se por um tacho dos grandes, cebolas, azeite e alho. Agarramos no carrinho do gás e ala: toca a andar para a mina de Toco Jabão. Havia lua... E que não houvesse! todos conhecíamos o caminho.
A páginas tantas diz o Barbaças: «Atão e comemos os coelhos com quê?» « Com couves é que era bom,» digo eu. E eles: "Com couves? A Ti purificação tem-nas lá boas debaixo da laranjeira, daquelas do repolho." «Vai lá e traz aí umas quatro ou cinco, enquanto eu e aqui o Alguitarra montamos a bancada». Assim foi.
Pelos atalhos das Taliscas, entretanto, os outros três lá iam em busca dos coelhos do mardlheco. Foram e vieram.Trouxeram só um. Um, pensávamos nós: era uma e prenha!
Coiote Pete, viemos depois a saber, apalpava o lombo (nenhum se lembrou duma pilha nem dum fósforo) e agarrou aquele(a) que lhe pareceu maior, meteu-a para dentro do saco, pôs no suporte da bicicleta e: ala milhano!
Depois de uns quantos praguejos e alguns a dizer que já não comiam e de alguma narrativa lá nos decidimos a esfolar a coelha. Dizia Coiote: «fugiam como os ratos e era uma catrefada deles, no se via nada o que quereis? fosseis lá vós»! Entretanto quando a barriga da coelha é posta à luz da lua vimos que tinha dez caçapos.«Mal empregada.Trazia uma caterva de coelhinhos. Meu amigo, vai mesmo assim»! E foi.
Como só havia um tacho e para adiantarmos tempo eu já tinha as couves cozidas e vá lá que o ti joão caçador tinha um balde perto do poço ali ao lado, senão, não tinhamos onde as deitar.
A coelha era rija, demorava a cozer e para variar a conversa ia a bater sempre ao mesmo: gajas.
Vou eu:«porra! não se fala mais em gajas hoje. Contamos uma história engraçada cada um e pronto, até que a coelha se coza maneirinhas.» e foi assim que o Cabeças arranca com esta: «Atão não querendens lá ver que o padre zé pedro, outro dia, vira-se para o tzé sardones e atira-lhe:-"ó Sardones, olhe que você ainda não pagou a côngrua nem deu a esmola para o santo!" E o Sardones: «Oh senhor prior: eu tenho uma catrefada de filhos, farto-me de trabalhar para ver se não passam fome... Bem, a congra é lá com a minha mulher, mas a esmola ao santo, pago-lha já: o senhor prior empresta-me o santo durante um mês e eu sustento-o junto com os meus filhos. »O pessoal que ouviu pôs-se a rir e o padre desandou.
E nós também rimos e quase em uníssono: bem feita!
Ao fim de um boa hora lá se roeu a coelha!

1 -Alagar bem o tacho; não poupar o azeite : à vontade aí meio quartilho ou mais.
2 - Deitar cebolas migadas, alho e louro e o coelho migado grosso. Abaixar o lume e deixar cozer no azeite na cebola e no alho.
3 - Testar se o garfo já espeta na carne e juntar as couves (não esquecer que as nossas já estavam cozidas para ganharmos tempo). Tapar o tacho deixar cozer, lentamente.
4 - Quem gostar de umas batatas pode acrescentar depois de as couves já terem suado.Temperar de sal a gosto e picante se gostarem.
5- Sempre em lume brando
6- Juntar vinho tinto ou branco, avivar o lume, deixar apurar e servir.

NB: reparastes que não leva água. A água é apenas a resultante do próprio coelho e das couves. A importância de cozer sempre em lume brando e com o tacho sempre bem tapado, está aqui. Doutra forma tende a esturrar e lá se vai o petisco.

Muita atenção: não vale roubar o coelho!

terça-feira, janeiro 10, 2006

A NOSSA COMEDURA -IV - BATATAS (solteiras, assadas na água e à cão reles)

Sem dúvida uma das bases alimentares "do nosso povo" (onde é que eu já ouvi isto?), o tubérculo da batateira, para além de ser de muitas variedades permite quase tanta modalidade de confecção como o nosso querido e fiel amigo da Terra Nova, Noruega, Pacífico,...
Hoje vou trazer-vos aqui três possibilidades de confeccionar a batatinha, assim comédado. - E COMÉDADO, não custa nada - .
Iniciemos então a confecção:

a) BATATINHAS SOLTEIRAS

Arranjai uma boa caç(ar)ola, ou caçoilo de barro, ou melhor ainda uma travessa da mesma argila.(Em alternativa um bom tabuleiro (lata) de alumínio, daqueles de meter os bolos de leite ou os esquecidos, em tempo de boda, ) e
1 - começai por descascar as batatas ( se forem das novas e pequenas basta que as raspeis). Cortai aos cubos ou quartos, ou longitudinalmente em forma triangular;
2 - descascai também umas quantas cebolas;
3 - disponibilizai uns tomates e pimentos e meia dúzia de dentes de alho;
4 - cortai em fatias "ad hoc" umas tiras de entremeada, umas rodelas de chouriço;
5 - lavai duas ou três folhas de louro;
6 - no fundo da caçola vertei generosamente umas gorgoladas de azeite;
7 - envolvei as batatinhas aos cubos com as cebolas grosseiramente cortadas, os tomates rachados à balda e meia dúzia de tiras de pimento, as folhas de louro e os alhos espalhados, as fatias de entremeada e as rodelas de chouriço;
8 - fazei uma mistura de vinho branco e água em percentagem mais ou menos idêntica, dissolvei o sal necessário e um pouco de colorau. Podeis mesmo aquecer um pouco para que a liquefacção seja melhor conseguida. Despejai sobre o preparado anterior. Quem gostar de picante pode meter, a gosto;
9 - Metei no forno aquecido. (Bom, bom é em forno de lenha, mas não havendo, serve o do fogão doméstico) aí obra de uns trinta ou quarenta minutos e no caso de começarem a tostar sem estarem devidamente cozidas/assadas convém tapar com uma folha de alumínio.

N.B. - Acompanham divinamente qualquer prato de carne seja ela confeccionada no forno ,ao lume ou no fogão!

b) BATATINHAS ASSADAS NA ÁGUA

1 - Ponde um recipiente, com o tamanho que considerardes necessário para o número de comensais, com água, a ferver;
2 - utilizando de preferência sal grosso, vertei nessa água umas boas quatro ou cinco mãos cheias de sal;
3 - antes ainda de levantar fervura e com o sal já derretido introduzi as batatas com casca e bem lavadinhas, que devem ser adequadas, como se fosse para assar no borralho/cinza (a chamada batata miúda);
4 - a água deve apenas cobrir as batatas. Deixai cozer destapadas;
5 - quando estiverem prontas escorrei, deixai arrefecer só um bocadinho e apanhai para um saco de plástico. As batatas devem apresentar um coloração esbranquiçada na casca, fruto do cloreto de sódio;
6 - entretanto tende já feito um molho à base de azeite, vinagre tinto de vinho, bocadinhos de folha de louro, e bastante alho a que tirastes o grelo e esborrachastes grosseiramente e colorau.
7- socai as batatinhas dentro saco que deve ser transparente para haver a certeza que são todas murradas, despejai o molho bem batido e servi de imediato, a fumegar.

NB- São excepcionais para peixe assado na brasa (bacalhau, chicharro, besugo, sardinha, corvina, ...) ou mesmo carne: entremeada, entrecosto, febras, frango, ...

c) BATATAS SALTEADAS À "CÃO RELES"

1 - Descascai as batatas necessárias e cortai em cubos médioS; lavai bem;
2 - servi-vos de uma frigideira anti-aderente para a qual verteis um pouco de azeite e uma pouca de banha de porco. (nunca deveis fritar apenas em banha que facilmente esturra e é insalubre);
3 - introduzi as batatas, avivai o lume, tapai o recipiente, deixai suar;
4 - escarchai, mesmo com casca, meia dúzia de dentes de alho;
5 - quando destapardes o recipiente, aventai com os alhos para dentro, salgai a gosto com sal do grosso; tornai a tapar;
6 - quando as batatas aparentarem uma coloração levemente acastanhada, no caso de vos apetecer, salpicai com um chirrichichi de colorau. Mexei e servi de imediato.

NB - acompanham bem, lombo ou lombinho de porco assado, frango corado, entrecosto e o que mais for de carne boa e saborosa. Se gostardes de um pouco de verde para dar cor, estas batatas casam muito bem com um esparregado de nabo, espinafre, (...) ou mesmo roupa velha.
Facílimas de confeccionar, demoram pouco mais de 5 minutos num bom fogão e admitem quase todo o tipo de carnes para sua companhia.

Aqui vos deixo três desafios. Ousai experimentar e dizei-me dos resultados!
Bom apetite!

sexta-feira, janeiro 06, 2006

A NOSSA FALA - XLI - PI(E)LHARANCA

«Onde raio tenho a gaita que a não acho?» Perguntava o Mné Grande. E eu: " Ó Mnel isso já não é uma gaita ; é uma p(e)lharanca! deve ser parecida com a tripa duma farinheira cozida acabada de comer"!»Quando chegares à minha idade logo vês se não vais precisar dum peniscópio
Era um gosto vê-lo comer, a este pesado amigo.Tinha por hábito dizer que nunca na vida tinha almoçado:«só enganei o estômago
Sempre disponível: bastava que se lhe arranjasse um assento mais ou menos ajustado àquela massa informe e se lhe pusesse à mão o que fosse preciso ele fazer: descascar batatas, raspar cenouras, migar carne, e o resto - um pão dos grandes, um garrafão de cinco, uns nacos de presunto, queijo, malgas de azeitona retalhada e, por copo, uma garrafa - . Era assim: ia trabalhando, comendo e bebendo. Aí por essas onze já se ouvia o pigarro da sua garganta. Poucas falas, que quanto mais falasse mais ar entrava e mais se lhe irritava a garganta.Portanto: há que tapar a entrada do ar com mais pão e presunto e queijo e molhar bem a garganta para tudo escorregar comédado.Era só uma garrafinha de cada vez. Assim mesmo: uma garrafinha !
Ao almoço comia pouco- pouco é como quem diz: dois discos de sopa de feijão com couve e massa manga de capote, basta quanto pudesse ser, cinco batatas das grandes, uma massinha de borrego e uma travessa de esparregado de nabo por via dos alhos que catava a cada instante. Duma vez lhe vi comer três cabeças. Era aproveitado: sobrava pouco e, delicadamente perguntava: « as pelharancas, deito-as aos gatos?» às três mais ou menos começava a sesta. Até às cinco. Acomodava-se no assento e pronto, já só se ouvia ronco!
Quando era mais novo o nosso Mnel era trabalhado: arranjava sempre desafios no Domingo à tarde onde ele pudesse ser o vencedor e assim encher o fatinho sempre à mama.
Alguns dos que me lêem hão-de ainda lembrar-se das amoreiras no largo baldio da lameira - resquícios de uma pequena indústria artesanal- . A mais alta estava pegada à tasca do Cavalheiro. Não era raro que a rapaziada se queixasse e, mais ainda, as mulheres que tinham lavar as nódoas provocadas pela tintura da amora.(Se por acaso ficardes com as mãos sujas de comer amoras, o antídoto é lavar as mãos com amoras verdes. A roupa é que não se pode lavar assim) .
A pernada mais alta dessa amoreira tinha inclinação para o lado da estrada e o que se meteu na cabeça do Mné Grande?:«Pago cinco litros a quem me desafiar e chegar mais alto a subir a esta amoreira.» Depois de esperar que alguém aceitasse o desafio,acrescenta: «Cagões, sois todos uns cagões! Pronto: podeis juntar-vos cinco contra mim!» Aí, João 27, chico traitoiras, arrebenta canelas, zé encrencas e macuácua, aceitam a aposta. Impõem como condições que só poderia subir uma vez cada um, nunca voltar atrás à procura de melhor caminho e que o Mné Grande era o primeiro a subir.
A malta começou a juntar-se. Mné Grande ainda protestou, mas logo se ouviram vozes: "agora o cagão és tu"! .
Decidiu-se: embarra pela amoreira acima, galho após galho e com a envergadura dos seus quase dois metros, estica a mão direita, arranca um raminho e precura lá de cima: «Vistens todos donde cortei o ramo?» Confiante na vitória ele aí vem, sorriso franco, a encostar-se à parede. Arranca Encrencas, mas a falta da altura impediu-o de bater Mné Grande. Vai Traitoiras , mas um galho que se escavacou, obrigou-o a voltar atrás e pronto. Mnel não foi de modas: ´"ò Cavalheiro traz aqui 5 litros que alguém os há-de pagar!"Foram ainda tentar bater a altura do Mnel, o arrebenta canelas e macuácua, sem resultado.
Sobrava 27: perninha fina, sempre a piscar os olhos, gracioso no andar - a mulher até dizia que ele dava para modelo! -, tira o casaco de lã, arremanga as calças até um pouco acima dos tornozelos, cospe nas mãos e aí vai. A malta animava-o. 27, calmo, acenava com a palma da mão sinalizando que era precisa muita calma. Segue cauteloso amoreira acima...e o povo: ' o gajo cai, ai cai,cai.....! ' o melhor é agente afastar-se cassenão inda nos cai em cima.'
A pernada estreitava, 27 abanava mesmo no limite e eis que...para espanto de todos, Mnel Grande incluído, faz o pino na pernada e bate com os pés onde Mnel Grande tinha cortado o raminho. Com calma, endireitou-se , desceu até ponto mais seguro e: "Atão e agora, quem é que ganhou?hein?" E todos: ' Anda Mnel, paga e não bufas. Se quiseres um copinho tens que lho pedir por favor! ' e riam-se a bom rir.
Chegou 27 ao chão e são indizíveis os comentários.
Mné Grande praguejava, mas não teve remédio senão arrotar com os cinco litrinhos.
Diz o Traitoiras:" eu cuido que a minha guardou na gaveta umas plharancas de corates que sobraram do jantar de ontem. Vou por elas e de caminho a ver se arrebanho umas cõdeas de pão por mor de termos mataborrão pra tanto vinho." Encrencas empurrou-o logo: «despacha-te!»
27 nem parava dum lado pro outro.Todos lhe davam palmadas e ele:« porra! já chega! vandens mas é a malhar no cu da burra!
Chegou Traitoiras com os restos do jantar e dois couchos e foi um ar que deu aos cinco litros.
Aqui está o poder de uma mão cheia de pelharancas!

quarta-feira, janeiro 04, 2006

ACTA ANTECIPATIVA DA MORTE DO MARRANO

Às sete da manhã nevoenta
De 30 do mês do Natal
Saíram de casa, com pêlo na venta,
Os constituídos para dar cabo do animal.

A equipa é mais que distinta,
Moca, nosso Fernando, nosso Zé,
Karraio, e Changoto da quinta,
Gaducha, Chaves e um Sardones até.

Ali bem perto, às Poldras
Junta-se à trupe o Zé Caçador,
Grita: "Já cá levo as cordas",
E acelera forte o seu tractor.

Chegados ao local de abate,
Aguardente fraca, pouco adoçada,
Nozes e figos secos como contraste
Iniciam a valente almoçarada.

Apresentam-se as armas à porfia:
Fusis, navalhas, serrote e machado,
Pedras, maçarico e até um fio,
Mais a banca para o condenado.

Muda-se a farda, calça-se a bota,
Entra-se na furda, separa-se o tó,
Ata-se-lhe a pata, empurra-se prá porta
Cada um sua sentença, afaga-se com dó.

O animal já habituado ao aposento,
Recusa-se a percorrer o caminho...
E então que num momento
Se lhe aperta um arame ao focinho.

Com três a puxar e quatro a empurrar,
O malhado lá passa a porta do curral.
Os outros, todos a ver, acabam de ralhar
E acompanham os algozes ao tribunal.

Diz um:"passa-lhe a corda por baixo"
E outro:"vê se me tombas o animal"
"Cala o bico senão inda te racho
Pega-lhe no rabo que não te faz mal".

Ao fim de uma boa meia hora
(vergonha das vergonhas em matança)
Lá conseguem tombar a alimária.
Podia finalmente começar a dança!

"Vá lá!" diz o mestre, "todos ao mesmo tempo,
Um dois trê..."espera aí que me vai escapar"
Aguarda-se então um breve momento,
E, depois, então, foi só levantar.

Poisa-se o volume ao comprido na tábua,
Puxa-se a jeito, compôe-se a faceira...
Logo um traz um balde de água,
E o matador pega na matadeira.

E foi um "ai...", logo à primeira,
Enterrou a faca, tirou-a e ficou a olhar
O animal a grunhir, a ferida que fizera,
O sangue a correr em bica para o alguidar.

A colher de pau não parava no barro
Sempre a dar-lhe para não coalhar.
Metia-se a mão, sacava-se o tarro,
Comentava-se a facada sempre a segurar.

"Põe-te a pau que ele vai esticar"
Aconselhava o que pegava a orelha.
"Olha o esperto", diz o do traseiro a brincar,
"Vê lá se te foge e te chamo azelha."

"AtençãolAtenção! Vamos lá a preparar."
Clama o matador a ver a brincadeira!
"Não estive eu aqui a aprumar-me
E ficar envergonhado por uma asneira."

Ao fim de uns bons esticões
Lá se ficou o porco, sem bulir...
Limpa-se a barbela, dão-se uns apalpões!
Desatam-se as cordas! Começa-se a sorrir.

"Arre porra, ninguém quer mecha!"
Diz o que segurava a pata dianteira.
"Um homem tem mesmo que fazer queixa:
Não há um copo! Só querem brincadeira."

Ouve-se então alguém a vir,
Viram-se todos para o portão.
Era o Barrocas campeão a tossir
Que já trazia o cigarro na mão.

"Vá lá, chegou mesmo à hora.
Tínhamos deixado molhar os palitos,
Mas não temos que nos preocupar agora,
Já temos quem acenda o maçarico."

Sorriso largo, fumarada solta,
Calmamente se aproximou.
Com a mão a todos deu a volta,
E foi ele que em vedeta se tornou.

Iniciaram-se piadas de caserna,
Até que se ouve uma voz tonitroante:
"Isto aqui é alguma taberna?
Assim isto não vai p'ra diante."

"Tens razão" comentam os conjurados
"Vamos mas é ao que interessa
Daqui a pouco estamos gelados
Por nos pormos a olhar aquela peça."

Foi assim que o maçarico se acendeu
E se chegou o lume à ferida.
Na agulha uma guita se meteu
E pouco tardou, estava já cosida.

"Vamos lá mas é a pôr ordem nisto"
Ditou o Barrocas então chegado
"Mas haja cuidado por Cristo
Qu' algum inda pode ficar queimado."

"Bem falado, então isto é assim":
Vocifera alto nosso Fernando.
"Um aqui sempre atrás de mim
Que eu dou-lhe lume brando."

A chama do escaldante queimador
Sempre orientada no sentido sul
Implicava atenção ao calor
Pois até já o bocal estava azul!

Lá se ia chamuscando, primeiro atrás,
Logo à frente, depois a barriga,
Sempre um a dizer como se faz
E em latim se inicia uma cantiga:

Infelix animal es, suine ora mortue,
Ut augeas ventres omnium scholarium
Dolore maxima, duces saevi, impiique
Te damnant, etiamsi sis sordidum.

A música é depressa por todos adoptada
Sai um coro afinado, sem maestro.
Apesar de não perceberem nada, nada,
Entravam bem na melodia, mesmo a estro!

E o porco lá ia, com jeito, sendo queimado
Sempre atrás do lume ia o raspador.
Em breve ficou bem pronto dum lado,
Aquilo é que estava a ficar um primor.

"Eh! Malta! Está na hora de ser voltado."
Logo todos se apressam para lhe pegar
Primeiro de costas, o lastro breve assoprado,
Depois com jeito e arte foi só virar…

"Vá lá a ver quem sabe arranjar o focinho",
Aponta o Gaducha ao vê-lo ainda por fazer
E logo um se lhe atalha ao caminho:
"Isso já toda a gente sabe quem há-de ser".

"Ouve lá, ó meu basbaque de tanto saber,
Inda não tiraste as mãos das algibeiras
Sabendo que há muito por fazer
E pões-te a dar sentenças brejeiras?"

Uns riam, outros acenavam que sim senhor
Mas lá acabaram por concordar:
A cabeça pertencia ao matador.
E lá teve o desgraçado que se baixar.

"E o rabo! Quem faz o rabo a preceito?"
E viram-se todos para o Caçador
"Eu cá não tenho qualquer jeito,
Haja alguém que faça o favor."

É agora a altura das carchanolas,
Unhas para os que são ignorantes
Queimam-se bem pois parecem solas
E brinca-se com elas como dantes.

Aquele que as tira, finge que as aventa
Mas guarda-as, bem guardadinhas
E metê-las nos bolsos é o que tenta
Das pessoas que estão mais vizinhas.

Os que dão conta, empurram-no com força
E ele aconselha-lhes alguma calma.
Calado, salta para outro como uma corça
Senão não dá descanso à sua alma.

Dá a volta e no que estava mais distraído
Lá enfia, por fim, a sua encomenda
Afasta-se aliviado e descontraído
E atenção aos outros recomenda

Todos, sem à partida fazerem referência,
Vão sempre guardando a rectaguarda.
Não fiquem eles com a indecência
De as levarem consigo na farda.

Enquanto tudo isto se passava
O cerdo ia ficando como novo
Barbeado conforme a navalha passava
Já quase se podia mostrar ao povo.

Apaga-se o maçarico já desnecessário
Grita-se por água rápida e com fartura
Procuram-se pedras de natureza vária
Inicia-se a lavagem à bacorura.

Nosso Zé, com muita jeiteira
Segurava a mangueira numa mão
Na outra, regava com uma cafeteira
A medida que se fazia o raspão.

Trabalho, trabalho, tinha o matador
A limpar as rugas daquela tromba:
Escarafunchava com raiva e vigor,
Estoirava como se fora uma bomba.

Já bufava e as mãos se lhe engadanhavam
Quando repara que faltavam as orelhas.
"Uma esfregadela era o que precisavam
Os que aqui passaram, os azelhas."

E exclama: "quem me traz sal grosso
Para vos ensinar como se devem limpar
Estes abanos às vezes rijos como um osso"?
Prestes, Karraio, logo lho foi buscar.

E preciso agora fazer-lhe bem o cu
De maneira que não se fira a tripa.
Resta saber quem será o gabirú
Que a tal trabalho se dedica.

Vê-se um, disponível, a sacar da navalha.
Tal disponibilidade a todos espanta
E quando ia a iniciar aquele trabalho:
"Eh! pá!, olha que é preciso tirar a trampa."

"Mau..., ainda ninguém teve fome?"
Diz um que andava com a perna manca.
"Olhem que até à uma ninguém come!
E servirem-se já da morcela da banca!"

Logo em resposta ouve o que pedia
"Galinha que canta é a que põe ovo,
Já era assim que o meu avô me dizia,
Come-a tu e diz-me que tal é o provo."

"Vai mas é buscar um bom nagalho
Enfia-o aí até ao fundo da abertura
Torce e puxa para ti, ó meu bandalho,
O que conseguires sacar da ranhura."

"Tem tento nessa língua, ó depravado,
Senão ainda limpo a essa linda cara
Aquilo que vier a ser o resultado
Da sonda que ainda há pouco enterrara."

Tão amena conversa se ia travando
Era tão boa a disposição de toda a gente
Enquanto no traseiro se ia cortando
Que ninguém se lembrou da água quente.

"Se isto vai continuar assim, desta maneira,
Digo-vos que ponho os pés a caminho.
Vamos lá acabar com a brincadeira
E ver se alguém me traz um copo de vinho."

E continua, alterado o grande artista:
"Tu, ó Faz-Nada, acadeja-me água quente
E vê se deixas de te armar em fadista
E te portas de modo a seres gente

"Porque é que logo me viste a mim
Que estava aqui tão sossegadinho
Toma mas é um raminho de alecrim
Que te faz muito melhor que o vinho."

Valeu à circunstancia que o Caçador
Ali apareceu com aperitivo e garrafão.
Assim, lá se acalmou todo o vapor
Da zanga que estava a ruinar a sessão.

Já com o chambaril o Moca aparecia
E os nervos das traseiras se revelavam
Há já muito tempo que se não via:
Todos com o transporte se preocupavam.

Uns apareciam com sacas de serapilheira
Outros com varapaus como fueiros
Cada um defendia a sua maneira
Tudo se acalmou e lá foram ligeiros.

A roldana e a corda tinham sido aprontadas
À entrada da porta alguma dificuldade
Tardou -os na sua pressa danada
E tiveram que refrear as ganas da vontade.

Já dentro da loja debaixo da viga
Engata-se a corda, eleva-se o animal.
Um sobe ao banco, faz uma figa
Dá um nó de modo que não fique mal.

"Pronto, já está, podeis deixar o bicho"
Devagarinho lá o foram baixando
O gato sapou para o seu nicho
E o material preciso se ia preparando.

Surgem alguidares, travessas, pratos
E logo: "Então, mas afinal isto o que é?"
Mais me pareceis uns grandes ratos.
Haja alguém que vá buscar um café.

Abre-se o ventre agora escancarado
Com golpe ao centro pouco profundo
Não tardou que o cutelo bem afiado
Trouxesse o corte direito até ao fundo.

Volta ao cimo e, com os dedos em V,
Abre caminho ao bico da navalha
As tripas logo toda a gente as vê
E traz-se o tabuleiro que as apanha.

Agucei então umas sovinas de esteva
Para o porco poder ficar largo a secar
E disse. "Atenção, daqui ninguém o leva,
Sem a carne estar boa para se cortar."

Entretanto, o cheiro de um fígado a assar
No borralho, que ficara sempre aceso,
Anima o corpo, que já estava a ficar
Devido ao frio, um pouco teso.

Então, sem que ninguém o veja
Changoto inicia a sua faena culinária:
Já tinha limpo das tripas a molareja
e agora limpa as glândulas da alimária.

Num tacho já frigem dentes de alho
Em azeite fino da bela oliveira,
Juntos com louro e um famoso molho
Que é criação da sua alta craveira.

A chicha, cortada em nacos valentes
Entra logo com a pimentada caseira
E todos com a fome afiam já os dentes
A contar com a cheirosa petisqueira.

Boné na cabeça, avental a preceito
Atento ao fogo, à trempe e ao tacho
Vai deitando vinho, sempre com jeito
Não se agarre a comida com o fogacho.

Dá a provar o molho de vez em quando
E cada um apruma o seu paladar
Ajusta-se o sal, corrige-se o picante
Envolve-se o entulho, fica-se a esperar.

Sai fumegante o tacho com o petisco
Cada um pega a sua arma na mão
Estava já um prestes a morder o isco:
"Vê lá se reparas que tens aí um pão."

Célere recolheu o braço atrevido
Mas os compinchas não lhe perdoarão:
"Tu, ficas a saber que já estás cozido
Ficas encarregado de servir do garrafão."

Lamuriento, teve de aceitar o seu destino
Ele que tanto gostava de dar ao dente
Até que deixasse atestar bem o papinho
Tinha agora que comer atrás da gente.

Pouco tardou estava o barranhão aliviado
A rapaziada dirigia-se já para junto do sol,
Quando de repente se ouve um alto brado:
"Cada um lave o que sujou, enquanto está mole.

Muito a custo lá foram até junto da torneira
Esfregão, pano, água e, claro, detergente
Deixaram tudo a brilhar na cantareira
Ficou a dona de casa toda contente.

Faltava agora descer o defunto esticado
Alarga-se o nó, deita-se sobre a padiola
Leva-se até ao veículo para ser transportado
Até junto dos qu' aguardavam junto da Escola.

A viagem correu sem qualquer acidente
Já todos traziam um lavado fatinho.
Na presença de quase toda a gente
Eleva-se até ficar bem, com jeitinho.

Finalmente, de novo fica o cerdo exposto
Já a lenha seca ardia na metade do bidão
Pouco faltava pra qu’o que lá estava posto
Não tardaria, estava feito em rubro carvão.

Cada um para o talho então se dirigiu
Cortava onde podia, apetecia ou conseguia.
Azelhice tamanha em muitos então se viu
Mas nem por isso arrefeceu a alegria.