Todos nós vivemos e 'con vivemos' com inúmeras máscaras. Vamos ler a palavra: más + caras. Raramente as máscaras favorecem as pessoas. São sempre ou quase formas horripilantes, enrugadas, feias, adamastoras... Se assim é, cumpriria saber por que razão nós mudamos continuamente de 'más caras'.
Parece absurdo que tenhamos prazer em parecermos pior do que somos. Em vez de matarmos o pai para ficar com a mãe, como explica Freud, acabamos por matar a mãe e preferir o pai. É a inversão total dos valores pessoais. Creio mesmo que os psicólogos da motivação e , consequentemente do auto conceito e da auto estima, ficarão baratinados se analisarem em fundura esta problemática. Afinal eu sou claramente masoquista quando me transformo num outro ainda muito mais feio do que eu e nisso tenho prazer e até o demonstro porque não me coíbo de me apresentar aos outros assim tão horroroso. É caso para dizer CATRINO!
A terça parte daqueles que connosco convivem, ou com quem temos que conviver, vale pouco; o valor estatístico não é meu. Indubitavelmente, todos conhecemos nas nossas circunvizinhanças indivíduos queixinhas. Passam a vida a dizer lamechas, andam sempre doentes e até parece que andam a ler o SYMPOSIUM médico para saberem quais os mais adequados medicamentos para as mais esquisitas doenças. Enfim, são mesmo queixinhas...
Figura marcante desta postura de queixinhas foi a velha Passarinha, vizinha do velho Comandante e do Zé Sarrabeco, alfaiate e da Maritroncha, que antes queria ter um filho do que ir buscar um molho de lenha à serra. A alcunha adveio-lhe da profissão: era ela ia que buscar os bébés ao Fundão, como os pais explicavam aos filhos quando um novo rebento passava a pertencer à família.
Foi ela que me foi buscar a mim e à grande maioria dos de mais de quarenta que habitam a aldeia.
Naqueles tempos nascia-se muito - basta lembrar que chegou a haver cinco professores a trabalhar em simultâneo (Zé Paula de Campos, -Tanganho-Carminda, Guiomar, Zé Candeias, Libério, para servir de exemplo), e, como se nascia muito, a velha Pássara não tinha mãos a medir. Os seus serviços de parteira entendida eram continuamente requisitados.
Era Novembro adiantado, frio como um corno, água que Deus a dava,lapacheiros e poças de água, algumas caramelizadas, já noite de breu, o velho Chamiço sobe as escadas de pedra que davam acesso à porta da velha Passarinha, bate: "quem é?"«ó ti Rosa, alevante-se lá, que a minha já deitou as águas e está pra lá a berrar cas dores»"quem?"? «a minha, despache-se, catrino, cassenão inda o garoto cai pró chão». A velha Passarinha lá se levantou, acendeu um palito e a candeia de petróleo, rodou o chavelhão da porta, premiu o trinco, espreita para lá das agueiras bastas e lá vê o Chamiço aflito...."atão mas inda no está vestida?! despache-se lá, catrino, já tenho ali o carro, com os burros para irmos mai depressa.". « Já vou». Aquela gente não perdia grande tempo a mirar-se ao espelho, ou a preocupar-se com as relações entre as cores e os modelos: blusa de chita, para cima da combinação que se mantinha no corpo toda a semana, camisola de lã e xaile, lenço na cabeça, saiote comprido sapato de borracha, duas penteadelas e, ala! Apesar disso, o tempo parecia uma eternidade ao Chamiço: "Ande lá depressa! veja se se despacha!" Até o velho Comandante se chega ao cimo das escadas: "Que é lá isso!Tanto barulho, nem um home pode dromir!"«Ó ti João é a minha que já deitou as águas»... Lá surge a velha Pássara e o Comandante: "Rais a partissem, tanto demora a arranjar-se...em vez de se andar sempre a lamuriar, mexa-se!" «Cala-te que no é nada contigo, meu Comandante do Inferno dum raio que te parta» Eram assim os vizinhos...
Chamiço e Pássara lá desceram as escadas, às escuras, que luz não havia nem era precisa. A Pássara lá se sentou na traseira do carro, sempre a queixar-se, o Chamiço chega-lhe um saco de palha para ela não molhar a saia e espeta o ferrão nos burros que arrancam, espavoridos, lagariça acima, até ao coito do Chamiço. Pelos córregos dos velhos caminhos lá vão na velocidade possível, passam as oliveiras e a fonte de melão, sobem o frade, viram ao batcharel, contornam as portelas e lá estava a casa do Chamiço, com a luz acesa , ali mesmo entre castanheiros milenares. Ambiente perfeito, bucólico, calmo e só faltaria ali passar o Míncio, para Vergílio poder ser o poeta narrador deste acontecimento, em vez deste reles prosador.
Na noite molhada, os gritos da Chamiça rasgam os ares e a Pássara:" Eh! cachopa, olha que isto no é o fim do mundo"...pediu que lhe chegassem a luz mais perto, espreitou por entre as pernas da Chamiça, mete os dedos na boca do corpo, pede água quente num caldeiro lavadinho, panos crus, brancos, com fartura e toalhas.
«Daqui a cinco minutos tens mais um filho, ó Chamiço!» Começam as ordens: "arreda para lá esta cangalhada toda e põe-me aqui ao pé as bacias, a água quente e toda a roupa que te pedi" e a Chamiça dá mais um grito, a velha Pássara afasta-lhe as pernas, levanta-lhas quanto pode: "Vá, faz força, Catrino, faz força, vá, um, dois, três, força, catano, força, faz de conta que estás a mijar, força!Já lhe apalpo a cabeça, força!, catano, força! isso, força! e o cachopo lá veio assim de repente, a velha apara-o. "Catrino, ó Ana! tinhas razão...É um um belo cachopo!"
Era mais ou menos assim que se nascia neste país.
E que rijos que foram os nossos antanhos, catrino!
A única que viveu até aos noventa e tal sempre a queixar-se foi a velha Passarinha.