quarta-feira, junho 20, 2007

A NOSSA FALA - LXXXVIII - CATRINO

Todos nós vivemos e 'con vivemos' com inúmeras máscaras. Vamos ler a palavra: más + caras. Raramente as máscaras favorecem as pessoas. São sempre ou quase formas horripilantes, enrugadas, feias, adamastoras... Se assim é, cumpriria saber por que razão nós mudamos continuamente de 'más caras'.
Parece absurdo que tenhamos prazer em parecermos pior do que somos. Em vez de matarmos o pai para ficar com a mãe, como explica Freud, acabamos por matar a mãe e preferir o pai. É a inversão total dos valores pessoais. Creio mesmo que os psicólogos da motivação e , consequentemente do auto conceito e da auto estima, ficarão baratinados se analisarem em fundura esta problemática. Afinal eu sou claramente masoquista quando me transformo num outro ainda muito mais feio do que eu e nisso tenho prazer e até o demonstro porque não me coíbo de me apresentar aos outros assim tão horroroso. É caso para dizer CATRINO!
A terça parte daqueles que connosco convivem, ou com quem temos que conviver, vale pouco; o valor estatístico não é meu. Indubitavelmente, todos conhecemos nas nossas circunvizinhanças indivíduos queixinhas. Passam a vida a dizer lamechas, andam sempre doentes e até parece que andam a ler o SYMPOSIUM médico para saberem quais os mais adequados medicamentos para as mais esquisitas doenças. Enfim, são mesmo queixinhas...
Figura marcante desta postura de queixinhas foi a velha Passarinha, vizinha do velho Comandante e do Zé Sarrabeco, alfaiate e da Maritroncha, que antes queria ter um filho do que ir buscar um molho de lenha à serra. A alcunha adveio-lhe da profissão: era ela ia que buscar os bébés ao Fundão, como os pais explicavam aos filhos quando um novo rebento passava a pertencer à família.
Foi ela que me foi buscar a mim e à grande maioria dos de mais de quarenta que habitam a aldeia.
Naqueles tempos nascia-se muito - basta lembrar que chegou a haver cinco professores a trabalhar em simultâneo (Zé Paula de Campos, -Tanganho-Carminda, Guiomar, Zé Candeias, Libério, para servir de exemplo), e, como se nascia muito, a velha Pássara não tinha mãos a medir. Os seus serviços de parteira entendida eram continuamente requisitados.
Era Novembro adiantado, frio como um corno, água que Deus a dava,lapacheiros e poças de água, algumas caramelizadas, já noite de breu, o velho Chamiço sobe as escadas de pedra que davam acesso à porta da velha Passarinha, bate: "quem é?"«ó ti Rosa, alevante-se lá, que a minha já deitou as águas e está pra lá a berrar cas dores»"quem?"? «a minha, despache-se, catrino, cassenão inda o garoto cai pró chão». A velha Passarinha lá se levantou, acendeu um palito e a candeia de petróleo, rodou o chavelhão da porta, premiu o trinco, espreita para lá das agueiras bastas e lá vê o Chamiço aflito...."atão mas inda no está vestida?! despache-se lá, catrino, já tenho ali o carro, com os burros para irmos mai depressa.". « Já vou». Aquela gente não perdia grande tempo a mirar-se ao espelho, ou a preocupar-se com as relações entre as cores e os modelos: blusa de chita, para cima da combinação que se mantinha no corpo toda a semana, camisola de lã e xaile, lenço na cabeça, saiote comprido sapato de borracha, duas penteadelas e, ala! Apesar disso, o tempo parecia uma eternidade ao Chamiço: "Ande lá depressa! veja se se despacha!" Até o velho Comandante se chega ao cimo das escadas: "Que é lá isso!Tanto barulho, nem um home pode dromir!"«Ó ti João é a minha que já deitou as águas»... Lá surge a velha Pássara e o Comandante: "Rais a partissem, tanto demora a arranjar-se...em vez de se andar sempre a lamuriar, mexa-se!" «Cala-te que no é nada contigo, meu Comandante do Inferno dum raio que te parta» Eram assim os vizinhos...
Chamiço e Pássara lá desceram as escadas, às escuras, que luz não havia nem era precisa. A Pássara lá se sentou na traseira do carro, sempre a queixar-se, o Chamiço chega-lhe um saco de palha para ela não molhar a saia e espeta o ferrão nos burros que arrancam, espavoridos, lagariça acima, até ao coito do Chamiço. Pelos córregos dos velhos caminhos lá vão na velocidade possível, passam as oliveiras e a fonte de melão, sobem o frade, viram ao batcharel, contornam as portelas e lá estava a casa do Chamiço, com a luz acesa , ali mesmo entre castanheiros milenares. Ambiente perfeito, bucólico, calmo e só faltaria ali passar o Míncio, para Vergílio poder ser o poeta narrador deste acontecimento, em vez deste reles prosador.
Na noite molhada, os gritos da Chamiça rasgam os ares e a Pássara:" Eh! cachopa, olha que isto no é o fim do mundo"...pediu que lhe chegassem a luz mais perto, espreitou por entre as pernas da Chamiça, mete os dedos na boca do corpo, pede água quente num caldeiro lavadinho, panos crus, brancos, com fartura e toalhas.
«Daqui a cinco minutos tens mais um filho, ó Chamiço!» Começam as ordens: "arreda para lá esta cangalhada toda e põe-me aqui ao pé as bacias, a água quente e toda a roupa que te pedi" e a Chamiça dá mais um grito, a velha Pássara afasta-lhe as pernas, levanta-lhas quanto pode: "Vá, faz força, Catrino, faz força, vá, um, dois, três, força, catano, força, faz de conta que estás a mijar, força!Já lhe apalpo a cabeça, força!, catano, força! isso, força! e o cachopo lá veio assim de repente, a velha apara-o. "Catrino, ó Ana! tinhas razão...É um um belo cachopo!"
Era mais ou menos assim que se nascia neste país.
E que rijos que foram os nossos antanhos, catrino!
A única que viveu até aos noventa e tal sempre a queixar-se foi a velha Passarinha.

quarta-feira, junho 13, 2007

A NOSSA FALA - LXXXVII - GENÊTES

Eu não conheço nenhum trabalho científico, com ambição de exaustividade, que trate do processo de surgimento da “fala” popular, seja da “nossa”, seja de outra região qualquer. Teria de ser um autêntico Tratado linguístico, muito mais do que uma espécie de dicionário da fala popular porque não se poderia limitar à semântica dos vocábulos ou das expressões e à suas origens e evolução, muito mais que uma gramática porque não se poderia ficar pela morfologia, pela sintaxe, pela ortografia. Havia de precisar, se almejasse reconhecimento e credibilidade, de ir mais fundo na busca de tudo isso nos contextos em que são utilizados. Haveria até de se socorrer de algumas histórias onde eles ganhassem mais sentido, como se faz aqui no Baságueda. Fica já aqui o manifesto de total liberdade para o plágio de situações, episódios e personagens.

Vem isto a propósito da reflexão (intelectual!) suscitada por uma expressão que ouvi há dias à minha sogra. A cena passa-se lá em casa com a karraiazinha a encenar uma das suas monumentais birras, quando a avó se sai com esta.
- Ai o rai da garota! Tem cá uns genêtes!
Conseguimos apreender pacificamente de onde vem a maior parte das palavras e expressões que já foram tratadas em “a nossa fala”. O Changoto já tem tido a preocupação de se demorar nesse trabalho. Seja do latim ou do grego, a lei do menor esforço parece ser a regra principal, porque o povo é simples e gosta de coisas simples. Nós também.

Mas esta dos “genêtes” soou-me diferente. Porque atira para conceitos que, convenhamos, não estão propriamente na orbita da fala e da cultura popular, como “genes”, “génio”, “genética”. É absolutamente improvável que a autora da expressão alguma vez tenha contactado ou ouvido falar de um tal Darwin e de uma tal sua teoria sobre a origem e evolução das espécies. Mesmo levando em linha de conta o seu vasto e riquíssimo curriculum vitae em matéria de agricultura, designadamente no que concerne a hortículas, tão pouco se pode aceitar, nem como mera hipótese, que tenha visto nas suas ervilhas o mesmo que Mendel. Não merece a pena ir para além da simples referência à impossibilidade de qualquer contacto com algum escrito de Bateson. Adond’rai foi, então, o povo buscar palavra tão cara?

Um estudante tê-la-á utilizado numa reunião familiar alargada, em que toda a gente entendeu o sentido e depois adaptou o som e estendeu ao resto do povo? O Senhor Prior, no sermão eucarístico, ter-se-á perdido em considerações sobre a origem da vida – seguramente para discordar de Darwin – e, o povo católico, naturalmente integrou no seu léxico?

Fosse como fosse, o vocábulo faz parte da “fala” da terra dos xendros e à volta, e, tudo indica, há bastante tempo.

Já lá vão uns anitos, ainda José Socrates não tinha nascido, num domingo à tarde em que teve de separar uma bulha entre o seu Artur e o filho do Zé Púcaro, o Ti Armindo Estanqueiro desabafou com uma ponta de orgulho:
- O mê Artur tem cá uns genêtes… Ah! garoto dum d’rai…

Desde tenrinho que o Artur se revelava mais agitado do que o normal. Ti Armindo ia procurando amansar o cachopo à custa de muitas sovas de cinto e de trabalho no campo, mas ele não dava mostras de abrandar a genica com que nasceu. A avó Ressureição bastas vezes se esforçava para meter o fedelho ao rêgo, mas só conseguia que ele se virasse a ela aos pontapés. Por causa disso, já tinha ganho a alcunha de “batenávó”. Um dia, no tempo da lavra, o garoto foi posto à frente da burranca para a conduzir a direito. Como era de esperar, o Arturinho fazia de propósito para andar aos ziguezagues, na esperança de que o pai se chateasse e o mandasse embora para a brincadeira no povo. A dada altura, ia ele rente ao cômaro com o terreno do Batorelhas, viu o pai concentrado no percurso do arado, atirou com um torrão de terra aos olhos da burranca que se espantou para o chão do vizinho, arrastando arado e Ti Armindo que praguejava furioso:
- Ah! garoto dum filho do diabo quê rebento-te a alma, atão no vês o q’andas a fazer?
E o Arturinho:
- Filho do diabo é vómecei…
- O quêi? O que é q tu dexeste? - E começa a tirar o cinto das calças avançando firme para o petiz, a gritar – Quem é que é filho do diabo? Quem é que é filho do diabo?
À vista da correia o batenávó meteu os genêtes no bolso e respondeu baixinho:
- Sou eu mê pai

quarta-feira, junho 06, 2007

A NOSSA FALA - LXXXVI - GALULA

Ainda não há muito, os marmeleiros estavam floridos. Às pétalas da flor chama-se GALULA. A Galula é como o tremoço: por muito que se coma não enche barriga. Eu que o diga! Nos tempos em que era um ás do futebol, trinco com funções de médio de distribuição, fui um dia jogar contra o Eléctrico de Ponte de Sôr... Cada um de nós tinha recebido dez escudos para o almoço, que a organização só garantia a bucha depois do jogo. Eu e mais Varito, o pateta do Milhazes e o Força Hercúlea fomos a jogar bilhar e compramos cinco escudos de tremoço: era quase um alqueire. Comemos e jogámos e se não nos vêm chamar não dávamos pelas horas.
Foi chegar e equipar e ala para o campo.
O sal do tremoço e mais os fininhos que tínhamos mamado, juntos, com um sol de esturrar tordos às quatro da tarde, começaram a fazer efeito...
Nós éramos dos que não podíamos falhar: atrás de nós só o Tonho Bisga que era o guarda redes e hoje é médico. O pobre do Henrique Belejo, o velhinho, cansava-se na acarreja de água para nós bebermos.
Ficamos emparrançados, com o bandulho cheinho de água que até se ouvia o balanço quando saltávamos para cabecear o esférico (nome que eruditamente se dava à tchintcha )...
Fica o resultado: empate a 2 golos, sendo que a segunda parte durou 58 minutos até que o Eléctrico empatasse.
Por cortesia deixámos o troféu em disputa para o clube, que o que nós queríamos não era mais prolongamento nem penáltes, mas a bucha prometida. E que boas foram as achigãs grelhadas, fresquinhas da barragem de Montargil e quentinhas a sair do borralho... E o mais que veio a seguir para ensopar os almudes de água que tínhamos emborcado.

Mas... Volvamos ao Baságueda e à nossa querida xendrice.

Havia na Aldeia dois Tonhos Valentes: um morava no oiteiro, tinha um dedo saroto na mão esquerda e era, vá lá, um lavrador razoável, o outro morava no cavacal ali ao pé da cruz, era Guarda Republicano reformado e tinha uma hérnia bem destacada pelo que lhe chamavam o COBRADO. É esta a vedeta que hoje vos trago.

O homem era caçador mas ninguém queria caçar com ele. Tinha uma perdigueira a quem chamava DULCE que era a sua companhia. Amandinho Leitão, às vezes, lá ia com ele e o seu Piloto.(...)

Malinos como eram, Coiote Pete, Abraço de Bazuka, Chibeto e eu, está claro, combinámos um dia pregar uma das valentes ao Tonho Valente: o mais conceituado na opinião do Cobrado era eu. Ficou então decidido que eu me encarregaria de dizer ao Valente que estava uma lebre na cama na vinha do Corlha:"tu viste-a?" Vi, sim senhor, estava deitada ao toro da videira grande na ponta do fio que dá para o poço da figueira maranhoa. Já a lá vi mais do que uma vez!"Entretanto Coiote e companhia tinham ido ao quintal da vítima, roubaram-lhe um coelho e foram a atá-lo na tal videira com um baraço. E eu: " Vomecê bem sabe que ali passa muita gente e se o Ti João Toscano ou o Toco a vêem, são eles que a agarrram",« Bom , vou lá a ver... "Vá aqui pelo caminho do ribeiro cimeiro, entre por trás, por aquilo ali da Bate-orelhas, a passar junto à vinha do Caturra". Ele aí vai.
Eu corri pela estrada a avisar os outros, que se esconderam a ver a marosca. Lá aparece Tonho Valente com a sua espingarda de canos sobrepostos, de três tiros...Olha para a videira e lá estava o coelho. Atira-lhe um foguete, levanta-se pó e o coelho nem buliu. Deita-se a correr confirma que 'a lebre' estava lá caída e, lampeiro, vai a agarrá-la. Na sofreguidão nem reparou que era o coelho e ainda por cima seu! quando o quer puxar fica-lhe preso pelo baraço ao toro da videira:«Querias galula, tonho Valente! querias galula! e riam-se a perder, fora da vista dele...
O General Mola, alcunha por que era conhecido o nosso Tonho Valente, ainda assim, meteu o coelho na bandoleira para não se perder tudo... Arrancou pelo caminho velho do ribeiro cimeiro a praguejar. Ia preado...
Entretanto Chibeto e Coiote já tinham vindo para a frente e espetaram uma pele de lebre na porta da loja do General.
Eu fiz-me de novas quando, com o meu inefável carrinho quadrado ia levar uma bilha de gás à casa de Cum Filha da Puta, que era vizinho: «Anda cá, garoto do catano! Nunca esperei isso de ti!,atão tu fazes-me uma destas?! e eu:"Que mal é que eu fiz? a consciência não me acusa de nada." «Disseste-me que havia uma lebre na vinha do Corlha..." «e havia,vi-a lá mais do que uma vez...» "olha o que lá estava!olha!" «olhe ali a pele da lebre espetada na sua porta!Isto foi malandragem de gente sem vergonha». Aproximou-se e viu a pele da lebre que tinha um papel escrito: a lebre estava ao toro da videira, mas quem a papa sei eu!
Eu queria estoirar a rir mas lá me consegui conter.
É a vida!