sexta-feira, agosto 17, 2007

A NOSSA FALA XCIV - BUÊR

Era dia de matança e eu assumira o controlo do palhinhas com a missão de manter o vasilhame individual com uma pinguinha no cimo. Ti Julho Sardones acabara de emborcar o 2º, apenas à conta de uma azeitona carrasquenha retalhada e ficara a mirar, compenetrado, para o copo vazio que continuava a segurar à altura dos olhos.
- Vai mai um Ti Julho?
Ele deu um estalido de língua e com ar muito sério informou:
- Ó Inserme, olha qu’ê gosto do filha da puta do vinho. Tem bom BUÊR. Bota lá outro.

Veio-me este episódio à lembrança há dias num corredor de uma grande superfície onde jaziam expostas uma catrefada de garrafas de vinho de múltiplas proveniências, qualidades e preços. E eu precisava apenas de um tintinho para acompanhar um besugo grelhado ao almoço. Hesitante, perante tanta oferta, fui criteriando entre o preço médio e a região vitivinícola. Num Alentejano descubro:

“Vinho tinto macio, de cor vermelha intensa, com reflexos violáceos. Levemente abaunilhados, os aromas e o sabor são bem marcados a fruta, lembrando compotas de frutos vermelhos. Apresenta um final de prova prolongado e muito suave.”

Fiquei tentado. Continuei para um Bairrada, cuja literatura proclamava:

“Vinho de cor granada profunda, de aroma rico e complexo dominado por notas de frutos vermelhos, frutos secos e caruma, envolvidos por muito ténues notas de madeira. O sabor é agradável, encorpado, com taninos redondos e excelente persistência gustativa.”

Tudo à minha volta emudeceu para me facilitar a viagem pelos aromas a caruma e abaunilhados, pelos sabores encorpados e a frutos vermelhos, pelos taninos suaves e redondos…A viagem prosseguiu inadvertidamente para uma reflexão sobre o código linguístico em que assenta esta deliciosa literatura. Socorro-me de Basil Bernstein e da sua teoria sócio-linguística concebida no âmbito da problemática do processo educativo. Esta teoria inscreve-se no que se poderá chamar “paradigma determinista” que pretende explicar o (in)sucesso escolar. Muito telegraficamente, a teoria postula a existência de 2 códigos que no processo educativo reflectem uma correspondência entre modos de expressão cognitiva e estrutura de classes, fazendo sentir os seus efeitos ao nível do (in)sucesso escolar (e também nos comportamentos sociais). Chama-lhes o autor código restrito e código elaborado. O primeiro caracteriza-se por uma estrutura semântica particularista, fraca complexidade léxica e gramatical, construção sintáctica pobre, tudo traduzido numa linguagem concreta e descritiva, muitas metáforas, recurso a uma gama limitada de adjectivos e advérbios. O código elaborado, para abreviar, caracteriza-se pelo oposto. Salto já para o corolário: o código elaborado é mais frequente à medida que se sobe na estrutura de classes sociais, o código restrito é partilhado nas classes mais baixas. A escola privilegia o código elaborado, logo, à partida, as probabilidades de sucesso escolar tenderão a ser mais elevadas nos alunos mais familiarizados com ele, ou seja, os alunos das classes mais altas, fenómeno que, denunciaram Bourdieu e outros, contribui para a reprodução das desigualdades sociais. Mas isso não é conversa para aqui.

Forçando uma importação (bem martelada, diga-se), da teoria dos códigos para a descrição dos vinhos, considerando-me eu um indivíduo da classe alta (em termos de provo, entenda-se), compreender-se-á que não tenha resistido ao Douro de 2003 que exibia esta pérola:

“Os aromas emergem extravagantes, misteriosos e quase exóticos, juntando-se a um estilo perfumado que acompanha notas de café e frutos negros. Um toque de carvalho veio acrescentar uma deliciosa fragrância fumada que intensifica a já existente e suave nota de cereja. Este vinho apresenta-se encorpado, com alguma estrutura firme e um final de prova invulgarmente longo.”

Eu seja ceguinho se não me esforcei por detectar a extravagância do aroma e a fragrância fumada do carvalho. Admito que não fui capaz. O que posso dizer é que gostei do filha da puta do vinho. Tinha bom BUÊR.

quinta-feira, agosto 02, 2007

A NOSSA FALA - XCIII - ESCARRANCHAR ou ESCANCHADO

Nunca os quadrúpedes asnos, burros como lhe chamamos, foram tão poucos em Portugal. Garoto era eu e só na Aldeia dos Xendros era fácil contar para cima de cem; à vontade e sem receio de engano. E é pena! Animal dócil, robusto, parco e, pasme-se, bom aprendiz, merecia melhor tratamento. Isto para além do esterco que proporciona e que, segundo diziam a velha Zagaia e a velha Patrocínia Galfarra, vendedeiras que eram, no cedo, de todas as novidades - couve, repolho, cebolo, e mais hortícolas como o tomate e o pimento, - as quais, à ida acima, caminho da serra, por detrás da cruz do Rebolo, ia enchendo os caldeiros de lata onde tinham vindo os viços com os cagalhões deixados no alcatrão pelas tais bestas asininas. Verdade ou não, indesmentível era que elas apresentavam produto de qualidade.

Era normal virem a pé com o caldeirinho à cabeça em cima de uma molídia, mas quando as encomendas eram mais a Zagaia trazia o seu burrinho, o JOVIAL, e aproveitava para vir a cavalo.

Naquele tempo não se via mulheres de calças. Só de saias e compridinhas quanto bastasse por mor dos olhos gulosos... Por isso o modo de as mulheres montarem nos burros era diferente da dos homens: estes iam ESCARRANCHADOS em cima da albarda, uma perna para cada lado e, alguns até tinham estribos, como o Zé Borges, aldrabão mor que já foi aqui vedeta, elas, porque não se podiam ESCARRANCHAR sentavam-se no dorso da albarda e deixavam cair as pernas para o mesmo lado. Era por isso que noutros tempos, a maioria das casas tinha um batorel (ou baturel) junto à porta das lojas, ao lado do qual inevitavelmente estava cravada na parede da casa uma ferradura que servia para prender o burrico. As mulheres subiam para o baturel (ou batorel) e deixavam-se cair para a albarda, aproximavam-se da ferradura, soltavam o burro, e com a rédea lá o guiavam para onde queriam.

Eu era um ás a cavalgar na burrinha da minha avó Maria... Tinha o cuidado de, sempre que me servia dela, a desaguar com, a pouca de água com farelo, coisa que ela adorava. Depois era só pedir que ela dava. Um burro a passo é cómodo, mas a trote é horroroso, faz doer, porque o corpo é empurrado para cima e cai de chapa na albarda ; então, o melhor é ir a galope. Aí é um prazer cavalgar, bem escarranchado, rédea numa mão e a outra a servir de contrapeso equilibrador. Era aqui que eu era campeão. Bons tempos!

Nunca fiz a sevícia de Teixeirinha (que é feito de ti, meu bom amigo?) que, para a burra mais esperta que havia na aldeia, a do avô dele, a burra do velho Freitas, andar sempre a galope, lhe metia uma silva seca cheia de carapetos por debaixo da albarda. Esta burra ficou famosa: sabia contar até dez batendo com a ferradura no chão ao som do algarismo e nunca o velho Freitas teve que lhe ensinar o caminho nem para as oliveiras de melão, nem para a quelha funda nem para a lameira da pinta. Montava-se nela e só dizia: lameira da pinta! e a burra desandava certinha. O velho Freitas até garantia que ela lia os jornais colados com massa de farinha que a ti Beatriz tinha nas ripas do tabique que separava o palheiro da burra da cozinha dos velhos. Ao velho Gonito ouvi eu dizer que, uma vez, de noite, a ouviu a sonhar de alto, amaldiçoar a sua má sina de ter calhado naquela família, porque se fosse noutra, havia de ir à escola e estudar para engenheira. Se é verdade não sei e o velho Gonito já cá não está.

Outro burro mais que célebre era o ESTUDANTE de Zé Luís Barata: lavrava sozinho. Ele punha-se na ponta de uma torna e o filho na outra; era só virar a aiveca, apontar o rego e dar ordem de marcha ao ESTUDANTE e ele aí vinha até à outra torna sem ser preciso guiá-lo...

O mais desordeiro foi sempre o burro inteiro da ti Conceição Rela, o MOURISCO, que, apesar de pequeno, quando lhe cheirava a burra com cio, ali por altura de Março, arreganhava a beiça, zurrava que nem um perdido, deixava pender a sua valente arma e nada nem ninguém o segurava... Não lhe importava se a fêmea ia carregada ou não, se trazia atafais, se era no centro da estrada...nada. Aquilo não se podia perder e o burro metia medo. Foi morto à machadada pelo ti João que se viu quente com ele um dia no palheiro... Dizia o velhote: o que mais me custou foi abrir a bureca pró enterrar e arrastá-lo até lá... vi-me nas horas del conho!

Era tempo de os burros serem vedetas aqui no baságueda até porque a festa da Ribeira, da Baságueda, das Aranhas ou da Sra do Bom Sucesso, não se fazia sem burros no tempo em que as festas eram genuinamente populares... Agora são feiras!
Há ainda por aí gente qie se lembra dos ajuntamentos nas Eirinhas: Russo, Zé Manel e Alziro puxavam dos acordeões e, enquanto se trocavam umas merendas e se despejavam uns tintos, aquecia-se para o arraial numa lailada bem sapateada que até metia cobiça...
A única passagem era a chamada ponte velha, hoje só já restam vestígios, mesmo ao fundo donde é hoje a barragem que em tempos abastecia Penamacor e Aldeia, antes da Meimoa tomar esse lugar e lá ae ia até à festa, gente e burrinhos, todos engalanados com rosmanos e verdura e lírios roxos, perigosos, porque se deixassem nódoa lá se ia o fatinho.
Foi num desses anos em que eu fui com o velho Comandante que, bem perto da capela da Santa (não mede mais de 30 cm), Tonho Refe deparou-se com o seu Mário deitado no chão... Saí-se então com esta máxima: " ou ele caíu ou alguém o tombou, que ele sozinho no era capaz". O burro do Rogante que ia atrás junto com a burranca do velho Comandante, não percebeu o sentido da frase, e começou-se a rir num zurro ensurdecedor...
Tinha razão o burro: lógica desta, só mesmo em dia de festa!Mainada!