quinta-feira, fevereiro 27, 2014

A NOSSA FALADURA - CCXX - (T)CHIADEIRA / (T)CHIADÊRA

Eram vários os ganhões na terra xêndrica. Era famosa a junta do ti mné Guerra com duas vacas valentes - a mimosa e a mourisca- amarelinhas como o oiro, sempre luzidias e garbosas, sinal de bom trato. Seu irmão Domingos rivalizava com ele, mas, cá para mim, junta valente era a do Vigura, composta por dois animais possantes - a rosada e a bonita - mansos como a terra, pachorrentas mas como uma força conjunta quase inimaginável para duas vacas. Vigura carregava sempre mais que a medida e elas correspondiam. Embora trouxesse sempre a vara com o aguilhão a verdade é que nunca lha vi usar. Era mais bruto ele do que propriamente as vacas, sobretudo quando bebia. Num domingo na tasca da Rosa em disputa com Cabo Vermelho, mordeu-o com tal raiva que lhe arrancou o brinco da orelha esquerda e ainda teve tempo para cuspir para o chão parte do lábio inferior do desditado Cabo Vermelho. Foi meu pai que entregou ao bombeiro que chegou na ambulância os dois bocados de carne: o brinco da orelha e o lábio. Cabo Vermelho acabou por ficar inteiro porque lhe coseram os dois bocados. Vigura, esse acabou por ser morto com uma gadanha quando escavacava a porta de Carradas com um machado, com intenção de o matar. Carradas saltou pela janela das traseiras, agarrou na gadanha e ceifou literalmente o Vigura. Estória macabra...
Famosa era também a junta do Alberto Vaz, que era composta por um boi inteiro e uma vaca. Era sempre ele que moía a azeitona no pio do lagar da lameira. Gostava tanto ou mais de vinho do que o Vigura.
Havia ainda mais ganhões mas a parelha já não era composta por vacas. Ou era uma burra e uma vitela ou mesmo dois burros. Lembro-me do Júlio Aspirante, do Tonho Labouxa, do Alberto Rogante, do Zé Luís Barata, do Mné Chquim Labouxa, do Puta Maluca, do Passa Culpas, do Julho Sardones e mais não sei quantos. Os ganhões faziam de tudo na agrícola onde fosse precisa a força animal. Trabalhavam de sol a sol, uma jeira, e tanto lavravam como transportavam fosse os moios de pão no Verão, as dornas de uvas em Setembro, ou lenha para o lagar, areia da ribeira para pequenas obras, bem como pedra, toradas, traves, caibro, enfim, tudo.
Outros, tinham uma carroça e uma besta para a puxar e com ela também lavravam e transportavam. Cavalo só havia o do Raposo, casado com Bandeira de Guerra e mula também só a do Ti Zé Rolo.
As rodas dos carros eram envoltas em ferro na oficina de outro grande artista: o ti Mné Ferreiro. Homem muito reservado, poucos lhe ouviam a voz, calmo,  muito ponderado e com uma habilidade fora do comum. Construiu sozinho um sem número de relógios de torre de igreja, refazia relógios de bolso de peças múltiplas. Ainda tenho um com o mostrador marca Combóio. O ferro era aplicado na estrutura de madeira das rodas aquecendo-o em fogueira grande até ao rubro e depois arrefecido e cravado. Vi-lhe meter vários.
Num dia em que tocava o fole da forja para enrubescer a hulha em troca de o Ti Mné Ferreiro me aguçar o meu espeta , apareceu o Puta Maluca com a sua parelha de burros atrelada ao carro: « Ó ti Mnel, tire-me lá esta tchiadêra das rodas. A minha anda-me a atentar o tino a dizer que é uma vergonha». Mné Ferreiro riu-se e caladinhamente, chega-se a cada uma das rodas, saca a cuba do eixo, unta tudo muito bem com massa consistente e volta a meter as rodas. Puta Maluca ficou especado a olhar . Pagou cinco mil réis, coisa pouca, e lá se vai com os burros a puxar o tiró do carro todo contente porque já não ia tornar a ouvir o ranço da mulher.
Depois lá calhou a vez do meu espeta ser aguçado. Fui logo experimentá-lo no alcatrão da estrada: uma beleza! enterrava-se que era um encanto. Agora já podia vir para o largo do Batoco e limpar os adversários que já tinham o ferro do espeta motcho. Fiz um figurão.
XXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIIIIIGGGGGGGGGGRRRRRRRRRRRRAAAAAAAAAANNNDDDDDEEE

terça-feira, fevereiro 04, 2014

A NOSSA FALADURA - CCIX - CAÇULHO

É lugar comum que nas aldeias as pessoas sejam mais conhecidas pelas alcunhas do que propriamente pelos nomes ou apelidos. Há mesmo alguns muito engraçados. Por muitos levantamentos que se façam nunca se consegue uma lista exaustiva e, menos ainda, da origem, ou sequer da justificação para essa alcunha.
Dou alguns exemplos: mama na burra, mija a parede, caga e torce, borra botas, papa arroz, alfácea, olho de lata,... Trago-vos hoje duas alcunhas de um casal para as quais não vislumbro a mínima justificação.
Maria TchanTchan Três e Dois são Cinco era casada com Mnel Tendeirinho. A casa onde,  mais ela do que ele, moravam ficava no alto da lagariça, ali no beco do Belorico, quando se vira no gaveto do Balão. Casa térrea de uma única divisão onde tudo se fazia: lareira, comida, dormida..., tudo. Tinham uma filha. Tendeirinho passava a maior parte do tempo em Lisboa. Vivia em Campolide no Bairro da Serafina, num tugúrio miserável, trabalhava como servente de pedreiro. Ganhava pouco e pouco mandava para Maria TchanTchan. Ambos analfabetos, nem por carta comunicavam. Tendeirinho vinha uma vez ou duas por ano à terra xêndrica e por pouco tempo. Nunca gozou férias. Tchan Tchan ia fazendo uns jornais na sacha do milho, na sementeira da batata, na plantação do eucalipto, na apanha da azeitona. A filha ia sempre com ela para todo o lado. O dinheiro não o conhecia. Viviam uma vida miserável. Pouco sociáveis, passavam a maior parte dos dias no casebre e era muito raro vê-las naquilo a que se chama O POVO. Tinham uma pequena horta, à renda, ali para os lados da quelha funda, onde cultivavam o pouco que comiam. Tendeirinho quando vinha, levava o que podia e que não podia ser muito, porque tinha que carregar com tudo às costas desde a estação de Campolide e era sempre a subir até à sua palhota. Tal como Tchan Tchan, também era muito reservado e mesmo os xendros que viviam perto dele chegavam a não o ver durante meses. Quando queria que Tchan Tchan lhe enviasse algum cesto com batata, cebola, alho, feijão e o mais que a terra dava, Tendeirinho dirigia-se à estação dos correios e fazia aquilo que se chamava, à época, (e não há assim tanto tempo como pode parecer) uma chamada de aviso. Consistia esta via de comunicação em o requerente pagar para que o titular do posto de telefone de destino fosse avisar o destinatário da chamada no prazo máximo de duas horas. À hora aprazada chegava, então, a ligação da estação de origem e a pessoa podia falar com quem desejava, num qualquer posto público. Estes postos públicos tinham uma cabina para a qual havia uma extensão telefónica a partir da qual os clientes falavam. A privacidade era nula, porque, em regra, essas cabinas estavam tão empenadas que as portas, quando as tinham, nunca fechavam. Era na loja dos meus pais que estava o posto público. Lembro-me uma vez ter recebido uma chamada de aviso para senhora Maria de Oliveira Martins, moradora na rua da Lagariça. Começo a indagar quem seria e nem mesmo o carteiro sabia quem era. Por exclusão de partes lá cheguei à conclusão de que seria a Maria Tchan Tchan Três e Dois são Cinco, tanto mais que a estação de proveniência era a de Campolide. Tchan Tchan estava na horta e lá fui eu de bicicleta a avisá-la. Chegou à hora e quando lhe digo para se dirigir à cabina, Maria nem sequer levanta o auscultador e começa ainda   distante «Quem é que quer falar comigo? És tu Mnel? Diz lá o que queres...» Bem, a cena dispensa comentários...Tive que a meter dentro da cabina, pôr-lhe o auscultador nos ouvidos, mas mesmo assim falava tão alto que era fácil perceber a conversa. O Tendeirinho pedia-que lhe mandasse cebolas e couves e alguma farinheira fresca que ela conseguisse arranjar. Maria sai-se então com esta: «Num te posso mandar as couves porque inda estão verdes como um caçulho»
Foi risada geral entre todos quantos estavam na loja. Já não se sabe o mais que Tendeirinho lhe pediu mas ela lá foi no dia seguinte a despachar o cesto com o pedido. Fui eu que lhe escrevi a tabuleta.
Esclareça-se, uma vez sem exemplo, que o caçulho popular é o carçulo, planta herbácea que cresce nas paredes e que tem uma folha carnuda, muito igual na forma à do nenúfar e que independentemente da chuva cair ou não se mantém permanentemente verde. A flor surge na ponta de um caule também muito semelhante ao da floração do cacto AloéVera. Só que em ponto muito mais pequeno, é claro.