sábado, novembro 29, 2008

A NOSSA FALA - CXVIII - (T)CHASCAR

Em tudo o que move, algo há em repouso e, em tudo o que está quieto, algo se altera. Assim somos nós: sempre os mesmos e sempre diferentes. Por isso a vida aumenta e encolhe ao mesmo tempo. Cada dia temos mais um e cada dia nos falta um. Do nascimento à morte é este o nosso sortilégio.
Além disso a nossa cara muda em função da situação, do local, do tempo, da idade, da emoção, do conhecimento ou desconhecimento, da cultura em que nascemos, do género sexual, do interesse, da necessidade, que sei eu... Sendo sempre nós estamos sempre a ser outro de nós. Nem nos esgotamos quando somos nós, nem há qualquer outro de nós que nos substitua cabalmente.Não sendo profissionais, somos actores. Na verdade, o actor é aquele tipo de pessoa de quem nunca sabemos se é ele ou alguma personagem que esteja a representar. A identidade entre o ser e o parecer consumam-se e confundem-se na arte de representar. Vede bem! o que está presente não é o presente, ele mesmo, mas um presente repetido, reforçado, outro presente: RE-PRESENTE(AR). Confuso, não é? Se calhar não vos soube apresentar o que queria que agora fosse a vossa re-presentação de mim. É ou não verdade que, quando me ledes, me imaginais? Construís uma imagem de mim, isto é, uma re-presentação de mim. Com a incerteza de que nunca sabeis se corresponde à verdade. É isto a Hermenêutica: a personificação de Hermes, o deus dos ladrões. Quando interpretamos roubamos, porque tornamos nosso, sem autorização do autor, o que ele nos apresentou. Nunca sabemos se o que pensamos que é, é o mesmo que o autor queria que tivesse sido. Foi por isso que Sócrates (o grego) nunca escreveu. Defendia que o texto morria na palavra. Eternizava-se. Já a palavra falada discute, vive, contrapõe, adapta-se, está presente ali, sempre à hora.
Vamos às xendrices:
Nunca foram muitos, na nossa aldeia, os criadores de porcos - aqueles que tinham porcas PARDEIRAS (por parideiras), mas sempre acontecia que, voluntariamente ou não, por vezes, aparecesse alguém a anunciar que a porca se tinha coberto e estava cheia: "nem dei conta. O sacana do bácoro tão pequeno saltou à porca da matança. Agora só a posso matar lá mais prá frente, tenho que a deixar crier os recos."
Calhou-me a mim que, lá em casa, ali para os lados dos cabeços havia três porcas pardeiras e, mais grave ainda, todas três pariram com pouco intervalo. Uma vinha cheia quando foi comprada e não se sabia, a outra tinha sido chegada ao barraco (varrasco) do Jaimecas à Aldeia de João Pires e a terceira tinha sido vítima do já atrás referido: um irmão, que estava na mesma furda, encheu-a.
Jaimecas, esse sim, fazia criação com alguma intensidade, extensão e continuidade. Mestre da Banda da Aldeia, para quem envio os parabéns pelo centenário, músico emérito, apesar dos dedos sarotos na mão esquerda, tanto tocava sopros como cordas. Um campeão.
Gabava-se de ter ele próprio criado uma espécie exclusiva da raça suína: a espécie ALJARPI.
A denominação advinha de ALdeia de João PIres e do nome dele ao centro - Jaime Antunes Rei - Estais já ver: AL JAR PI.
Voltemos então à minha desgraça: as porcas pariram mesmo no calor- na segunda semana de Agosto. Calor que bastasse, condições pouco menos que reles e muito, muito figo para colher. Dizia o meu pai que a farinha custava dinheiro e que as figueiras precisavam de ser colhidas e era muito mais barato. Assim, por essas cinco e meia da manhã, lá ia o desgraçado e mais o famoso carrinho quadrado, a colher os figos que, se fossem colhidos com o sol alto, as figueirs secavam e os figos emoucavam. Colhia para o chão e depois apanhava para dois cestos que tinham que vir bem cheios para as benditas porcas. Para agravar, meu pai comprou figueiras carregadas, em pé, e mais tive que colher. Cheguei a gretar os dedos do leite do figo. Por fim - o homem é inventor - roubava uma empa de um feijoal que houvesse por perto, varejava a figueira e tombava maduros e verdes. Apanhava os maduros e enterrava verdes e folhas. Vai lá vai!
Uma das porcas estava parida , paredes meias com um varrasco e a divisória era larga o bastante para que os leitões pudessem passar. Ora, o porco apanhou um e mordeu-o por cima das mãos na cerviz. O bácoro conseguiu fugir para junto da mãe, mas trazia uma enorme ferida.
Resultado: sobrou para mim: tive que ir dentro da furda para agarrar o leitão, mas deparei-me com dois obstáculos de monta. O primeiro é que os recos fugiam à deriva e o segundo era que a porca CHASCAVA (Batia os dentes, assim à maneira das cegonhas quando vêem o parceiro a chegar com alimento para todo o ninho). Consegui que o porquito entrasse para uma cesta que aventei para fora e meu pai agarrou. A ferida estava cheia de larvas de vareja. Limpámos bem, untamos com azeite e colorau, como se faz aos presuntos e tornamos a meter o tó na furda. A mãe, quando lhe cheirou ao azeite, vai de lamber. Moral: toca a ir outra vez apanhar o porco. Fui, agarrei, trouxe, mas agora em vez de pormos azeite barrámos com creolina pura. A porca bem cheirou e o porco bem ganiu, mas lá se safou. A ferida cicatrizou e veio a ser o porco da matança. Coisas da vida.
E eu já não vos maço mais hoje. Logo volto com mais xendrices.

domingo, novembro 23, 2008

A NOSSA FALA - CXVII - PÊSCO; PEXOGO; PEXÊGO

Aquilo que é, é apenas o que é. Sendo assim e numa leitura um tanto simplista, as coisas que não são, são em maior número do que as que são. Por exemplo a letra A só é A: não é nem B, nem C, nem nenhuma das outras. Logo, o que ela não é, é muito maior do que aquilo que é. Assim vale mais o não ser do que o ser. Nós somos apenas nós e não podemos deixar de ser nós. Eu só sou eu para mim e sou o outro para todos os outros que comigo convivem. Agora mesmo eu sou outro para vós. Podemos então falar de um GRANDE OUTRO e apenas de um pequeno Eu. Efectivamente EU é um pronome que todos podemos dizer mas que ninguém pode dizer por mim. Para concluir: o que não é, é mais do que o que é.
As convenções acabam por se estilizar e, não raro, estereotipam em clichés ou kitchs, ou, falando mais português, tornam-se em jargões. De algum modo tudo acaba por se reduzir a um lugar comum. O que é comum é generalizado, o que não significa que seja universalizado. O lugar do lugar comum é no anonimato. Como é de todos não é de ninguém. Já fora assim com Cristo, por exemplo, quando a multidão anónima pede a Pilatos para o crucificar e este para não ficar o único responsável "lavo daí as minhas mãos". Bem vai Kierkeggaard quando diz que " a multidão é a mentira". De facto só um corta a meta. Olhai para uma qualquer prova desportiva: aquele que é focado é o vencedor. Na verdade, o segundo já é o primeiro a perder. Por isso só torna a aparecer no pódio ao lado e abaixo do vencedor.
Ainda no campo do desporto: quase todo o relator de futebol fala das quatro linhas :«a bola saíu das quatro linhas»; ora, o campo de jogo é de forma rectangular e eu aprendi na escola que o rectângulo é uma figura geométrica de uma só linha com os lados iguais dois a dois e paralelos dois a dois formando ângulos rectos. Aliás não é difícil desenhar um rectângulo sem nunca levantar o lápis ou agarrar numa única linha e dar-lhe a forma rectangular. Não faz sentido, então, falar de quatro linhas. Nem de bola à flor da relva, nem de posse de bola, etc. etc. . As convenções são muito fortes e passam por cima das evidências, pois criam hábitos de pensamento que pura e simplesmente reage a estímulos e não pensa o que diz, agindo como um psítaco. Solta palavras mas não conceptualiza.
Regressemos à terra e aos xendros que já é tempo!
Em qualquer grande superfície aparecem as nectarinas que os xendros chamam e bem PÊSCOS CARECAS. Havia apenas um na aldeia. Ficava para os lados do caminho das águas e era pertença do velho Bites, latoeiro (=funileiro), sempre de bengala, grande fadista e cantor de improviso quando apanhava a trovoada. Ainda o ouvi algumas vezes. Quantas vezes o ouvi também amaldiçoar a canalha que lhe gamava os pexogos pelados como ele lhe chamava. Chegava a dormir no terreno para os guardar, mas a rapaziada quando o caçava na horta mais longe e sabendo-o coxo, rapidamente chegava à árvore e raspava-se enquanto o Bites gritava impropérios.
A prova indesmentível desta faladura é o facto de haver mesmo na aldeia, ali para os lados do ribeiro cimeiro o ti Jaime Pexogo casado com a Glória Violas, irmã de Conceição do Trém e de Lurdes e de Clara. Fazia o Chão da Ribeira onde chiava sempre a nora tocada pelo fadista, burro mansinho que se ajoelhava para a ti Glória se montar. Outros tempos, outras agriculturas, outros xendros.
Hoje quis também não vos deixar um lugar comum. Talvez para vosso pesar e meu deleite.
É a vida!

XXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIII GGGGGGGRRRRRRRRRAAAAAAAADDDDDDDEEEEEEEE

sábado, novembro 08, 2008

A NOSSA FALA - CXVI - GADAPUNHO/a

Leroi-Gourhan em Le Geste et la Parole, com mestria, defende que o trajecto da evolução humana se inicia no pé, passa à mão e termina no cérebro: é a famosa dialéctica do pé - mão - cérebro. O bipedismo humano encarregando os pés do suporte do corpo e deixando as mãos livres para as outras funções mecânicas, desde coçar-se, fabricar instrumentos (do erectus chegou ao faber e ao habilis), até abraçar, fazer gestos para intercomunicar - sim que a um caçador não convinha meter barulho que assustasse a presa - por isso, inventou a sinalética, o gesto, o mimo, sinalizando o que pretendia ao outro seu igual e companheiro na angariação de alimento, até, por fim, chegar ao sapiens e ao sapiens sapiens com as consequências advenientes: oponência do polegar, redução do prognatismo, aumento do perímetro cefálico (...)
Não resisto a adulterar a tese de Gourhan: hoje temos ainda o demens...
Vem tudo isto a propósito de que na sociedade nética em que convivemos e competimos, a ordem natural destes factores se inverteu ou pelo menos se subverteu, profanou, sei lá!
Aqueles que, como eu, ainda jogaram descalços à bola, para todos estarem em igualdade de circunstâncias e que corriam a ribeira e os campos em busca de aventura, tinham que tirar da cabeça muitos engenhos que construíam e que depois lhes serviam para uma finalidade, mesmo que essa fosse o jogo (afinal também há o homo ludicus).
Lembro-me bem de irmos, eu e muitos, para a Eira Cimeira onde abundavam mimosas e construir arcos e flechas com que jogávamos aos índios e cow-boys, outros faziam pistolas de cana rasgando orifícios com navalhas afiadas e construindo uma mola que faria disparar o projéctil, ainda relas e caravelas (agora chamam-lhes vira vento) de embude seco, colando as paletas de papel com carapetos de silva (e se aquilo girava!), bilhardas, pinocos, carrinhos de empurrar, trotinetes de esfera, fisgas ( fungas, como lhe chamávamos) , piões, que sei eu, tudo era por nós construído, as mãos tinham importância e "dialogavam" com o cérebro proporcionando um benefício mútuo.
Quando algum aparecia com algum brinquedo, ou mais perfeito ou inédito : «mostra lá!» e o autor: "olhó aqui! tu vês com os olhos; sapa daqui as gadapunhas ou tens a vista na ponta dos dedos? O diálogo continuava e a arte de falar, com alguma oratória e bajulice a acompanhar, mais cedo ou mais tarde, lá permitia que a novidade fosse mirada e remirada e, às vezes, imitada.
Já não é assim agora: a rapaziada já não joga a bola na estrada, já quase não vai a pé para a escola, mexer numa faca nem pensar, fazer um brinquedo não é preciso porque os poluímos com tantos que lhes damos e dão, a ponto de nem lhes ligar nem os respeitar e cuidar.
As mãos já não fabricam. Estão condicionadas a um conjunto de tarefas pré- determinadas e fiscalizadas por guardiões do templo que apoiam, estimulam, convencem. Fazem todos o mesmo, não há originalidade nem criatividade. Só mecanicismo. Começam à hora, acabam à hora. Já não têm o "nosso" tempo, mas apenas o tempo que lhes concedem.
Sendo assim, o pé corre pouco porque fica quieto na sala, a mão tem pouca maleabilidade e elasticidade porque condicionada apenas aos exercícios pro(im)postos, e, em consequência, o cérebro prepara-se para funções repetitivas sem desafios que o obriguem a sinapses mais complexas e a respostas, que, certas ou erradas, não interessa, eram resultado de um exercício individual e solitário do pensamento individual e não uma resposta condicionada a ordens e a horas que os outros estabelecem.
O largo do Batoco, hoje baldio, em tempos foi alvo de disputas pela posse e há ainda quem, velada ou confessadamente, afirme que lho roubaram e que, se quisesse, ainda podia fazer valer o direito de propriedade sobre o espaço.
Aí, ao canto esquerdo, havia uma poça (espécie de charco), onde muito gado bebia e, espalhado pelo largo, havia tufos de bravos e até mesmo, junto à parede que o limitava e que tapava o ribeiro do Batoco, hoje coberto, paralelo ao quintal dos Póvoas, havia mesmo embacelamento das vides. O resto do espaço era absolutamente desorganizado e a malta jogava ali à bilharda, ao ferro, ao pinoco, a esconder e a achar, ao burro,... e, às vezes, traçava-se um itinerário para uma gincana com cronometrista e tudo, que o Velho Jonja já tinha um relógio de pulso marca Cauny e emprestava quando era ele a dar a volta.
A gincana tinha várias fases, desde o pé cochinho, à corrida livre, a saltar aos pés juntos e, claro, a dar a volta inteira com o mais que famoso carro quadrado das bilhas do gás, onde ninguém, mas mesmo ninguém , algum dia meteu os gadapunhos com a habilidade e mestria deste que isto tudo vos conta. Dava-lhes um bailinho que eles : "Filho dum raio que o parta, num há ninguém que lhe consiga ganhar com o cabrão do carroço! É chapado para manobrar aquilo".
Perdoe-se-me a vanglória, mas quem não tem um Ego de estimação, também nunca viveu uma aventura assim mesmo daquelas comédado.
Confesso que isto hoje foi um bocadinho para o pesado, mas o cérebro é agora quem comanda e a mão (não já o gadapunho) limita-se a obedecer e a carregar na tecla que permite construir a palavra que dá sentido a isto tudo.
Descansai o vosso cérebro: para a semana já volto, com ou sem carrinho do gás.
XXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII.