Em tudo o que move, algo há em repouso e, em tudo o que está quieto, algo se altera. Assim somos nós: sempre os mesmos e sempre diferentes. Por isso a vida aumenta e encolhe ao mesmo tempo. Cada dia temos mais um e cada dia nos falta um. Do nascimento à morte é este o nosso sortilégio.
Além disso a nossa cara muda em função da situação, do local, do tempo, da idade, da emoção, do conhecimento ou desconhecimento, da cultura em que nascemos, do género sexual, do interesse, da necessidade, que sei eu... Sendo sempre nós estamos sempre a ser outro de nós. Nem nos esgotamos quando somos nós, nem há qualquer outro de nós que nos substitua cabalmente.Não sendo profissionais, somos actores. Na verdade, o actor é aquele tipo de pessoa de quem nunca sabemos se é ele ou alguma personagem que esteja a representar. A identidade entre o ser e o parecer consumam-se e confundem-se na arte de representar. Vede bem! o que está presente não é o presente, ele mesmo, mas um presente repetido, reforçado, outro presente: RE-PRESENTE(AR). Confuso, não é? Se calhar não vos soube apresentar o que queria que agora fosse a vossa re-presentação de mim. É ou não verdade que, quando me ledes, me imaginais? Construís uma imagem de mim, isto é, uma re-presentação de mim. Com a incerteza de que nunca sabeis se corresponde à verdade. É isto a Hermenêutica: a personificação de Hermes, o deus dos ladrões. Quando interpretamos roubamos, porque tornamos nosso, sem autorização do autor, o que ele nos apresentou. Nunca sabemos se o que pensamos que é, é o mesmo que o autor queria que tivesse sido. Foi por isso que Sócrates (o grego) nunca escreveu. Defendia que o texto morria na palavra. Eternizava-se. Já a palavra falada discute, vive, contrapõe, adapta-se, está presente ali, sempre à hora.
Vamos às xendrices:
Nunca foram muitos, na nossa aldeia, os criadores de porcos - aqueles que tinham porcas PARDEIRAS (por parideiras), mas sempre acontecia que, voluntariamente ou não, por vezes, aparecesse alguém a anunciar que a porca se tinha coberto e estava cheia: "nem dei conta. O sacana do bácoro tão pequeno saltou à porca da matança. Agora só a posso matar lá mais prá frente, tenho que a deixar crier os recos."
Calhou-me a mim que, lá em casa, ali para os lados dos cabeços havia três porcas pardeiras e, mais grave ainda, todas três pariram com pouco intervalo. Uma vinha cheia quando foi comprada e não se sabia, a outra tinha sido chegada ao barraco (varrasco) do Jaimecas à Aldeia de João Pires e a terceira tinha sido vítima do já atrás referido: um irmão, que estava na mesma furda, encheu-a.
Jaimecas, esse sim, fazia criação com alguma intensidade, extensão e continuidade. Mestre da Banda da Aldeia, para quem envio os parabéns pelo centenário, músico emérito, apesar dos dedos sarotos na mão esquerda, tanto tocava sopros como cordas. Um campeão.
Gabava-se de ter ele próprio criado uma espécie exclusiva da raça suína: a espécie ALJARPI.
A denominação advinha de ALdeia de João PIres e do nome dele ao centro - Jaime Antunes Rei - Estais já ver: AL JAR PI.
Voltemos então à minha desgraça: as porcas pariram mesmo no calor- na segunda semana de Agosto. Calor que bastasse, condições pouco menos que reles e muito, muito figo para colher. Dizia o meu pai que a farinha custava dinheiro e que as figueiras precisavam de ser colhidas e era muito mais barato. Assim, por essas cinco e meia da manhã, lá ia o desgraçado e mais o famoso carrinho quadrado, a colher os figos que, se fossem colhidos com o sol alto, as figueirs secavam e os figos emoucavam. Colhia para o chão e depois apanhava para dois cestos que tinham que vir bem cheios para as benditas porcas. Para agravar, meu pai comprou figueiras carregadas, em pé, e mais tive que colher. Cheguei a gretar os dedos do leite do figo. Por fim - o homem é inventor - roubava uma empa de um feijoal que houvesse por perto, varejava a figueira e tombava maduros e verdes. Apanhava os maduros e enterrava verdes e folhas. Vai lá vai!
Uma das porcas estava parida , paredes meias com um varrasco e a divisória era larga o bastante para que os leitões pudessem passar. Ora, o porco apanhou um e mordeu-o por cima das mãos na cerviz. O bácoro conseguiu fugir para junto da mãe, mas trazia uma enorme ferida.
Resultado: sobrou para mim: tive que ir dentro da furda para agarrar o leitão, mas deparei-me com dois obstáculos de monta. O primeiro é que os recos fugiam à deriva e o segundo era que a porca CHASCAVA (Batia os dentes, assim à maneira das cegonhas quando vêem o parceiro a chegar com alimento para todo o ninho). Consegui que o porquito entrasse para uma cesta que aventei para fora e meu pai agarrou. A ferida estava cheia de larvas de vareja. Limpámos bem, untamos com azeite e colorau, como se faz aos presuntos e tornamos a meter o tó na furda. A mãe, quando lhe cheirou ao azeite, vai de lamber. Moral: toca a ir outra vez apanhar o porco. Fui, agarrei, trouxe, mas agora em vez de pormos azeite barrámos com creolina pura. A porca bem cheirou e o porco bem ganiu, mas lá se safou. A ferida cicatrizou e veio a ser o porco da matança. Coisas da vida.
E eu já não vos maço mais hoje. Logo volto com mais xendrices.
2 comentários:
Cá fico à espera de mais xendrices.
Já li! E gostei!!! Nem podia ser de outra maneira. Desta vez até me levaram à minha Aldeia, a dos "Cucos"...
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