terça-feira, abril 16, 2019

CCLVI - A NOSSA FALADURA - ATINTAR



Parece que antigamente, dizem, a canalha guardava respeito ao Senhor Professor.
Parece que agora, dizem, o ambiente na sala de aula é mais, digamos, descontraído. 
Vai o tempo em que os meninos se perfilavam militarmente ao lado da carteira, respondiam em uníssono à saudação “bom dia Senhor Professor” e sentavam-se à sua ordem. Durante décadas, e a mando do António de Oliveira, fez parte do mobiliário da sala de aula o crucifixo, ladeado pelos retratos emoldurados do Presidente do Conselho, ele próprio, e do Presidente da República Américo Thomaz. Também vai o tempo em que as Senhoras Professoras tinham de pedir autorização ministerial para contraírem matrimónio.


Parece que o António de Oliveira não era de brincadeiras. Não havia cá desmandos ideológicos de gente a clamar por liberdade e por democracia. O referencial maior era muito simples: tudo pela Nação, nada contra a Nação, quer-se dizer, tudo pelo governo, nada contra o governo. A ajudar nesse superior desiderato, para além do Senhor Professor, agentes operacionais e autoridades maiores em qualquer comunidade no antigo regime eram, não necessariamente por esta ordem, o Regedor, o Senhor Presidente da Junta e o Senhor Prior.

Na escola, o Senhor Professor era o todo poderoso a quem era tacitamente concedida autorização para, imagine-se, bater, magoando a sério, nos meninos. Sucedia até que a admoestação violenta do Senhor Professor era muitas vezes complementada com mais admoestação violenta – quase sempre, dizem, pela mãe. A educação dos meninos e das meninas desses anos, no esquema do regime do António de Oliveira, inspirou-se, primeiro na convicção de que saber ler, escrever e contar era suficiente para a maioria da mocidade portuguesa, depois, na exaltação da matriz moral resumida na trilogia “Deus, Pátria e Família” transformando a escola num verdadeiro aparelho ideológico do Estado (AIE), como bem teorizou Althousser.

O regime criou um sistema eficaz na divulgação e sedimentação da ideologia dominante através dos principais AIE ao serviço do regime, com destaque para a escola, a par da igreja ou da família. À sombra do “Deus Pátria e Família” o sistema de ensino tratava de inculcar nas cabecinhas das moças e dos moços lusitanos os valores morais que interessava à ratificação e manutenção da situação. Meninos numa sala, meninas noutra, todas sob o olhar dos omnipresentes Suas Excelências. As meninas iam menos à escola porque elas precisavam era de aprender a serem boas esposas para cuidarem bem da casinha e educarem bem os filhos e amarem e respeitarem o marido. Pois, porque “na família o chefe é o Pai, na escola o chefe é o mestre, no Estado o chefe é o Governo”.

Na escola, portanto, não havia discussão quanto aos valores da ordem e da disciplina, facilitados pelo recurso fácil à menina dos cinco olhos. Os meninos e as meninas tinham de saber cantar a tabuada e tinham conhecer de cor todos os rios e todas as serras do país sem nunca terem saído da sua aldeia, ainda que soubessem na ponta da língua todas as linhas de caminho de ferro de Portugal. E liam nos livros da instrução primária “obedece e saberás mandar”, ou “se soubesses o que custa mandar, gostarias mais de obedecer toda a vida”.

Em todo este sistema, o Senhor Professor era peça central, a quem era guardado o máximo respeito. Nenhum fedelho se atrevia a atintar o Senhor Professor, ou o Senhor Prior, ou o Senhor Presidente da Junta ou o Senhor Regedor.

Num dia de primavera, inteiro e limpo, as coisas começaram a cambiar.

No Externato de Nossa Senhora do Incenso, o Colégio, como era habitualmente designado, naquele ano de final de abril de 76, já se ia esfumando o cheiro dos conturbados dias do PREC. Passaram a esporádicas as RGA nas quais os alunos mais velhos e carismáticos, de cabelo comprido e calças à boca de sino, debitavam inflamadamente novas palavras e expressões, conjuravam o fascismo, vociferavam contra as forças reacionárias e revisionistas, enalteciam a liberdade e a democracia, davam vivas à revolução, argumentavam com base em justas reivindicações da massa estudantil. Os tribunos mais  eloquentes e informados represtinavam palavras de ordem de outras "revoluções" decretando que era proibido proibir, propondo ser realistas exigindo o impossível, enfim, querendo tudo e já.

O velho e disciplinador respeitinho pelo Senhor Professor esmoreceu bastante neste tempo.

O Senhor Professor Barbosa esforçava-se por ensinar ciências com a dedicação que lhe vinha de antes. Os seus alunos, alguns, poucos, nem sempre lhe reconheciam a postura seríssima e atintavam-no como a nenhum outro. Maldosamente. Sem valorizarem ou sequer se aperceberem do carácter científico do fenómeno, ganharam o hábito de bater vigorosamente a esponja de apagar o quadro, minutos antes de começar a aula de ciências com o Professor Barbosa. Podiam aproveitar para observar o comportamento das minúsculas partículas de pó de giz que ficavam suspensas no ar à luz das teorias da física. Mas não, eles queriam era atintar o Senhor Professor Barbosa porque sabiam que a sua asma o obrigaria a atrasar o início da aula até que as condições lhe permitissem respirar com normalidade. E assim, ganhavam-se mais 15 minutos de intervalo.

A sua postura honesta e espontânea, um dia, tramou-o. Naquele dia, chegara ao Colégio visivelmente consternado porque tinha recebido a notícia do agravamento do estado de saúde da sua irmã octogenária a quem ele estava muito ligado. Logo na primeira aula partilhou, ingenuamente, essa sua grande ralação. Ao intervalo, a informação passou ao conhecimento de Abílio Pardalim, xendro, e ZéTó Picanço, aranhiço, conhecidos javarinos nas suas aldeias, daqueles que meia dúzia de anos antes eram mais foitos a escapulirem-se da escola à cata de ninhos de cotovias, de espadachos e de felosas do que a aprender a cantarolar a tabuada do nove e a debitar as principais montanhas do país. Quase em simultâneo, anteviram logo ali que naquele dia haveria “furo” na aula de ciências do Professor Barbosa. Rapidamente gizaram e operacionalizaram o plano: correram rampa abaixo à cabine telefónica em frente à Câmara, discaram o número do Colégio e, quando a D. Augusta atendeu, Abílio, com a voz mais grossa e grave que conseguiu, falou:

- Está lá? Bom dia minha senhora, estou a falar para o Externato de Nossa Senhora do Incenso de Penamacor?

- Sim, está, faça favor de dizer.

- Minha senhora, daqui fala da parte do Senhor Presidente da Junta de Monsanto que me pediu para transmitir uma triste notícia ao Senhor Professor Adelino Galhardo Barbosa.

D. Augusta, era uma figura histórica do colégio. Durante mais de 3 décadas assumiu as funções de chefe de secretaria, cabendo-lhe tocar o sino colocado no átrio da escola mesmo por cima da porta de entrada para a secretaria, para sinalizar o início e fim das aulas. Conhecedora da situação, deduziu imediatamente o que, supostamente, sucedera.

- Ai valha-me Nossa Senhora do Incenso, o senhor vem dizer que morreu a irmã do Senhor Professor Barbosa?

- Correcto e afirmativo minha senhora. É com profunda consternação que informo que faleceu esta manhã a irmã do Senhor Professor Adelino Galhardo Barbosa, residente que era em Monsanto, solicitando o obséquio de o comunicar ao Senhor Professor.

D. Augusta foi de imediato transmitir a “má” notícia ao docente que, naturalmente, se apressou a dirigir-se para Monsanto.

Orgulhosos da façanha, Abílio pardalim e ZéTó picanço foram-se colocar estrategicamente para poderem ver passar o Professor Barbosa que agarrava com ar aflito o volante do seu Ford Taunus creme. Abílio ainda suavizou a malandrice dos dois bardinas:

- Olha, ao menos há-de ficar contente quando chegar a Monsanto. Bora à tasca do Bolas a malhar uma patanisca e um branquinho.



terça-feira, abril 02, 2019