segunda-feira, fevereiro 04, 2008

A NOSSA FALA CIV - CHORADELA DE ENTRUDO

Não sendo versado em Latim (para isso está aí o changoto), quer-me parecer que Entrudo há-de derivar de alguma palavra dessa antiga língua e que haveria de ter um significado próximo de “entrada”. Estaremos então num tempo que marca o início de algo. A curta pesquisa que fiz bastou-me para chegar a 2 “entradas”.

Uma, remete para a era AC, durante a qual, fosse entre os Celtas, os Celtiberos, os Gregos ou os Romanos, as festividades representariam a celebração do (re)início da vida, o fim do Inverno e a “ressureição” da Mãe Natureza. Em termos simples, o anúncio de que a Primavera estaria próxima. Uma antecipação às andorinhas e ao “dácáocú” do cuco, pois.

A outra “entrada” foi aberta pelos sábios teólogos apostólicos romanos – na era DC, evidentemente - na sequência dos ditos e feitos do Cristo, os quais determinaram que o Entrudo passasse a marcar o início (a entrada) de outra coisa. Chamaram-lhe os sábios teólogos, Quaresma, um período abstinencial que culminaria não já na “ressureição” da Mãe Natureza mas do próprio JC.

Em qualquer dos casos, aceitava-se que a “entrada” devia estar associada a liberdade e ser comemorada em festa, e que a festa devia ser de arromba, sendo socialmente tolerado o abuso. O povo aproveitava a trégua para satirizar o clero e a nobreza, para troçar dos costumes e da moral vigente, para dar largas a pulsões primárias. À cautela, fazia tudo isso sem mostrar a cara, escondida por uma máscara, não fossem os poderosos ficar melindrados com a mordacidade da crítica e mostrarem ao povo que continuavam poderosos no dia seguinte. A ideia evoluiu para variados formatos e alvos: os poderosos foram substituídos pelos pares da comunidade, o que, convenhamos, era muito menos perigoso e reconhecidamente mais cómico. Também era mais purificador por via da purga que conseguia operar através da denúncia e exposição pública de certas situações que ocorreram ao longo do ano e respectivos protagonistas.

Um desses formatos, antigamente utilizado na terra dos Xendros adoptou a designação de Choradela de Entrudo, e funcionava como catarse da própria comunidade. Por estes dias, João Frêtas, Miguelito e companhia, percorriam as ruas da Aldeia a exibir ostensivamente exemplares da revista Gina e acabavam no Adro ou na Lameira a dramatizar as situações caricatas e a satirizar os protagonistas, para gáudio dos conterrâneos, excepto, claro, dos visados.

Muitas das histórias contadas aqui no Baságueda são dignas de choradelas de Entrudo, como as que se relataram aqui e aqui . Acrescentam-se mais duas ao rol, para eventual encenação:

1. O ano era de seca e Ti Fcisco Cocharra viu esgotar-se a água do poço, ainda os tomates e os pimentos estavam verdes. Ele bem procurou gerir o precioso líquido, regando quase de noite, e adoptando a técnica localizada com o regador em vez do encaminhamento nos regos. Determinado a fazer horta farta como nos demais anos, decidiu-se por recorrer à água da rede, mesmo que tivesse de a transportar desde a sua casa no povo. Davam as 4 no relógio da torre da Igreja, ajeitou o cabresto e a rédea no burro, assentou-lhe o bornil e a canga e colocou-o entre os varais da carroça. Atou bem os dois bidões de latão aos fogueiros, encheu-os com água a partir da torneira, e iniciou a primeira de muitas viagens entre a aldeia e a sua horta. Pouco se importou que os vizinhos, estremunhados, tivessem vindo à janela a recriminá-lo por causa do barulho que as rodas de ferro faziam a rolar na calçada.
Ao fim do dia, já ele tinha meio metro de água no poço.

2. O jeito para o negócio estava no sangue ao Ti Zé Labouxa. Negociava em tudo, desde porcos a batatas, de ferro-velho a cortiça. Sempre atento às oportunidades, fazia questão de não perder uma. Estava ele a beber o alboroque da venda de uma mula quando se sentiu atraído pela conversa que, ao lado, mantinham Zé Luís Barata e Mnel Frêtas, dois exímios da aldrabice, uma arte que haviam de apurar com o tempo. Confidenciava o primeiro ao segundo que um espanhol lhe tinha oferecido 5 contos por cada quilo de cascas de alho que lhe arranjasse. Parece que o espanhol as queria para remédios, mas tinha de ser depressa e ele, rais parta a sorte, não podia alinhar no negócio porque tinha de ir a Lisboa a casar um sobrinho. 5 contos era dinheiro, naqueles anos 60, e o Labouxa não hesitou em ficar com o negócio do outro. Consta que andou dias a arrebanhar forros onde havia alhos armazenados, chegou até a comprá-los só para lhes tirar a casca.

Bons entrudos.