domingo, outubro 29, 2006

A NOSSA FALA LXIX - (A)REPELINDO

Namorar no antigo regime não era nada fácil, às vezes era quase tão perigoso como dizer mal do Salazar. Que o diga o Tonho Jaja Nova, moço humilde e de posição social modesta, que bem mereceu a vitória da conquista da sua C’ceição.

O processo de escolha do cônjuge era moroso e delicado porque havia que enfrentar e vencer vários adversários: a resistência da donzela, a desconfiança do pai e da mãe (não necessariamente por esta ordem), a concorrência dos pares (proporcional aos atributos físicos, patrimoniais e sociais da donzela), e os tabus de todos (este todos quer designar o “povo”) que fazia questão de exigir ao mancebo prova da sua seriedade.

C’ceição, filha de Xquim Choças e de Strudes Forca dos Ratos era moça bela, com tudo no sítio, bem colocado e distribuído nas medidas e proporções adequadas. Também era arisca como lhe ensinou a mãe, mulher pequena e redonda, de bigode fino e língua afiada para a maledicência, malina em pensamento e acções, autoridade máxima e incontestada da casa. Xquim choças, homem seco de carnes, há muito que se tinha vergado ao regime que a mulher impunha, respondendo com o refúgio na quinta na Lameira da Pinta, complementado na borracheira dominical na Tasca do Fatela, assumindo o sermão certo da ceia que nesse dia nunca tomava. Mais tarde, fechada a tasca do Fatela (e as outras também) mudou-se para o café da Rosa, com quem fez um trato: ela tinha de lhe servir o vinho em chávena de café. Chegava a tomar 20 cafés numa tarde. Mas voltemos à questão dos namoricos no antigo regime.

A coisa começava por fazer várias aproximações exploratórias à donzela, habitualmente no balho do domingo. Tonho Jaja Nova passava a semana repelindo que chegasse o dia para poder estar junto da amada. Logo que se armava o balharico, posicionava-se estrategicamente nas proximidades da C’Ceição para ser o primeiro a pedir-lhe a dança, mal o Ti Mnel Ceguinho arranhava as primeiras notas na concertina. Na corrida estavam vários abutres como o Xico Catorze, o Jorge Pirolito e o Luís Varinha d’Arado. A este último chegou a partir o nariz numa bulha de final de balho, porque o outro lhe atirou que ele não era homem para a C’Ceição: “mas sou homem p’ra ti ó paspalho”.

Feitas as primeiras aproximações, punha-se em marcha uma estratégia de publicidade da imagem junto do progenitor a quem, como quem não quer a coisa, se pagava um copito na tasca do Fatela, e junto da progenitora, a quem, como quem não quer a coisa, se informava que se ela não tivesse lá couves para pôr, ele arranjava-lhas, penca de chaves, bacalã ou de sete semanas, “como vomecêi quizer, ó Ti Strudes”. Em complemento, recorria-se a informadores privilegiados a quem se encarregavam de fazer chegar cartas (verbais) de recomendação (“o Tonho é bom moço, é poi, sério e trabalhador, inda no outro domingo o vi eu a esborralhar a vinha do pai, e deu conta dela sozinho”.

À donzela competia resistir aos avanços do mancebo, mais nas primeiras tentativas, reduzindo gradualmente ao longo dos 4 ou 5 meses que levava o rapaz a arranjar coragem para lhe pedir namoro. A fase seguinte, igualmente delicada, era o pedido de autorização ao progenitor, que era preciso enfrentar esperando que o investimento dos copitos na tasca do Fatela tivesse o seu retorno: “Olhe lá T’Xquim, vocemessêi sabe qu’ê gosto da su C’ceição, e atão ê queria-lhe pedir qu’ma deixasse namorar cá in casa. Ande qu’ê no stou cá pa brincadêras… ”. O deferimento havia de vir, naturalmente, da Ti Strudes, sensibilizada com as couves penca de chaves, e com a novidade que eram as sementes de courgetes que o Tonho lhe havia oferecido. Mas isso não a inibiu de proferir com ar sério e ríspido: “ôlhér quê no quero cá poucas vergonhas! Bem...”

A noite de 4ª feira era oficialmente dedicada ao cortejo, tirando, claro, os balhos do domingo à noite. A censura, personificada na Ti Strudes, posicionava-se na cozinha, atenta ao que se passava na sala, onde Tonho e C'Ceição se enfrentavam de cada lado da mesa de jantar tapada por uma toalha de linho bordada à mão e jarro de flores ao centro, sentados em cadeiras de verga. Nas primeiras vezes, olhavam-se timidamente. Às vezes também conversavam. O tempo que estava a fazer e que iria fazer e seus efeitos na agricultura era tema recorrente. Em alternativa, havia o sempre fértil e inesgotável tema da vida na aldeia.

A medo, entrelaçavam as mãos. Não se usava ainda o cruzamento terno de olhares e a expressão “tens uns olhos tão lindos!”. Fora de questão estava encostar lábios e roçar línguas, muito menos apalpar fosse o que fosse… A prevaricação corria o risco de ser sancionada por descompostura da matriarca “Pscht! Ó meninos qu’arraio de pouca vergonha é essa?, tâmazi?”, ou à desaprovação social, com terríveis consequências no mercado de escolha do cônjuge.. A paixão tinha de ser reprimida, o amor tinha de ser martelado.

Era o tempo da sardinha para três, do trabalho de sol a sol, das cantorias no trabalho, das excursões de burro à festa da ribeira (da Baságueda, claro), do andar descalço porque as botas eram caras. Naquela fase inicial em que o Tonho se propôs a si próprio conquistar a C’ceição, o balho de domingo, já se disse, era um momento ansiosamente aguardado e crucial da estratégia. A ansiedade era acompanhada por uma sensação de desespero quando o pai do Tonho demorava a ir para a cama. É que o Tonho precisava das botas do velhote. Por isso, acabada a ceia, estava sempre (a)repelindo de ouvir o ronco a entrar em velocidade de cruzeiro para surripiar as botas que o seu austero progenitor arrumava debaixo da cadeira de verga que servia de mesa de cabeceira. Depois, apresentava-se orgulhosamente no balho com umas botas impecavelmente ensebadas. Claro que, antes de as recolocar no mesmo sítio, tinha o cuidado de lhe passar o sebo novamente. Tudo corria bem, até que o pai, um dia, se deu conta de que o tacão estava exageradamente gasto de um lado e que, estranhamente, as botas já precisavam outra vez de ir ao Guerrilhas sapateiro, para meias solas. No domingo seguinte, o Tonho confirmou que o amor é mesmo sacrifício: aguentou sem um gemido as vergastadas que o pai lhe aplicou com a correia de cabedal, bem como cumpriu à risca o castigo de esborralhar a vinha da saramaga, durante o dia de domingo. Não seria por via dessas minudências que a C’ceição não havia de ser sua. E veio a ser.

Estava o mesmo século a acabar, a neta do Jaja Nova, 18 anos, andava repelinda de se entregar ao neto do Varinha d’Arado, 19 anos, moço esbelto de olhos verdes, sempre de cabelo propositadamente desarranjado à conta de uma mão cheia de gel. Era Sábado, estavam ambos no café, juntamente com os outros jovens, enfadados de não haver espaços de animação na aldeia nem à volta. Discretamente, mandou-lhe um sms:“But’aí curtir?” Recebeu um sms dele com a resposta: “ya, bute”. Sairam para a esplanada, olharam-se ternamente nos olhos, ela disse-lhe “Tens uns olhos bué da lindos”, beijaram-se na boca com paixão, apalparam-se… ninguém os incomodou.

sexta-feira, outubro 20, 2006

A NOSSA FALA - LXVIII - CUNCA

Já era adulto quando ouvi pela primeira vez a palavra sanefa.
Parece até mal dizê-lo, mas fica bem esta confissão. Estranheza tive também quando oiço na televisão chamarem MACACA a um jogo que na aldeia sempre se chamou
descanso. Jogava-se com uma CUNCA: um bocado de telha galega ou de um tijolo com o tamanho de meia palma de mão e sem configuração definida. Convinha que tivesse uma parte com ligeiro rebordo ou saliência já que facilitava o impulso que lhe era dado pelo pé coxinho quando passávamos de casa em casa. Este jogo do descanso era misto, tanto era jogado por rapazes como por raparigas. Não eram muitos os que gozavam deste privilégio. Por via de regra os jogos eram diferenciados por géneros sexuais. Um dia pode ser que tratemos deste tema das brincadeiras da canalha em tempo de escola.(...)
No tempo da colheita da azeitona, às vezes Dezembro já avançado, dias curtos e frio que bastasse, Mnel Mantarrota, da esquina do café da Rosa, por essas seis -que o trabalho espera-se no sítio e não em casa - fazia soar o búzio chamando o rancho para a abalada. Na Aldeia vislumbrava-se aquela fumaça por sobre os telhados, efeito da miguinha da batata em panelinha de ferro ou do aquecimento da VIENDA para o porquinho, que o regresso era só já de noite.
Lá vinham eles e elas aos pares ou isolados e confluíam para o adro.Os diferentes grupos formavam-se e do barulho passava-se a um silêncio que só algum cão cortava no aferrenho a alguém que passasse na sua área de circunscrição e ele não conhecesse ou dele tivesse má memória, por via de alguma pedrada ou ameaça com paulada.
O almoço era invariavelmente ao meio dia. O lume era aceso logo de manhã e mantido aceso todo o dia, que, naqueles tempos, o códão só abalava lá para as onze e mãos e pés arreganhavam com facilidade. De vez em quando era imperioso descer da escada e reactivar a circulação, ou, então deixar de apanhar para que os dedos não ficassem hirtos hora de almoço lá saíam das bandoleiras o corno com as azeitonas, o tanoco de pão centeio ou de mistura, uma tora de toucinho e uma cunca de queijo. Alguns, sobretudo quando o casal pertencia ao mesmo rancho, levavam comida de tacho embrulhado em rodilhas por mor de não perder de todo o quentinho do lume. O toucinho ou a morcela, o naco de entremeada (luxo maior) ou até mesmo o pão, eram aquecidos na ponta de uma sovina e pingavam sobre o pão. Velha era a história do toucinho assado e do pão pingado. Quem não se lembra desta maravilha, sempre recontada quando as couves coziam ao lume, com a panela pendurada nas cadeias, que, por baixo, às vezes, era preciso pôr o pucheirinho para fazer o café de borra com que se mataria a bicheza na manhã do dia seguinte. (...)
Se há coisa de que eu quase nunca prescindo quando ando nas lides campestres é duma valente posta de bacalhau, bem regada no azeite da bela oliveira e com dentes de alho que dá para uma família de cidade para uma semana. Se acompanhada por umas batatinhas assadas na cinza, então, aí o sete-estrelo do prazer gastronómico fica mesmo ao lado. Se o vinho for a condizer claro está que ultrapassa a raia do extraordinário. Minha mãe sabia disso. Mãe é sempre mãe e eu tinha algumas vezes na minha buchinha um postinha do fiel e um garrafinho de azeite já com o alho escarchado . Lambia-me.
Muitos de vós talvez já não vos lembreis daqueles queijos cabreiros, muito negros, baixinhos, com gordura envolvente, os quais eram tratados em tábua de solho revestida de palha centeia e todos os dias voltados e passados por água tépida com muito jeitinho. Aquilo era - às vezes(cada vez menos) ainda consigo arranjar um ou outro- aquilo era, e é, um prazer inefável. Só com uma cunquinha quase se comia um pão inteiro tal a intensidade do sabor.(...)
Para que a cunca não fique sem todos valores da sua polissemia aqui vai o derradeiro: quem ia a monte, aviar a vida, arrear a calça, telefonar ao Salazar, aliviar a tripa, fazer um alívio, estrumar a couve, dar comida à mosca, que sei eu?... quem ia, por norma, levava uma cunca, ou mais, para limpar o traseiro. Quando se esquecia da cunca servia uma pedra meia lasca, ou mesmo umas folhas de carvalho. Aos garotos, por vezes, aconselhava-se a folha de figueira! Era assim que se aprendia.
Na vida há sempre que aprender! E que recordar. Recordei hoje aqui coisas que o tempo ainda não apagou mas que já estavam meio tapadas. Destapei-as para vós. Podeis consumi-las que elas não trazem as desgraças de Pandora.
Acabemos com um dito espirituoso: disse o Tonho para a Elvira que tinha as mamas pequeninas:" eh! cachopa, hás-de esfregar as mamas com papel higiénico! E ela atarantada: tu és parvo ou quê? E ele: Se o teu cu cresceu pode ser que as mamas também aumentem de volume! e ela: Ranhoso! que és um ranhoso!
Imaginai que era com uma cunca!!!!
XIIII GGGRRRRANDDDDEEEEE!

domingo, outubro 08, 2006

Estudo sobre o abandono

O estudo já tem algum tempo e já era para aqui ter sido referenciado. Faltou tempo. Refiro-me ao trabalho realizado por investigadores da Universidade de Évora, no âmbito do protocolo de colaboração com o MADRP:

Estudo sobre o abandono em Portugal Continental.

Análise das dinâmicas de Ocupação do Solo, do Sector Agrícola e da Comunidade Rural.

Tipologia de Áreas Rurais

Não estão reunidas as condições ideais para a abordagem conveniente do estudo pelo que ficam aqui apenas 2 referências, ambas relacionadas com a integração do concelho de Penamacor nas tipologias relativas às dinâmicas do sector agrícola e sócio-económica.

1. Na tipologia de áreas segundo a “dinâmica do sector agrícola”, o concelho de Penamacor é situado no cluster “ Elevado peso social com alguma estabilidade agrícola”, que inclui um conjunto de concelhos de Trás-os-Montes, Vila Velha de Ródão e dois concelhos do interior algarvio, e é caracterizado assim:

“É o grupo com o peso mais alto de população agrícola e dos produtores. (…) o peso dos produtores na população total quase não diminuiu. Mesmo assim, o peso das explorações com rendimentos do exterior cresceu bastante enquanto a Superfície Agrícola Utilizada (SAU) dentro da exploração diminuiu. O peso das matas e florestas aumentou e já ocupa em média à volta de 20% da superfície total da exploração. É o grupo com o peso mais alto de da Superfície Agrícola Não Utilizada embora este peso tenha diminuído algo durante os anos 90.”

2. Na tipologia de áreas segundo a “dinâmica sócio-económica”, o concelho acompanha Idanha-a-Nova e Vila Velha de Ródão no cluster “graves problemas sócio-económicos” e é caracterizada como segue:

“ Este grupo pequeno que consiste de 5 concelhos é neste contexto o mais problemático em quase todos os sentidos. A variação da população é muito negativa, a população é muito envelhecida e o índice do poder de compra é o mais baixo. Tem também o peso mais baixo de população economicamente activa.”

Aqui o Baságueda vai fazendo o que pode... mas não mandamos nada... só post(a)s de pescada, perdão, de falas populares tradicionais e outras inutilidades.