Namorar no antigo regime não era nada fácil, às vezes era quase tão perigoso como dizer mal do Salazar. Que o diga o Tonho Jaja Nova, moço humilde e de posição social modesta, que bem mereceu a vitória da conquista da sua C’ceição.
O processo de escolha do cônjuge era moroso e delicado porque havia que enfrentar e vencer vários adversários: a resistência da donzela, a desconfiança do pai e da mãe (não necessariamente por esta ordem), a concorrência dos pares (proporcional aos atributos físicos, patrimoniais e sociais da donzela), e os tabus de todos (este todos quer designar o “povo”) que fazia questão de exigir ao mancebo prova da sua seriedade.
C’ceição, filha de Xquim Choças e de Strudes Forca dos Ratos era moça bela, com tudo no sítio, bem colocado e distribuído nas medidas e proporções adequadas. Também era arisca como lhe ensinou a mãe, mulher pequena e redonda, de bigode fino e língua afiada para a maledicência, malina em pensamento e acções, autoridade máxima e incontestada da casa. Xquim choças, homem seco de carnes, há muito que se tinha vergado ao regime que a mulher impunha, respondendo com o refúgio na quinta na Lameira da Pinta, complementado na borracheira dominical na Tasca do Fatela, assumindo o sermão certo da ceia que nesse dia nunca tomava. Mais tarde, fechada a tasca do Fatela (e as outras também) mudou-se para o café da Rosa, com quem fez um trato: ela tinha de lhe servir o vinho em chávena de café. Chegava a tomar 20 cafés numa tarde. Mas voltemos à questão dos namoricos no antigo regime.
A coisa começava por fazer várias aproximações exploratórias à donzela, habitualmente no balho do domingo. Tonho Jaja Nova passava a semana repelindo que chegasse o dia para poder estar junto da amada. Logo que se armava o balharico, posicionava-se estrategicamente nas proximidades da C’Ceição para ser o primeiro a pedir-lhe a dança, mal o Ti Mnel Ceguinho arranhava as primeiras notas na concertina. Na corrida estavam vários abutres como o Xico Catorze, o Jorge Pirolito e o Luís Varinha d’Arado. A este último chegou a partir o nariz numa bulha de final de balho, porque o outro lhe atirou que ele não era homem para a C’Ceição: “mas sou homem p’ra ti ó paspalho”.
Feitas as primeiras aproximações, punha-se em marcha uma estratégia de publicidade da imagem junto do progenitor a quem, como quem não quer a coisa, se pagava um copito na tasca do Fatela, e junto da progenitora, a quem, como quem não quer a coisa, se informava que se ela não tivesse lá couves para pôr, ele arranjava-lhas, penca de chaves, bacalã ou de sete semanas, “como vomecêi quizer, ó Ti Strudes”. Em complemento, recorria-se a informadores privilegiados a quem se encarregavam de fazer chegar cartas (verbais) de recomendação (“o Tonho é bom moço, é poi, sério e trabalhador, inda no outro domingo o vi eu a esborralhar a vinha do pai, e deu conta dela sozinho”.
À donzela competia resistir aos avanços do mancebo, mais nas primeiras tentativas, reduzindo gradualmente ao longo dos 4 ou 5 meses que levava o rapaz a arranjar coragem para lhe pedir namoro. A fase seguinte, igualmente delicada, era o pedido de autorização ao progenitor, que era preciso enfrentar esperando que o investimento dos copitos na tasca do Fatela tivesse o seu retorno: “Olhe lá T’Xquim, vocemessêi sabe qu’ê gosto da su C’ceição, e atão ê queria-lhe pedir qu’ma deixasse namorar cá in casa. Ande qu’ê no stou cá pa brincadêras… ”. O deferimento havia de vir, naturalmente, da Ti Strudes, sensibilizada com as couves penca de chaves, e com a novidade que eram as sementes de courgetes que o Tonho lhe havia oferecido. Mas isso não a inibiu de proferir com ar sério e ríspido: “ôlhér quê no quero cá poucas vergonhas! Bem...”
A noite de 4ª feira era oficialmente dedicada ao cortejo, tirando, claro, os balhos do domingo à noite. A censura, personificada na Ti Strudes, posicionava-se na cozinha, atenta ao que se passava na sala, onde Tonho e C'Ceição se enfrentavam de cada lado da mesa de jantar tapada por uma toalha de linho bordada à mão e jarro de flores ao centro, sentados em cadeiras de verga. Nas primeiras vezes, olhavam-se timidamente. Às vezes também conversavam. O tempo que estava a fazer e que iria fazer e seus efeitos na agricultura era tema recorrente. Em alternativa, havia o sempre fértil e inesgotável tema da vida na aldeia.
A medo, entrelaçavam as mãos. Não se usava ainda o cruzamento terno de olhares e a expressão “tens uns olhos tão lindos!”. Fora de questão estava encostar lábios e roçar línguas, muito menos apalpar fosse o que fosse… A prevaricação corria o risco de ser sancionada por descompostura da matriarca “Pscht! Ó meninos qu’arraio de pouca vergonha é essa?, tâmazi?”, ou à desaprovação social, com terríveis consequências no mercado de escolha do cônjuge.. A paixão tinha de ser reprimida, o amor tinha de ser martelado.
Era o tempo da sardinha para três, do trabalho de sol a sol, das cantorias no trabalho, das excursões de burro à festa da ribeira (da Baságueda, claro), do andar descalço porque as botas eram caras. Naquela fase inicial em que o Tonho se propôs a si próprio conquistar a C’ceição, o balho de domingo, já se disse, era um momento ansiosamente aguardado e crucial da estratégia. A ansiedade era acompanhada por uma sensação de desespero quando o pai do Tonho demorava a ir para a cama. É que o Tonho precisava das botas do velhote. Por isso, acabada a ceia, estava sempre (a)repelindo de ouvir o ronco a entrar em velocidade de cruzeiro para surripiar as botas que o seu austero progenitor arrumava debaixo da cadeira de verga que servia de mesa de cabeceira. Depois, apresentava-se orgulhosamente no balho com umas botas impecavelmente ensebadas. Claro que, antes de as recolocar no mesmo sítio, tinha o cuidado de lhe passar o sebo novamente. Tudo corria bem, até que o pai, um dia, se deu conta de que o tacão estava exageradamente gasto de um lado e que, estranhamente, as botas já precisavam outra vez de ir ao Guerrilhas sapateiro, para meias solas. No domingo seguinte, o Tonho confirmou que o amor é mesmo sacrifício: aguentou sem um gemido as vergastadas que o pai lhe aplicou com a correia de cabedal, bem como cumpriu à risca o castigo de esborralhar a vinha da saramaga, durante o dia de domingo. Não seria por via dessas minudências que a C’ceição não havia de ser sua. E veio a ser.
Estava o mesmo século a acabar, a neta do Jaja Nova, 18 anos, andava repelinda de se entregar ao neto do Varinha d’Arado, 19 anos, moço esbelto de olhos verdes, sempre de cabelo propositadamente desarranjado à conta de uma mão cheia de gel. Era Sábado, estavam ambos no café, juntamente com os outros jovens, enfadados de não haver espaços de animação na aldeia nem à volta. Discretamente, mandou-lhe um sms:“But’aí curtir?” Recebeu um sms dele com a resposta: “ya, bute”. Sairam para a esplanada, olharam-se ternamente nos olhos, ela disse-lhe “Tens uns olhos bué da lindos”, beijaram-se na boca com paixão, apalparam-se… ninguém os incomodou.