quarta-feira, julho 16, 2014

A NOSSA FALADURA - CCXXVI - ESCADABULHAR

Há uma máxima, cujo autor ignoro, nem mesmo sei se é aforismo popular, portanto, pertencente ao nível de conhecimento do senso comum, que, eu próprio, já muitas vezes confirmei: "quando se encontra sem se procurar é porque já muito se procurou sem se encontrar".
À medida que a nossa faladura vai crescendo, começam a escassear novos termos e novos heróis. Este que hoje vos trago saiu-me em conversa com Karraio. Vai daí pus-me a escadabulhar que temática vos traria hoje. Passaram-me várias temáticas, mas acabei por me decidir sobre uma que há já muito tempo não era motivo das minhas lucubrações meditativas naqueles momentos pré hipnagógicos até mergulhar nos braços fofos de Morfeu.
Se há mundo que me fascina, o da mitologia grega e das suas implicações na cultura ocidental, o da mitologia greco - romana é um deles.
Hoje trago-vos Hermes (Mercúrio, para os romanos). Em tempos tinha brincado com este carteiro divino (afinal ele era o mensageiro dos deuses), ou seja, desempenhava o papel que os anjos cumprem na mitologia cristã: encarregados de transmitir avisos divinos. Quando essas missões são especiais, aí já não são os anjos, tout-court, mas os seus superiores hierárquicos - os arcanjos-. Foi assim com a expulsão de Lúcifer, pelo arcanjo S. Miguel (que curiosamente significa que ninguém é como Deus), depois com Rafael (que significa CURA DE DEUS) e a cura da cegueira de Tobias ao passar o fel do fígado de um peixe pelos olhos dele e finalmente Gabriel (que significa Deus é meu protector) que foi encarregado de anunciar a Maria a sua imaculada concepção.
Volvamos, pois,  a Hermes (ou Mercúrio). Além de mensageiro fiel dos deuses, era também deus dos ladrões, dos comerciantes, viajantes, diplomatas, pastores e seus rebanhos, da eloquência, para além de ser ele também o encarregado de guiar as almas dos mortos para o mundo do Hades.
Ora, o nosso Hermes - que, recordo, era deus dos ladrões - originou uma ciência interpretativa de importância mais que muita nos tempos que correm, sobretudo para quem se dedica à interpretação das mensagens.
O que se diz, a partir do momento em que é dito, deixa de ser da posse exclusiva de quem o disse. Faz-me lembrar um ensinamento de uma velha raposa do direito, que, não sendo advogado, sabia de leis como poucos: "se o pensas, não o digas, se o disseres, não o escrevas, se o escreveres, não o assines, se o assinares, não te queixes".
Para não perdermos o fio à meada e não nos percamos no meio deste escadabulho, sempre vos digo que encontrei umas larachas que em tempos me entretiveram nas tais meditações. Reaqueci-o  e sirvo-lo agora quentinho. Não o roubei a ninguém. Mas depois que vo-lo dou a conhecer, ele deixa de ser meu e passa a ser mais vosso. Entretei-vos e senão entenderdes tudo logo à primeira, escadabulhai até vos aparecer a luz de Mercúrio (Hermes).
Hermes, o mensageiro fiel e fidedigno dos deuses era também o grande mestre dos disfarces. 
Ser fiel e ladra, este o terrível paradoxo da hermenêutica. O que ficou dito, mostrou-se e ao mostrar-se sujeitou-se a interpretações. Pois, lá temos Hermes outra vez: negoceia, regateia, discute, viola, assassina, aperfeiçoa...Com que autoridade?
Cada observador rouba o lugar ao autor e agora é ele o autor e este a pobre da vítima, quando devia ser o senhor. Oh! Ingrata missão de revelar o que estava oculto! Se não for manifesto, não vive e se o declaram, matam-no.
Afinal o texto, ou não importa o quê, que se explore hermeneuticamente, é sempre uma arma de dois gumes.
Tal como o cientista ao produzir um invento para o poder instituído deixa de ter poder sobre a sua própria obra, também aqui se passa de modo análogo, seja qual for  a “escola” hermenêutica em que se gravite.
A hermenêutica clássica e a hermenêutica moderna diferem nos seus posicionamentos frente ao objecto, na sua forma e função. A hermenêutica clássica, tradicionalmente aplica-se à exegesis bíblica e à interpretação de documentos revelados. A hermenêutica moderna, pelo contrário avaliza a sua actividade em caracteres, textos e discursos de diferente categoria (classe, qualidade) e isentos de “a priori”.
A hermenêutica clássica é analítica, semântica, e a moderna é sintética e sintáctica.
A hermenêutica moderna  deriva da psicanálise, enquanto decifração do texto inconsciente e seus produtos e procura incorporar significados novos, (desconhecidos) no âmbito do conhecido, familiar e relativo (perspectivismo subjectivista do eu).
 Tudo leva a crer que foi devido ao contacto com os seus primeiros pacientes que falavam, não raro, uma linguagem desconcertante, que Freud se sentiu motivado para tentar descobrir as raízes profundas dessa mesma linguagem. Quantas vezes, sendo a palavra de uso comum, se aplicava a mundos até então ignotos.
      Deste modo a psicanálise tem que abandonar o campo da teoria e dedicar-se em pleno à prática. Muitos vêem aqui exactamente o ponto de arranque epistemológico de algumas áreas do saber humano, mormente quando se dedicam à investigação linguística e, logo , à própria hermenêutica.
      Tentemos clarificar.
      O psicanalista não se preocupa muito com o que se percebe logo à primeira.  Podemos mesmo dizer que, para um psicanalista, o sentido do que aparece está oculto, numa falha.
  Para além de lhe interessar quem está ali a falar deitado num divã ele está atento e irá interferir, não para fazer uma interpretação, mas para se certificar do enunciado primitivo.
 Segundo Freud, “o sujeito não sabe o que diz quando fala, isto é, o sujeito não pode ao mesmo tempo significar-se e significar  eficazmente a própria acção de significação”.
Quer isto dizer que o falante ( sujeito ) não tem poder sobre a articulação da linguagem, mas esta falta de poder não lhe é imposta de fora, bem ao contrário, vem-lhe de dentro. Dito de outro modo: `Não existe inconsciente porque existe desejo, mas sim  existe desejo porque existe inconsciente. Existe sempre algo para além da linguagem ... .
O texto, seja ele dito ou escrito, uma vez lido ou ouvido, deixou de ser propriedade do emissor. A questão da Psicanálise e , porque não, da hermenêutica começa agora.
O sentido pode ser adulterado e o que se queria dizer foi parar tão longe que o autor pode nem se ver naquilo que outro autor afirma que ele disse. O autor foi des - autorizado. O Hermes violou-o, denegriu-o, mesmo até quando o vangloria e o cita.
Pergunta-se, então :
Até que ponto o subjectivismo-objectivo  que  um sujeito  dá a um determinado significado (vale aqui a definição de F. Saussurre ) lhe é determinante? A língua será em si mesma uma objectividade baseada em significados pré-existentes ao autor e de que ele se serve de acordo com o sentido unívoco e julgado como sempiterno  - se me pré existe há-de seguir-me  -  ou , ao invés, estará totalmente sujeita às modificações ,”aos neologismos”  de circunstância - e assim , consequentemente - a novas significações que o tempo sempre se encarrega de lhes colar. Podemos falar de uma Post- língua? Talvez que Heidegger não rejeitasse esta possibilidade. O Des - sentido não está metido já no sentido? O desvelo, o cuidado, a busca do originário não se completará com a síntese da semanticidade? A Hermenêutica contemporânea  - e se levarmos ao extremo esta contemporaneidade - ela será sempre um constante presente sob pena de não ser contemporânea, a hermenêutica contemporânea, dizíamos, a da facticidade, com a “sua” mundaneidade, esse medium  contínuo, que sempre me permite relacionar-me com o outro, ela mesma, poderá ser mais pura do que o próprio autor? Por muito “honesta “ que seja, ou mesmo procure ser, há-de ser sempre um Hermes. Há-de sempre passar a mensagem. Damos- -lhe o crédito da fidelidade. Mas não esqueçamos que pode ser sempre um sósia aquele que defendemos como sendo o original.
É ou não verdade que que nos servimos de palavras já existentes para expressar uma  ideia, um sentimento,  ..., mas que não deixa de ser verdade que o contexto as pode completamente subverter? Ainda que o significado possa não ser muito alterado, já não se pode dizer o mesmo do sentido.
Exemplo disto mesmo é o próprio Freud. . O seu código só após a sua morte começou a ser entendido e reconhecido. Como dirá Lacan: « O escândalo intolerável em que a sexualidade freudiana ainda não era santa, era que ela fosse tão “intelectual”.
Safouan  diz resumidamente: “O sujeito que fala é outro” . E quem é esse  outro? Responde Freud: «È aquele que no plano das representações não existe, mas que todos os processos psíquicos tendem a encontrar».  Então quando o encontramos já não é um encontro´, é um reencomtro. Se o atinjo é porque já o conheço. ( É o famoso círculo da hermenêutica, resumido à questão tantas vezes recordada  acção: Como estudar filosofia sem saber filosofar e como este sem aquela?)
Facto é que quando falamos nunca pressupomos o real, apenas a linguagem. Estará aqui uma das limitações do pressuposto de Gadamer?
O real que emerge é sempre um real fictício. Nunca é o real, real. A linguagem é ou «seria esse instrumento sem o qual nada podia ser dito e quase nada podia ser feito, embora em si mesmo ela não seja nada.» (Sempè. Op. Cit. ).
“ O desejo é a verdade” , eis a máxima que fecharia esta já longa meditação. Mas, ainda aqui temos que nos deter perante Saussurre: “A língua é intangível , mas não inalterável, ela modifica-se sem que os falantes a possam modificar. (...) A língua foge ao domínio da vontade.
Outra questão então se nos impõe: estaremos nós pré-determinados a escolher um signo e não outro. Parafraseando Monod ( Le Hasard e la Necessité ) haverá uma teleonomia da fala?
È indesmentível que carregamos connosco uma série de inconscientes colectivos (económico, social, religioso, moral,... ) e assim porque a vontade não tem poder sobre a língua,  o meu inconsciente impõe-me um signo e eu uso-o. E digo que assim falo livremente. O desejo é então a sua interpretação. Se lermos com Freud, podemos até ser mais radicais: auto-castramo-nos, matamos o pai para ficarmos com a mãe mas mostramo-nos potentes e assim fingimos que somos senhores do  falo, quando afinal já o tínhamos deitado fora.  Sado - masoquismo do mais principiante. E já agora cabe perguntar :  o que temos vindo a fazer não é uma fuga ao original freudiano. Não estamos a ser Hermes?
A verdade afinal nunca é nossa  Ela está sempre personalizada no outro. Ela não é o dito. É o interdito. Leia-se que o interdito é o entre - dito. Expliquemo-nos:
Nunca somos só dois: eu que emito e o outro que me ouve mediamo-nos por um outro que é comum aos dois : O Mundo. Mas antes do mundo, a Voz, seja ela a fala, o gesto, o livro , o texto, ... . Seja o que for é sempre um medium. A relação assim já não é diádica , mas triádica.
Cremos ser isso que Lacan quer significar: “ Tu não me podes falar do sítio donde eu te escuto “.
Que solução: a cómoda seria “ aspar “ todas as palavras, mas isto era substituir o que estava pelo que não estava, e , logo, o que se queria tão puro, é afinal, de início deturpado.
Que sobra: Temos que continuar a ser Hermes. Este é o nosso sortilégio. Pelo menos vivemos. E se Hermes se juntar a Afrodite então temos reprodução . Que assim seja.
XXXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIIIGGGGGGGRRRRRRRRRRRRAAAAAAAAAANNDDEEEEE