sábado, abril 18, 2009

A NOSSA FALADURA - CXXXII - LAMBARÃO

A língua comprida não é a das girafas que, com arte conseguem evitar os aguçados picos das acácias nem a dos répteis, tipo varano que cheiram o habitat em busca de presa,... Não. A língua comprida é nossa. Não é por acaso o ditado popular: "temos dois ouvidos e uma língua: é para ouvirmos o dobro e falar metade" ou estoutro:" o calado diz tudo"; ou este " quem diz o que não deve ouve o que não quer" ou mais prosaicamente: "mete a língua na caixa".
Não é raro que nos refiramos a uma pessoa e que a caracterizemos como um tagarela e consideramos isso a sua imagem de marca: "tem a língua comprida", asseveramos.
Razão têm os chineses quando sentenciam: «como te atreves a pedir a uma pessoa que guarde um segredo se tu próprio não foste capaz de o guardar?».
Na Aldeia havia muito quem "esticasse o farrapo", e passasse horas a "dar ao lambarão."
Exemplo acabado do que vos digo, era, por exemplo a ti Tecla.
Cultivava um chão por detrás da igreja e morava a meio da barreira a caminho dos cucos quase em frente das escolas velhas. Eram quinhentos metros bem medidos. Demorava bem duas a três horas para chegar a casa. Então, se encontrava a Irene Paca no adro ou a Relochica no Batoco, carregadinha com o cesto de cogulo, especava-se a dar e receber coscuvilhice e até parecia que o cesto levava algodão em rama. Boato que lhe caísse na orelha era mais rápido a espalhar-se que fogo em pinhal no pino do Verão.
Marido de Tecla era o ti Mné Ferreiro, artista ímpar, multifacetado, relojoeiro, mecânico, ferrador, insuperável a meter aros em rodas de carroça ou carro de bois. Aquecia o aro em lume vivo de esteva e torga com hulha à mistura, deixava-o ao rubro e com tenazes que ele próprio concebera e fabricara, num ai ajustava o aro à estrutura da madeira, cravava-o com rebites que ele também fazia, arreganhava-o com água, pintava-o com breu, untava o eixo com breia e massa consistente e pronto aí estava o carro do Vigura ou do Geba pronto para mais uma safra, ou a carroça do Sarrabeco para transportar pinhos para fazer escadas desviados do pinhal do Chico Sarapião.
Dele eram a maioria dos relógios que davam as horas nas torres das igrejas.... Quantas vezes eu dei corda ao relógio, quantas vezes...? Contou-me que o trabalho maior não era calcular a proporção do número de dentes das rodas mas sim calcular o equilíbrio dos pesos das pedras das horas e dos minutos por forma a que marcassem certos os segundos. Construía relógios de bolso aproveitando peças de outros avariados. Um tive eu marca Combóio e outro da famosíssima Roskof.
Calmo, misantropo, não perdoava, fizesse chuva, vento, frio ou calor, quase ao fim da tarde, um passeio até aos bebedouros. Sempre sozinho, ia e vinha. Era capaz de estar uma semana calado e, se ninguém lhe falasse, ele nada dizia. Era até ele que os velhotes mandavam os garotos com a pedra de afiar as agulhas e ele, na sua calma e poucas palavras:" agora levas esta até que eu apronte a que trouxeste". Lá vinha o garoto outra vez carregado com um calhau embrulhado num jornal.
Era assim que se aprendia, com estes entreténs de aldeia.
Como se vê era um casal perfeito: ele era capaz de estar uma semana calado e ela era capaz de estar um dia inteiro a falar.
Bom, mas o nosso tema era o lambarão...
Campeões nesta arte são os caçadores. Quando a caçada corria bem ou, sempre, no início da época, havia rês para o tacho que a Rosa cozinhava e para o qual eu, inevitavelmente, era sempre convidado.
Era lebre naquele dia. Melhor: duas lebres. Tinto do Reis Alguitarra e do Modas surripiado à socapa quase um alqueire de batatas e picante quanto baste, ambiente aconchegado todos empinados à volta do barranhão. As histórias iam surgindo e lá vinha aquela do coelho que saíu do roto e levou cinco foguetes e ninguém lhe acertou ou a lebre que já se ia a passar o cômaro da reserva e foi ardulhada por um tiro certeiro ou a perdiz que quase cagou na cabeça do Mnel Faustino e a errou,... todos tinham que contar...
Agora o lambarão era bem esticado quando se tratava de gabar os cães!
Naquela noite havia um convidado especial, alentejano, homem de pouca fala, cordato, e com um estilo inconfundível, metia farpas com propriedade e deixava todos a pensar. Um artista, o Alfredo Papa Arroz.
Chquim Pardalim e Coiote Pete começaram a altear a voz e já se sentia algum azedume na ralhação:
"Num querias tu mainada do que o teu Ruço fosse melhor có meu Cara Linda. Só te digo meu babanca, qués um babanca, que uma vez fui caçar pró Alentejo, ali pra perto do Paparroz e o sacana do cão não apareceu. Mas cá chegou passados dois dias só plo cheiro do gasóleo da carrinha. Isto é qué ter faro, meu babanca"
Digo pró Paparroz: " porra, ó Papa esta é valente"e comecei «Arregaça, arregaça a calça» e pus-me a puxar as calças pra cima quando Pardalim levanta a voz:
«Cale-se, seu bebágua, seu borra botas, tu já num talembras do que se passou quando o ano passado fomos além prá raia ao pé do ribeiro Torto e salevanta uma perdiz longe como um corno e lhe despacho um foguete e ela vai cair dasa já em Espanha, já num talembras, mas eu lembro-me bem : O Ruço foi por ela e apareceu ao outro dia de manhã com ela na boca e tu bem viste que não lhe tocou e estava cheiinho de fome. Isto é que é um animal.»
Já se ia comendo na lebre e cinco litros já tinham voado quando o Paparroz, despeja dum gole o copo do vinho, espeta um moço no garfo, poisa-o no barranhão ( o moço obrigava a que ninguém pudesse tocar na comida até que quem o lá pusera o tirasse, sob pena de pagar a despesa da noite) e se sai com esta:
- "Cão, cão, era o meu Patolas: um dia cheguei-lhe ao nariz umas cuecas da minha mulher e cinco minutos depois aparece-me com a tarecada do vizinho na boca"!
Eu respinguei tudo à volta, todos começaram a estalar os dedos e Coiote e Pardalim: "tira mas é o moço do barranhão cóssenão a comida arrefece."
Nunca estiqueis demais o lambarão que pode haver quem vos espete uma farpa bem metida.
XXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIIIII GRANDDDDDDDDDDDDDEE

segunda-feira, abril 06, 2009

A NOSSA FALADURA - CXXXI - CABRUNCO ou CARBUNCO

Há datas, objectos, pessoas, situações que ocorrem ao longo da nossa vida que nunca mais esquecemos. Não podemos reviver o dia do nascimento, mas não esquecemos a data, ainda que ela não seja real. Muitos dos que me lêem sabem que, nas aldeias ,era costume o representante do Registo Civil ir apenas a espaços à vila e era nessa altura que registava os nascimentos , os óbitos e outros assentos. Se a data da morte não podia ser adiada, já a do nascimento, essa, podia sofrer aproximações, até mesmo algumas conveniências, como a seguir se explica: O limite máximo para que uma pessoa pudesse ser registado estava de acordo com o livro único de assentos. Deste modo uma criança, nascida a vinte de Abril, não podia ser registada depois de uma outra que, por hipótese, tivesse nascido a vinte e sete e os progenitores a tivessem registado à hora. Por isso , só havia uma hipótese: era registar a criança nascida a vinte como se tivesse nascido no dia vinte e oito. O curioso é que é esta data que passa a vigorar. O mesmo se passa com o casamento pela igreja: o que vale perante a cidadania é a data da convenção nupcial, mas a que é festejada é a da ida à Igreja. Muitas outras circunstâncias se passam ao longo da nossa vida em que a realidade real e a oficial são distintas.
Quantos de nós não damos por nós a protestar com o tempo do nosso nascimento. Ora quereríamos ter nascido antes e podia ter acontecido que muito do que hoje nos acontece estivesse lixiviado: pessoas, objectos situações, reacções, .... Ou ao contrário: queríamos ter nascido depois, ser mais novos, porque foi com tristeza que encontramos alguém ou alguma coisa que desejaríamos ter como nossa, mas é agora impossível ou até desaconselhável. Quantas vezes damos por nós a amaldiçoar o NOSSO tempo e a berrar para as paredes: Mal empregada! fora eu uns trinta anos mais novo e depressa me ajeitava com ela. Não me escapava, era limpinho...
Criamos mesmo ideais de fantasia, mundos de convivência impossíveis, sistema de relações irresponsáveis. Enfim, consideramo-nos uns azarentos.
Verdade insofismável é que essa pessoa que tanto nos diz, deixou marca indelével na nossa mente. São circunstâncias, objectos, outras pessoas, conversas, que sei eu, que esporadicamente nos acicatam a memória e nos deixam a sangrar.
A história dos amores frustrados é rica de exemplos...
Foi assim que no fim de semana passado se me depararam pessoas e acasos circunstanciais que me avivaram outras pessoas, outros tempos,...
Pessoa inesquecível das gentes de aldeia do meu tempo foi o senhor Joaquim Vicente. Barbeiro por baixo da casa do clube, veterinário, enfermeiro, curandeiro, sabichão, consultor das mais variadas necessidades. A ele se recorria por quase tudo e para quase tudo. A mim me lembro eu que me curou um nascido que tinha muito perto das partes fracas . Foi um castigo porque eu não queria nada daquilo: tinha que aguentar umas papas de linhaça bem quentes, metidas numa bolsa de enxofre Flor, alva quanto podia ser, ou não fora lavada por minha mãe que as guardava para embrulhar os presuntos, quando em Maio, os tirava da salgadeira e os levava para o forro a secar antes de os barrar com o colorau por mor da mosca vareja.
Era respeitado como poucos e a sua nomeada esticava-se quase como a da Sra da Póvoa. Homem de andar lento, nem gordo nem magro, cuidadoso no arrear, impecável na sua bata branca, mais parecia professora debutante, ou médico em hospital público, especialista no afio da navalha, artista no corte do cabelo, ponderado na sentença, avisado nos conhecimentos, respeitado na competência. Morreu cedo. Custodinha, a viúva, e Carlos o filho único, grande repórter da R.T.P., assassinado por ciúmes injustificados, eram benquistos enquanto por cá andaram e ainda hoje referenciados. Três netos prolongam a sua imortalidade, para além, é claro, deste trecho do Baságueda.
A cena mais pungente a que assisti foi a da queima de um carbunco.
O velho Gramacho tinha a face direita em chaga viva e ferida a alastrar. Era um carbúnculo, ou carbunco.
Quando era garoto por causa de ter sempre os ferros do espeta bem aguçados, oferecia-me ao ti David, ferreiro, ferrador e curador de cobrões, para lhe tocar o fole, em marcha certa para atiçar a hulha que lhe permitia tratar o ferro na bigorna a poder de martelada certeira, calma e pausada com o martelão. Estava eu naquele movimento de vaivém dando vento ao carvão quando o senhor Joaquim Vicente, impecável na sua bata branca, chegou com o Gramacho. O velho sentou-se num banco quadrado, alto, mais escuro que o breu e um ferro inox com uma espécie de cubo na ponta é posto ao rubro na forja. O Gramacho é preparado: põem-lhe uma venda nos olhos, um meio cobertor em volta do pescoço a cair para as pernas, desinfectam-lhe a ferida com gaze e benzina, e de repente o cheiro a carne queimada invadiu o espaço. Gramacho deu um urro monumental, mas mão fortes impediram que se mexesse.
A cicatriz ficaria para sempre.
Assim as pessoas de quem gostamos mesmo. Estejam perto ou longe, contactemos ou não com elas, quando elas são para nós significativas, não há tempo que as apague da nossa memória.
Eu tenho gente assim. Pessoas que não esquecerei . Pessoas que vivem comigo.Portanto estão ao pé de mim e eu gosto de as sentir. Peço-lhes conselhos, confesso-lhes segredos, relembro situações em comum, rio-me de situações, e invoco-as amiúde. São outros eus e eu sou outro eles ou elas. E como a cicatriz do carbunco nunca vão desaparecer a não ser quando eu as levar comigo para onde nos levam a todos por muito que gostem de nós.
Não são muitas essas pessoas, mas há-as que são determinantes , que me deixam marcas como o ferro esbrazeado da queima do carbunco.
Lembrai as vossas que eu não esqueço as minhas.
XXXXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIII GGGGGGGGRRRRRAAAANNNDEEEEEEEEEEEEEEE