quarta-feira, novembro 12, 2014

A NOSSA FALADURA - CCXXIX - ARGANEL

Para muitos o sistema é a segurança, para outros o sistema é o perigo escondido. O sistema é, queiramos ou não, um poder oculto. Só que essa ocultez não impede que ele seja um poder objectivo. Digamos que o sistema é a faceta executiva do poder absoluto dominante. Vem-me Hegel à memória e de algum modo a minha não compreensão do seu sistema quando por ele passei pela primeira vez. Achava-o um precursor de Hitler, um ideólogo pedante, fora da realidade, um idealista, que para além de absoluto, era o que se podia chamar de abstracto. Dizia de mim para mim que do que ele precisava era de um arganel no focinho que lhe provocasse tamanha dor quando deambulasse pelas suas divagações filosóficas, que nunca as pudesse tornar públicas. Com o tempo aprendi a lê-lo e a verificar a sua sagacidade e que foi bom não lhe ter posto o arganel. Foi assim benéfico que ele tivesse fossado até ao mais imo da consciência humana e tivesse partilhado connosco o resultado da sua fossagem.
Seja de que modo for, nós estamos pré preparados para que sobre nós se exerça um poder. Nem que seja o de nós mesmos sobre nós mesmos. É aqui que reside o poder do espírito objectivo - o tal executor do espírito absoluto, que muda a cada eleição, contra o qual nós passamos a vida a recalcitrar, mas sem o qual não podemos passar, sob pena de nos sentirmos sem bússola a navegar sózinhos em mar alterado e longe de referências terrestres. Mais importante do que quem exerça o poder é que nós precisamos de sentir que ele lá está e que vigia a cada instante, por um lado garantindo a nossa segurança e por outro retirando-nos a nossa liberdade. E o esquisito é que é nesta alienação da nossa liberdade para o tal sistema estatal que nos sentimos protegidos.
Até parece que não nos sentimos bem sem o arganel que nos impeça de investigar, de ir para o ignoto, de ousar romper com o stablishment. A questão é que podemos não nos importar com o Estado dominante mas nunca podemos viver sem Estado.
Sentimo-nos bem se soubermos que há uma força que providencie para que nada nos falte. Se sentirmos que essa força não superintende sobre nós ficamos acagaçados.
Tonho Modas era considerado o mais valente na escola. Era o Tonho que escolhia as equipas para o jogo de futebol, quem decidia quem era o guarda redes e por aí fora. Nada acontecia na escola sem o Tonho avalizar.
Naquele dia o  Tonho entendia que eu devia ir para a baliza. Foi uma tourada pegada, porque me entesei e não houve quem fosse capaz de me pôr um arganel. De vez em quando é preciso outro poder e recusarmos o arganel.
Mnel de Sousa era coveiro. Sempre o conheci como coveiro. Vivia com Maria Verónica. Verónica tinha uma língua que nem um braço, falava alto em todo o lado; já Mnel era a mudez personificada. Raramente se lhe ouvia a voz. Talvez fosse por causa daqueles com quem lidava a maior parte do tempo. Chegava a ter cinco ou seis campas abertas. Até parecia que adivinhava que havia muitos para morrer. Verónica dizia que ele era teimoso que nem uma bota da tropa sem atacadores. Manel nem ouvia. Baldava-se. Lá ruminava de quando em vez: Não houvera quem lhe pusera um arganel no focinho». Verónica, uma vez decidiu desaparecer num inverno em que a ribeira bateu nas guardas da ponte. Apesar das zangas Mnel decidiu ir procurá-la porque não queria que ela ocupasse tão cedo uma das campas que já tinha aberto. Encontrei-o debaixo de chuva perto da tapada do Robalo: " Oh ti Mnel então que anda aqui a fazer com tanta chuva.?» e ele " Ando à procura da Varónica não tenha caído à ribeira.", mas, disse eu, está a vir pela ribeira acima, havia de ir mas era para baixo» e ele" teimosa como ela é nunca ia à ribeira abaixo». Fiquei de cara à banda e lá o demovi da busca metendo-o debaixo do guarda chuva e meti conversa:« Oh ti Mnel, qual o animal que não come ao Domingo?» Ele , moita carrasco, fez de conta que não ouviu.  Vinhamos chegando à entrada da rua das Aranhas e começamos a ver a Verónica aos berros. Mnel: "Rais a partam, não há quem lhe ponha um arganel no focinho. Olha, rapaz, o animal que não come ao Domingo é o que morre ao Sábado.".
Fiquei tosquiado quando ia por lã.
XXXXXXXXXXXXXiiiiiiiii GRAAAAAAANNDDDDDDEEEEEEEEEEEEEEE