quinta-feira, julho 11, 2013

A NOSSA FALADURA - CXCVIII - LAMBUGUEIRICE

Os movimentos migratórios em Portugal são imemoriais. O surto que agora se vive apenas tem de diferente o facto de que aqueles que se vão embora são do melhor que temos: gente bem formada que não encontra espaço para se realizar em Portugal e é muito apreciada noutros países.
No dealbar do século passado, os dois destinos mais frequentes eram a Argentina e o Brasil. São ainda hoje visíveis no Norte as marcas desses brasileiros que fizeram fortuna por terras de Santa Cruz. Nos meados do mesmo século, sobretudo nos anos sessenta, a corrida foi predominantemente para França e Luxemburgo menos Alemanha , Suiça e outros países europeus. A diáspora actualmente é global.
Se nos tempos idos se procurava o apoio de conhecidos ou familiares, hoje em dia, muitos são os que partem sozinhos para destinos improváveis.
Talvez não fosse alheio ao facto de os destinos no princípio do século passado serem a América do Sul, a proximidade linguística, pormenor, hoje, irrelevante.
O mais famoso desses Argentinos foi, sem dúvida, Domingos Argentino, pois claro. A sua casa era onde hoje está a casa de Fernanda e Branquinho. Era uma casa térrea com uma entrada fresquíssima, onde se chegava por debaixo de um dossel de uvas ferrais que garantia uma sombra fechada e uma fresquidão rara nas quenturas estiais. O pequeno quintal tinha um pocito que dava água bastante para uma horta que a mulher tratava com esmero. As paredes eram todas de um azul celeste com algumas gravuras, as janelas eram amplas e tinham uns portados em ripa de madeira que em mais nenhuma casa se via.
Domingos  levantava-se tarde e invariavelmente vinha sentar-se, enquanto a sombra da manhã o permitisse, no baturel da ti Antónia Costa, paredes meias com a casa onde nasceu este escriba e era aí que esperava pelo companheiro de cigarradas, o velho Corlha, também ele Domingos, sobrevivente da batalha de La Lys, que comparecia coxeando da perna direita, consequência de uma fractura por terras gaulesas e mal sarada.
Puxavam da mortalha do papel Toro e da onça Duque, e, num cerimonial digno de filme, faziam o cigarro que saía das mãos para o adesivo salivar numa forma perfeita de cilindro, tabaco bem compactado, batiam as pontas contra a caixa de fósforos de madeira,"que os de cera não valiam um corno e não se podia escarafunchar os dentes com eles",  acendiam com mestria, mesmo em dias de vento, cada um o seu cigarro com o mesmo fósforo, e davam as primeiras baforadas.
Nem um nem outro mexiam uma palha que fosse. De manhã ficavam por ali a comentar o acaso, como as mulheres que iam e vinham ao chafariz da lameira com o cântaro à cabeça, excepto a ti Esperança do Área, que arranjou um carrinho de mão, ao qual forrou a roda com pneu e cujo bocal onde punha o cântaro estava bem almofadado para não correr o risco de se partir com algum solavanco maior.
Não havia xendro que mais usufruísse da lambugueirice do que estes dois comparsas do cigarrinho matinal.
Ao bater do meio-dia cada um dirigia-se a sua casa para o almoço, com o qual nunca se preocupavam, de Verão ferravam uma sesta e voltavam a reunir-se, cumprindo o mesmo ritual cigarreiro, debaixo do dossel da uva ferral na casa de Argentino. Jogavam ao pinoco (pequeno toro de lenha, bem redondo) que empinavam a distância variável, sendo que aquele que perdesse aos trinta pontos, podia, na forra, escolher ele a distância do local de arremesso da lasca até ao pinoco. O que perdesse pagava um copinho, mas não se pense que vinham à taberna. Corlha levava uma garrafa do dele para, no caso de perder, pagar o copo ao Argentino; já este levava o comparsa à adega e lá bebiam.
Assim passavam o tempo, dia após dia, e, se fossem crentes (que não eram) estou em crer que lá no assento etéreo onde subissem, haveriam também de arranjar alguma sombra onde pudessem continuar na sua tão apreciada lambugueirice.
Passai bem e até uma próxima que, prometo, será menos demorada.
XXXXXXXXXIIIIIIIIIGGGGRRANNDDDDDEEEEEEEEEEE