quinta-feira, março 30, 2006

A NOSSA FALA - LII - AVIAR A VIDA

A vida dá muito que pensar. Cada um pensa-a nos momentos e nos locais que escolhe ou dá mais jeito. Mas há um momento que me parece mais ou menos universal para pensar na vida: é quando estamos a aviar a vida. Mesmo considerando que as condições de exercício do acto têm vindo a evoluir no sentido de maior comodidade e conforto, a verdade é que, a solenidade do mesmo se mantém, aconteça ele no recato da divisão aquecida, com azulejos azuis decorados com motivos marinhos, tampa amolfadada, etc. como na largueza do pinhal, acocorado debaixo de uma giesta de 5 anos. Consoante o ambiente, há quem goste de ler, de fazer palavras cruzadas, de ficar a ouvir os passarinhos, ou quem, simplesmente se entregue à reflexão, que é como quem diz, a pensar na vida

Muitas ideias surgem nesse momento, desde que praticado em regime de “slow outfood”, se é que existe o termo, sem calhar não mas, pese embora o estrangeirismo do qual se pede perdão, o que interessa é que se entenda a ideia. Por exemplo, é perfeitamente plausível que DaVinci estivesse a aviar a vida e a olhar-se ao espelho quando decidiu pintar aquele sorriso na Mona Lisa. Nessa perspectiva, a tese do auto-retrato ganharia consistência, ou seja, aquele sorriso enigmático que tantas questões tem suscitado, aquele esgar de prazer que se adivinha naquela face, mais não seria que a expressão de DaVinci a aliviar-se das lentilhas do almoço. Não menos plausível é a hipótese de que Isaac Newton estaria a aviar a vida debaixo de uma macieira bravo mofo quando se desprendeu uma maçã e caprichosamente lhe bateu na cabeça. A percepção da força gravitacional poderá ter surgido a partir da maçã, mas não custa nada aceitar que poderá ter ganho mais força quando Newton se congratulou por os seus dejectos jazerem em terra e não flutuarem. Quem me diz a mim que o próprio Darwin não terá germinado mentalmente o evolucionismo enquanto aviava a vida num ambiente tão profícuo à reflexão como as Galápagos. E Einstein? A inércia da energia, a fórmula do e= mc2, não poderia perfeitamente ter sido como que revelada num momento de reflexão específico como este que agora estamos a abordar aqui? Outros exemplos se poderiam conjecturar, mas não quero abusar.

Permito-me um último pensamento. Provavelmente, a maior invenção associada ao acto, é bem capaz de ser a do papel higiénico. Seguindo a lógica das plausibilidades (!), ao inventor dessa insignificância poderá ter acontecido algo semelhante ao que sucedeu ao Jabão Feijão. Era ele garoto e, sempre que podia, no Verão, juntava-se ao Armando Cabeça Grossa, ao Tonho Espanta Mulas, ao Fcisco CáVai e ao Zé Caga e Tosse e lá iam todos nadar para o tanque do Dr Amândio, espécie de piscina tosca sempre com água porque alimentado por uma mina. Ao lado do tanque crescera uma imponente figueira maranhoa que a canalha utilizava como prancha de saltos para a água.

Um dia, se calhar por via do efeito dos pirolitos já ingeridos e dos dois discos plenos de feijões frades e pimentos assados e salada de tomate que tinha emborcado ao almoço, para acompanhar meia dúzia de sardinhas – ementa desaconselhada para um garoto de 10 anos -, deu ao Jabão Feijão uma caganeira repentina e imparável. Calhou bem não ter que baixar nem calças nem calções de banho, que naquele tempo não se usavam, porque a canalha nadava sempre incoura. Aviada a vida, que ficou de imediato muito mais radiante e colorida, preparava-se para saltar de novo para o tanque quando o Espanta Mulas o avisou:
- Ai de ti qu’entres na água sem limpares o cú.
À volta dele só junça e outras ervas. Já algumas vezes se tinha socorrido de outros materiais como pedras, mas ali só havia pequeninas. Folhas de couve, também já tinham sido muito úteis. Mas o que ele mais gostava de usar era folhas de eucalipto jovem, por causa do cheiro, só que ali não havia nenhum. Ah!, espera aí! as folhas de figueira são verdinhas e largas, descobriu ele, de repente. E vai disto, 10 folhas de figueira maranhoa passaram pelo rabo de Jabão Feijão. Ainda não tinha chegado à água e já ele começara a sentir um prurido anal que rapidamente se tornou em ardor forte. Os outros observaram perplexos uma cena que, noutro contexto e com testemunhas mais crescidas, haveria de arruinar a reputação do Jabão Feijão: um garoto completamente nu agarrado às nalgas esfregando vigorosamente o ânus com a mão direita enquanto dava saltinhos e gritinhos, alguns a atingirem as raias do histerismo. O alivio só chegou dentro de água.

Jabão Feijão ainda hoje deve recordar o episódio, a partir do qual passou a nutrir uma enorme admiração pelo inventor do papel higiénico. Até nós, que pelos vistos, nunca tivemos o doloroso mas enriquecedor conhecimento empírico fornecido pela utilização de uma folha de figueira maranhoa (ou coriga, ou pexixota, ou abêbera) na nossa higiene anal, igualmente lhe devemos estar profundamente agradecidos.

Podereis perguntar: mas ó karraio, qu'arraio de conversa é essa? a que propósito é que isso vem? Bem, há momentos e locais em que uma pessoa se põe a pensar na vida…

domingo, março 26, 2006

A NOSSA FALA - LI - CANCHAL

Hoje apetece-me falar convosco de valores. A afirmação dos valores foi desde sempre questão polémica. Sem grande detenção no assunto inclinemo-nos já para uns contornos bem definidos: os pais tendem naturalmente a pensar que os valores em que gravitam são também o Sol em torno do qual os seus descendentes devem orbitar. Esquecem-se que os valores transitam, que os novos têm outras apetências, que os tempos se alteram, que o mundo oferece opções, situações e problemas que não páram, que as idades são diferentes, enfim, que sei eu?... Veja-se só a título de exemplo que os nossos avós e até os pais de grande parte dos que nos lêem viviam com a prática da poupança. A ordem era gastar o menos possível e amealhar o máximo. Confundiam poupança com economia, diremos nós, mas o que é facto é que essas poupanças permitiram aguentar o país e autorizar o António que morreu, Oliveira que secou, Sal que se derreteu e Azar que acabou (?!) a dizer: orgulhosamente sós. Essa é que é essa !
Nessa altura o país não importa e agora nem se importa.
A malta hoje vive numa ambiência de consumismo desenfreado em que se disputa o mais moderno e passageiro, a marca mais na voga e se deita para o lixo o ainda recuperável.
Já ninguém passaja meias, nem bota remendo em calça, mete palha em enxerga, aproveita resto para vianda de porco, nada, vá!.. Os lixos estão permanentemente atestados de coisas ainda valiosas.
Não há dúvida os valores mudaram.
Em tempos tive conhecimento de um trabalho de campo de investigadores, que perguntavam a crianças entre os 11 e os 13 anos, o que é que elas mais queriam. Invariavelmente as respostas cairam sobre vivendas com piscina, dois ou três carros topo de gama, viagens em volta do mundo, dinheiro com fartura, isto é, tudo o que levasse à boa vida. Nem um considerou o trabalho como um valor, tão pouco a saúde ou a família, mesmo a solidariedade e a paz! Incrível! Mas foi assim mesmo. O mundo virou-se: já nada é como dantes!
NÃO! não sou saudosista do passado. Escrevo com Sophia:"saudades, tenho-as do futuro"!.
Vem tudo isto a propósito de uns valores de que, calhando bem, grande parte de vós nunca ouvistes falar e muito menos tivestes o ensejo de viver ou compartilhar.
Era eu moço, havia algumas rádios piratas, algumas mesmo esporádicas e que emitiam de sítios imprevisíveis e alterados para não serem apanhados nas malhas dos esbirros guardadores da República. Havia sobretudo a Rádio Moscovo e a rádio Argel. Ouviam-se muito mal nos rádios caixote e mesmo nos de FM. Eu ia ouvi-los para o CANCHAL do alto da estrada, ali, paredes meias com o depósito da água a meio caminho para Aldeia de João Pires. O silêncio era religioso. apenas o Nosso Sargento - amigo que há muitos anos não vislumbro - um abraço para ele - tirava fotografias, em pose, à lua... fotos fantásticas, que depois passava a slide e que encantava na sua sucessão. Um espectáculo!
Não era este todavia o CANCHAL mais famoso ali da área. Esse lugar era ocupado pelo canchal da nora, lá para os lados da serra a dar vistas para a Bemposta, por detrás e à esquerda da Carochinha e do João Ratão. Famoso ainda o Canchal da serra Pedreira e, claro, o do Chico Sarapião no batcharel perto da fazenda que o Zé Ferrenho fazia. Um viva a este grande compincha que a gadanha da morte ceifou bem cedo!
De todos, porém, o mais famoso Canchal é o penhasco de MONSANTO, o penico do mundo como lhe chamava o velho Pote, pescador emérito com fémur de platina e sempre de chapéu, mesmo na missa. - Que se sentia encouro sem a cobertura, dizia. O chapéu era para ele um valor! e que valor! Como para mim era escutar os rádios Moscovo e Argel, lá no alto, noite fechada, às escondidas, ouvido colado ao aparelho.
Para o Canchal da Nora, fui eu aos tordos e pombos bravos e o que mais aparecesse, uma noite, mais o Nosso Sargento, o Manel Celestino, o grande, Quinzinho das Águas, os quatro na Zundapp, e noutra mota, Zé Pcanino, o ronquinha, Riconho e Marocas. Tinha eu palmado oito pilhas das grandes da caixa e um punhado de chumbo.
Por volta das 23 , eles aí vão. As viaturas ficam na serra junto ao Barata e o resto do caminho é feito a pé, às escuras.
Marejava um poucachinho, a lua estava tapada pelas núvens, mas o astro ainda assim não era dos piores e a malta aguentava bem o frescor. Era enorme a vantagem desta meteorologia: se pisávamos galho, não se ouvia, se partíamos ramo o pássaro não se mexia, se déssemos com a canela em calhau desalinhado, a dor era abafada pelo musgo que a cobria e servia de amortecedor... Breu como estava, a luz dos Foxes atravessava o éter húmido, o alvo era isolado, o tiro partia, o apanhador arrecadava, tornava-se a carregar, apontava-se a outro e, pronto! era assim. Tudo caladinhamente! Mainada.
Nessa noite vieram para a caçolada 16 pombos bravos, duas rolas, 20 tordos e 56 pardais. Um monte de carne.
Nas voltas e revoltas e até reviravoltas, a gente, sempre a olhar para o ar, perde o tino e logo, a orientação. Foi assim que Riconho, naquela sua inconfudível voz roufenha se sai com esta - estávamos nós já de regresso e tínhamos chegado ao cimo do Canchal donde, ainda que mal, se entreviam as luzes de Penamacor que acompanham a subida desde o actual posto de abastecimento até ao cimo de vila e castelo -: "Ina cum filha da puta! Já chegamos a Castelo Branco! Quando é que agora hamos de chegar às motas! Salta Ronquinha:" Vocêi, Vocêi, está marado, ó quêi? num vê qué a vila, seu babanca!? Nosso sargento, naquela sua calma característica, ria. Eu meti ferro" è Castelo Branco, poi! aquilo ali é a Marechal Carmona (agora Humberto delgado), Riconho tem razão. Temos que caminhar toda a noite para apanharmos as motas. Nosso Mário:«hein,hein! deste volta à cabeça! aquilo é a rua das tílias! e Riconho: «Estamos enganados. Penamacor é para o outro lado! estamos chapados. Se a água começa a cair comédado apanhamos um pneumonia . O melhor é ficarmos aqui debaixo dum barroco acendemos uma ala e esperamos que o sol nasça. » Ataca Celestino: «é, poi! acendes o lume e no tarda nada tens a Guarda Republicana a ver o que se passa. Ficas cá sozinho! Riconho ponderou e atira!: «esperar lá aí um pouco que vou além ao cimo do canchal a ver se vejo a nossa Aldeia. Ele viu luzes, viu, só que, desorientado como estava, apontava teimosamente para a Bemposta e que a Aldeia ' num era para onde nós dizíamos'. Vínhamos caminhando, rindo e mandando calar Riconho e a sua teimosia até que chegamos às motas. Aí, Riconho nem queria crer que estava em casa.
A Rosa estava a fechar e Riconho foi ali envergonhado até aos limites do possível . Ameaçou que ia buscar a caçadeira e que nos vindimava ali mesmo. Valeu a ponderação de Nosso Sargento. Pagou uma rodada e a história só hoje foi ressuscitada!
Outros tempos, outra gente, outra linguagem, outras aventuras, outros amigos, outros valores.
O que vos digo é que se me enagalhou o cachaço de tanto andar a olhar para o ar, que andei 15 dias que mal me podia revirar. Vi-me nas horas del conho para fazer o petisco.
Um dia que calhe dou-vos a receita. XXXXXIIIIIIIIIIIIGGGRRRRRAAAAAAANNNNNNNDDDDEEEEEE!

domingo, março 19, 2006

A NOSSA COMEDURA - VI - BACALHAU ALAGADO

Como os nossos amigos leitores não nos têm dado o prazer dos seus comentários, nem mesmo com a ameaça simpática de lapaxeiro a exigir a presença do Fadista, - (ele só não os encorre porque já morreu) , resolvi contribuir para lhes trazer algumas forças com esta excepcional receita de bacalhau.
São precisos apenas quatro ingredientes comestíveis: azeite, cebolas, batatas e, bien sur, bacalhau.
Outros ingredientes: muita paciência, amigos assim comédado, tinto do legítimo, ali mesmo dos lados da Raivosa, Ferrador, Lameira da Pinta, Batcharel, Pinheiros, Serra, Quelha Funda, Saramaga, Moinhos de Vento,(...) o que é preciso é que tenha cinco ingredientes: uvas maduras, fermentação lenta, trabalho com fartura, higiene e água. Mainada! Depois é só esperar lá pelos fins de Janeiro - nunca antes - para provar a pomada. Qualquer violação desta regra só pode ocorrer em vasilhas pequenas, deixadas propositadamente para os efeitos pretendidos: prova no S. Martinho, matança do cerdo, visita dum compincha, baptizado dum neto, participação nalguma festividade pública e pouco mais. O vinho precisa de arreganhos para aclarar à maneira e quer repouso. Além disso, seja em que circunstância for, quer moderação. É proibido encharcamento. Nem mesmo Baco consta que se embebedasse. Apenas que gostava de bom vinho e de mulheres. Eu também. Só que não sou deus. Melhor para mim.
Pronto! já sei.... trata-se de uma receita de bacalhau! já lá vamos...
Primeiro é decisivo que cozinheis bacalhau e não um parente qualquer. Para quem não seja expert nestas coisa pode - e deve - partir desta simples observação: o bom bacalhau seco raramente é branquinho - antes é, ligeiramente amarelado - depois a barbatana dorsal deve estar virada para cima, senão as duas, pelo menos uma, a escama deve estar toda no mesmo sentido e o rabo há-de parecer uma espécie de V invertido. Nunca comprar bacalhau do Pacífico. Só da Islândia e Noruega. Excepcional é o de seca amarela, que já aparece muito pouco.
O tipo é variável com as preferências pessoais: pode ser Corrente, Graúdo, Especial,... não importa. A demolha deve ser sempre em água o mais fria possível sem ser gelo, com a pele sempre virada para cima. O tempo varia em função da quantidade, da espessura do peixe e da vasilha onde se dessalga. Aconselho um mínimo de 48 horas com pelo menos duas mudanças de água. O arrefecimento da água é facilmente obtido, mesmo no Verão através da congelação de duas ou três garrafas de água previamente e que se introduzem no recipiente de dessalga. Assim fica a água sempre fresquinha e o bacalhau extraordinariamente mais saboroso. Pormenor não menos interessante é ainda a forma de o cortar: pedi que vo-lo cortem primeiro separando as abas na vertical e depois os lombos na horizontal. Deve depois ser escamado e limpo das barabatanas para além de ser exigido que se lhe retire a membrana negra que lhe percorre a parte ventral. Depois disto, aí vai a receita:
1 - Variando de acordo com o número e pessoas e consequentemente postas de bacalhau e mais ainda com o tipo de bacalhau e, claro, com a voracidade dos comensais, o importante é que o azeite tem que ser mesmo BOM e BASTANTE. Para quatro pessoas e bacalhau corrente, confeccionando só os lombos exige-se obra de um quartilho de azeite, tudo para mais que nunca menos.
2- Muita cebola cortada em rodelas inteiras medianamente cortadas. A cebola começa-se a cortar sempre pelo lado da raíz e nunca pelo lado do talo. Quando digo muita é também em função do tamanho, do recipiente - bom é o ferro - e da quantidade de bacalhau. Para o mesmo número de pessoas umas valentes cinco cebolas.
3. Bacalhau - as postas consideradas necessárias - e sempre com a pele para cima.
4 - O mesmo para as batatas: quantidade considerada satisfatória para os comensais.
NB. - Quanto mais largo for o recipiente, tanto melhor. Tem que ficar sempre tapado e é OBRIGATÓRIO que seja confeccionado em lume brando.
Então é assim:
Cortam-se as cebolas às rodelas, alagam-se com o azeite, sobrepõem-se as postas de bacalhau, e depois coroa-se com as batatas também elas cortadas às rodelas bem grossas. Tapa-se, pode ser lume vivo até levantar fervura, mas depois ,lume brandinho. Evitar abrir. Não precisa água. O bacalhau e as batatas cozem na sua própria essência , misturados com o azeite e a cebola.
Sirva-se bem quentinho e, se possível, acompanhai com uma fatia de pão caseiro,uns pozinhos de salsa e umas azeitonas retalhadas das verdadeiras.
Ide desempapando com o vernáculo tinto e dai-me inculcas desta maravilha. Bom apetite!

segunda-feira, março 13, 2006

A NOSSA FALA - L - ENCRIR OU INCRIR

A Lameira não foi como agora está. Com início no chão do ti Zé Latas, havia um "alcaduque" (espécie de alvanel coberto, formando um túnel) que a canalha atravessava de gatas à luz de bocados de borracha ateada numa pinha. Muitas vezes o atravessei... Claro que esta aventura só era possível durante o Verão , pois, de Inverno esse "alcaduque" ficava cheio de água por mor de uma ribeira que passava junto às figueiras do Zé Maroco , por debaixo do pontão que dava para o beco da Ribeira e desaguava por detrás do lagar na "nossa ribeira", depois de ter passado por debaixo do caminho do cemitério. As mulheres lavavam a roupa nesta ribeira e punham a roupa a corar estendida num banco de relva que sempre por ali havia. Não vos falo das oliveiras e das amoreiras que nós tínhamos que fintar quando jogávamos a bola... Não falo nem é preciso...
Tal como agora também então a Lameira servia de campo dos mercados aos segundos Sábados de cada mês. O que já não era igual era a mercadoria que ali se trocava ou vendia: porcos, burros, vacas, cabras e ovelhas, fora as tendas. As brincadeiras dos velhotes tinham piada e se algum garoto por ali aparecia,logo um provocava: "ó catraio, sabes qual o animal que dá o fruto antes da flor? No sabes? É o burro, é o burro; espera aí sentado até que bote cá fora os cagalhões e verás que o cu dele depois se abre como uma camélia encarnada!" E riam-se a bom rir... E outro: "gostas de castanhas? olha: o burro as caga e tu as apanhas" Mais uma risada. O tempo nem custava a passar e se o negócio se fechava lá estava o alboroque à espera naquilo do Cavalheiro. Era sempre assim.
Três foram, pelo menos, os burros ou burras mais famosos de aldeia: a burra do velho Freitas, inteligentíssima, até sabia escrever e sabia sempre o tempo que fazia. Se chovesse ninguém a arrancava do palheiro e para se desaparelhar bastava que o velho lhe desapertasse a cilha e lhe sacasse o rabo do atafal que ela dava um safanão e deixava tudo direitinho no balcão da parede junto à manjedoura...Outro que não lhe ficava atrás era o ESTUDANTE, burro mais que famoso do Zé Luís Barata, que lavrava sozinho, fazia a torna na perfeição. Zé Luís ficava dum lado e seus filhos Zé ou João ficavam em cada extrema da leiva e apenas viravam a aiveca. O ESTUDANTE fazia o resto. Inultrapassável era também o jerico inteiro do João Rela: pequenino, mas verguio como a puta que o pariu. Em Março - por este tempo que agora corre - mal via uma burra aventava com cinco escritos ao ar, atirava com os aparelhos, arreganhava as beiças, alevantava o cachaço, zurrava e espirrava, chegava às burras e nem que o desancassem com porrada nunca desistia enquanto não farejasse o cu da fêmea. Era mau filho de puta este burrico. Fora isso era manso como a Terra.
Deixava-se montar pela ti Conceição e ajeitava-se ao batorel. Aguentava teso quando estava à carga. Mal via as cordas de ENCRIR - estas cordas serviam para segurar a carga ajustada à albarda do burro e que tinham uma forma própria de se colocarem, por forma a permitir que as duas sacas ficassem uma de cada lado e até pudessem sustentar mais uma ou até duas de sobrecarga, em média media cinco braças (ou braçadas), cerca de metro e meio cada uma e que se obtêm esticando os braços ao máximo da sua extensão - , o burro ajeitava-se logo e nunca se mexia, nem que a mosca o arreliasse. O mesmo com o ESTUDANTE, só que este era muito mais valente e as cordas de INCRIR tinham mais uma braça, dada a altura do animal. Mais parecia um cavalo. Era mesmo um animal nobre. Um cigano ouvi eu oferecer cinquenta notas batidas pelo ESTUDANTE ao Zé Luís. Ele é que não esteve pelos ajustes :"Desaparece-me da vista senão apicho-te aqui o fadista que te encorre até Medelim. "
Admirais-vos agora de a nossa aldeia ser a terra dos doutores e engenheiros? Dizia o senhor Arnaldo, que em tempos trabalhou nas Finanças de Penamacor, que Aldeia do Bispo tinha mais pessoas formadas em cursos superiores do que o concelho todo.
Olha a admiração! Aldeia que tinha burros destes, pouco espanta que tivesse tanta gente formada. E em forma. MAINADA!

sexta-feira, março 03, 2006

A NOSSA FALA - XLIX - OGAR

Indagações empíricas e circunstanciais nunca foram nem são premissas justificativas de uma asserção. Facto é que tendo eu utilizado este nosso vernáculo OGAR em vários sítios, conferi que ninguém o conhecia. Este termo é deturpado na zona do pinhal e vem duma espécie de onomatopeia de AGUAR. O povo pouco diz aguar e diz mais AUGAR. Daqui até OGAR é um passo. Nas outras localidades portanto este termo é utilizado para significar REGAR, verter água com um regador ou mesmo com um tubo, ou não importa o quê, sobre as novidades evitando assim que a geada as queime. Não é esse o valor da palavra para os xendros.
Ah! pois! há sempre uma estória... Podia começar assim:
Velhaco, velhaco era o meu avô, comandante do Inferno : os filhos tinham que se despir para ele lhes bater e berrava:" a roupa não tem culpa nenhuma das vossas asneiras... "E mais ainda... gabava-se de nunca ter posto as mãos num filho para lhe chegar a roupa ao pêlo... E, por incrível que vos pareça, o velho comandante, figura do mais honesto que me foi dado conhecer, falava verdade... Efectivamente sempre lhes bateu, mas com uma verdasca, uma corda, um changoto,..., que sei eu?.... Nunca lhes punha a mão em cima o malandro do velhote!
Todos sabemos que, por via de regra, as famílias mais antigas dos que ainda povoam transitoriamente este terceiro planeta do sistema solar, eram numerosas de filhos. Cedo ajudavam na luta pela sobrevivência e não consta que alguém alguma vez se tivesse preocupado com o trabalho infantil... Outros tempos!
Se havia trabalho que a mim que custava fazer era - e ainda é - ceifar. Embora o instrumento de trabalho seja dos mais leves - a foice - ou o foição - aquela posição de costas sempre viradas para a torreira do sol era coisa que não me quadrava. Nem a mim, nem aos meus quadris (ou cruzes).
Muitas vezes negoceava com o meu pai: eu tirava o estrume aos porcos - coisa que ele também detestava - e ele ceifava. Assim fomos resolvendo a questão da repartição de tarefas.
Só que às vezes não me podia safar e, quem está por baixo obedece porque quem está por cima manda:" Vais à vinha dos pinheiros e ceifas a erva que lá há; começas por baixo das oliveiras; oga-me bem os molhos não se escarapucem quando os for carregar. Faz o nagalho curto. Aí quatro braçadas por ogadela chegam."
Tinha que ser. A princípio, ogar uns molhitos de erva - paveia - não era, ainda assim, tarefa das piores, mas quando a erva crescia e a erva secava e dava colmo, (ou colmeiro) aí o caso era outro...
Ora eu que sempre fui "encalorado", de pouca roupa, abraçar a palha com pragana no braço nu e ajeitá-la por forma a constituir uma paveia que depois juntava outra e mais outra para dar o molho de semente, sempre bem ogado, caladinho, protestava do mais fundo do meu imo!
Aquilo sim! eram umas férias estudantis assim mesmo comédado!
À noite, por este tempo, luminho aceso, panelinha de ferro suspensa das cadeias, lenha concentrada que era preciso poupar, coziam-se umas espigas de couve com uma buchanha, uma farinheira ou uma daquelas deliciosas morcelas batateiras que não há em mais lugar nenhum do mundo, senão na aldeia dos xendros, juntas com umas batatas e, na mesa de engonço, a mor parte das vezes, lá se metiam debaixo da camisa, acompanhadas com um naco de pão, valente, e um pucheirinho de vinho. A água da cozedura não se deitava fora: estava ali o caldeiro da vianda e uma pouca ia para o alguidar da lavagem da loiça. Não era preciso esfregar muito que aquilo ia tudo bem lambido com o último naco do casqueiro.
Como era cedo ainda para se dormir, ali se ficava a ver extinguirem-se as brasas, mirando, de quando em vez uns espanhóis que se desprendiam e logo se transformavam em fonas: «Bem feita espanhol dum corno! quem te mandou meteres-te com os portugueses? Já te esqueceste de Aljubarrota?» A canalha ficava toda contente com a morte dos espanhóis quando deixavam o brilho da incandescência e tombavam lentamente. A mãe passava a vida a varrer fonas para a pedra do lar...
Duas estórias, dessas que se ouviam aos serões, ali, entre a parede da casa e as taipas do quarto, forradas a papel de jornal e coladas com farinha amassada, ao calor e luz titubeante do borralho:
Um espanhol veio a Portugal e empontaram-no para o canto do lume, onde estava o cântaro da água (asado) e o montinho da lenha que mantinha reguladamente o lume aceso. Coitado!
Dizia um: "alimente a fogueira quem está do lado da piorneira!" O espanhol não entendia e foi obrigado a aprender... já que logo lhe chamavam filho dum corno! "quem está do lado do asado, dê uma volta ao sobrado!" Outra vez o pobre do espanhol a ser chamado filho dum corno até que dava a volta com o copo de água, tirada do cântaro, a todos os circunstantes... Não admira que quando voltou a Espanha dissesse para os seus compatriotas:" mira! se fores a Portugal, no te pongas ni do lado da água nem do lado del piorno,sinon te lhamam hijo dum corno!"
Ou esta:
Um homem andava com ganas de bater na mulher e procurava motivos para a arreliar. Era sabido que se ela lhe alevantasse a voz, ele tinha, por assim dizer, o direito de lhe chegar a roupa ao pêlo «Ó mulher, hoje trago a lenha torta» e ela: "o lume logo a corta! "No dia seguinte:«Ó mulher, hoje trago lenha direita!» e ela nas calmas:" O lume logo a ajeita"
É melhor ficarmos por aqui hoje , senão ogo o molho muito grande e depois ninguém pode com ele, o que vale por dizer, que se o texto é grande ninguém o lê!
Ogo-vos a todos num XXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIIII CCCCOOOOORRRRRRRRAÇÃAO

CHANESCO

Daqui se saúda o CHANESCO , um vizinho que vem no mesmo espírito aqui do Baságueda.

Diz ele que Chanesco (tchanesco) não tem significado definido. Não significa nem parvo nem esperto e significa os dois em simultâneo. O seu significado tem de ser entendido de acordo com o humor de quem utiliza a palavra e com a entoação que lhe imprime.

Força aí ó Chanesco!