Nesses anos
O mundo vai dando as suas voltas e parece que quer as representações do espaço rural quer dos seus habitantes têm vindo a actualizar-se em articulação com a própria dinâmica da sociedade contemporânea. Ao espaço rural parecem competir agora novas funções, novos usos e mais diversificados, na medida em que tendencialmente ele parece estar a ser alvo de novas procuras que vão para além das tradicionais (fornecimento de produtos alimentares ou de mão de obra), como sejam as de espaço de lazer, segunda residência, descentralização produtiva, reserva ecológica, etc.
É claro que ao longo desse processo, o espaço rural viu decompor-se toda a sua estrutura social e económica bem como sofreu uma forte descaracterização na diversidade das suas culturas e tradições, subordinado à afirmação dominante do espaço urbano-industrial. Paradoxalmente (ou não), foi esta influência urbana que mais terá contribuído para invalidar em absoluto aquela imagem estereotipada, o que, no limite, suscita a questão se ainda existe rural.
As relações de sociabilidade entre os vizinhos que acompanhavam a vida uns dos outros foram boicotadas pelas telenovelas e reality shows (como é que isto se diz em português?) da TVI, a solidariedade intergeracional ficou irremediavelmente comprometida com o surto migratório e com a invenção dos lares de terceira idade, até a agricultura já não é a grande aliada do espaço rural, enfraquecida pelas regras de mercado ditadas pelas grandes superfícies, pelo abandono, e até pelo clima.
Quanto às “tradições” do mundo rural, são cada vez menos participadas pelos verdadeiros actores e mais por mirones infectados com o vírus urbano da perspectiva folclórica. A grande maioria das que são participadas e adquirem visibilidade, pouco ou nada têm a ver com o ritual original – veja-se o exemplo do madeiro de Penamacor, o “maior” do país. Os nostálgicos do bom velho mundo rural esforçam-se por continuar a alimentar a velha representação estereotipada de algo que já não existe.
Indiscutivelmente, deixou de fazer qualquer sentido falar do mundo rural em tom depreciativo conotando-o com subdesenvolvimento, atraso ou pobreza, o que indicia que provavelmente, ou estaremos perante uma nova noção de ruralidade ou, estaremos perante uma nova realidade para a qual será preciso inventar um novo conceito. Os geógrafos já lhes chamam, apropriadamente, “territórios de baixa densidade”, e não é apenas à dimensão demográfica que eles se referem. Os sociólogos vão argumentando que a nova “ruralidade” integrou uma dimensão simbólica que anteriormente era marginalizada, motivando assim novas práticas sociais, as quais, presume-se, se estão traduzir num acréscimo de procura da ruralidade, quer no sentido físico quer simbólico. Há uma socióloga que já fala em McRural, querendo com isto significar que essa procura se dirige a um mundo mais ou menos estilizado que ofereça, a um tempo, ambiente não poluído, paisagem colorida, natureza florida, campos pouco intervencionados, produtos típicos, e, se possível, algumas manifestações tradicionais e autóctones ostentatórios da sua identidade e da sua diferença. Não importa muito se estamos na Baságueda, nos montes Cantábricos, na Aquitânia ou na Toscânia, importa é que os requisitos se verifiquem, daí o McRural. O caminho lógico para combater a homogeneidade desta procura só pode residir na diferença da oferta. E aqui, a questão que se coloca é se essa diferença deverá assentar no mundo rural que parece, ou no mundo rural que é (ou quer ser). A problemática do mundo rural está prenha.
Seja como for, os tempos ajudaram a gastar a sobranceria dos urbanos, agora a lutar para ensinar os seus filhos que as couves e os tomates não nascem nas prateleiras do hipermercado. Ou que as azeitonas não se colhem doces.
A propósito, já que estais atidos à história, cá vai ela. Mário Caravelha aproveitou o fim de semana prolongado dos Santos para vir à terra e colher umas oliveiras carrasquenhas e vermelhal. Trouxe com ele o filho Luís Miguel, mancebo adolescente nado e criado no bairro da Serafina. O rapaz achou fixe ir colher azeitonas, apesar de não saber muito bem identificar a árvore que as dava. O grupo de trabalhadores contratados incluía Chquim Moca, nosso Farnando e nosso Zéi, conhecidos exímios na arte de enrolar incautos citadinos e não só. Entre outros ensinamentos, Luís Miguel aprendeu a aguentar a comichão das urtigas convencido das suas propriedades afrodisíacas, e que o sabor do fruto azeitona, ali colhido directamente da árvore, não era o mesmo que aqueles que a sua mãe comprava no hipermercado.
Quando ele informou que gostava muito de azeitonas, Chquim moca ouviu-se a sugerir de imediato:
- Ó rapaz, atão vai comendo, aproveita agora!
Até o pai se aguentou calado ao ver o esgar que o seu herdeiro fez quando roubou uma azeitona à árvore e a meteu na boca.
- Estas azeitonas sabem bué da mal.
- És tu que não as sabes colher. Tens que escolher as mai madurinhas – continuou o Moca.
Enquanto a cena se repetia, nosso Zéi agarra uma mão cheia na sacola do almoço e mete no bolso.
- Anda cá ao pé de mim qu’as há boas aqui.
Abana um ramo a fazer ver que a tinha colhido no momento e oferece ao pobre Luís uma azeitona carrasquenha retalhada. Perante a aprovação, nosso Zéi incentivou-o a continuar a colher e a comer directamente da árvore. Nosso Farnando também não quis perder o seu quinhão. Só à quinta cuspidela é que o pai se resolveu a intervir.
- És a minha vergonha. Estás atido a que te ponham tudo à frente, pronto a comer. A culpa é da tua mãe.
A inventora do conceito é a minha cara amiga Elisabete Figueiredo, da Universidade de Aveiro.