segunda-feira, março 23, 2009

A NOSSA FALADURA - CXXX - ATIDO

Nós, os do campo, da província, do mundo rural, aprendemos a encaixar com naturalidade a sobranceria dos urbanos. No que me toca, eu desenvolvi o truque do humor para lidar com as directas e indirectas que os meus camaradas de pelotão me atiravam, a mim, o único espécimen provindo desse Portugal longínquo que era a província. Ainda hoje sonho com a patuscada que se armava todos os domingos à noite na camarata, com pastéis de Belém comprados em Cascais, rissóis manhosos de uma tasca de Benfica ou croquetes rançosos de Cacilhas. Invariavelmente, a contribuição mais aguardada era o queijo (terrivelmente) mal cheiroso que eu levava. Já estavam atidos a ele. Deliciavam-se os citadinos com o ritual: eu estendia cuidadosamente o pano de cozinha, espremia a borracha espanhola apontada à goela durante 10 segundos, limpava os beiços à cota da mão, desnocava um bocado de bica de azeite, sacava da minha navalhinha de tachas pretas e, num ai, transformava a lua cheia em quarto minguante. Os urbanos camaradas d’armas, desajeitados a desnocar a bica e sem navalha, faziam fila. Mas, para terem direito à talhada do queijo, havia uma condição prévia: o tinto tinha que esguichar da borracha espanhola para o palato sem contacto labial. Raro era o metropolitano que não se engasgava ou não regava as ceroulas. Eu mostrava-lhes como se fazia e aproveitava para me vingar: “sois uns labregos”.

Nesses anos 80, a representação do rural era ainda a de um espaço com conotações negativas. Falar do rural ou do campo significava falar de um certo subdesenvolvimento, de atraso, de miséria, de trabalho duro, por comparação à cidade a que se associava a ideia de progresso, de abundância, de trabalho leve. Quantos à gentes, o senso comum citadino alimentou a imagem estereotipada da personagem que fala com o “s” sibilado (no caso das beiras), que chega à capital da nação desgrenhado, com o andar desengonçado de quem está mais habituado às irregularidades da terra lavrada do que ao piso liso de Santa Apolónia, às vezes sem bagagem mas com o inevitável palhinhas na mão.

O mundo vai dando as suas voltas e parece que quer as representações do espaço rural quer dos seus habitantes têm vindo a actualizar-se em articulação com a própria dinâmica da sociedade contemporânea. Ao espaço rural parecem competir agora novas funções, novos usos e mais diversificados, na medida em que tendencialmente ele parece estar a ser alvo de novas procuras que vão para além das tradicionais (fornecimento de produtos alimentares ou de mão de obra), como sejam as de espaço de lazer, segunda residência, descentralização produtiva, reserva ecológica, etc.

É claro que ao longo desse processo, o espaço rural viu decompor-se toda a sua estrutura social e económica bem como sofreu uma forte descaracterização na diversidade das suas culturas e tradições, subordinado à afirmação dominante do espaço urbano-industrial. Paradoxalmente (ou não), foi esta influência urbana que mais terá contribuído para invalidar em absoluto aquela imagem estereotipada, o que, no limite, suscita a questão se ainda existe rural.

As relações de sociabilidade entre os vizinhos que acompanhavam a vida uns dos outros foram boicotadas pelas telenovelas e reality shows (como é que isto se diz em português?) da TVI, a solidariedade intergeracional ficou irremediavelmente comprometida com o surto migratório e com a invenção dos lares de terceira idade, até a agricultura já não é a grande aliada do espaço rural, enfraquecida pelas regras de mercado ditadas pelas grandes superfícies, pelo abandono, e até pelo clima.

Quanto às “tradições” do mundo rural, são cada vez menos participadas pelos verdadeiros actores e mais por mirones infectados com o vírus urbano da perspectiva folclórica. A grande maioria das que são participadas e adquirem visibilidade, pouco ou nada têm a ver com o ritual original – veja-se o exemplo do madeiro de Penamacor, o “maior” do país. Os nostálgicos do bom velho mundo rural esforçam-se por continuar a alimentar a velha representação estereotipada de algo que já não existe.

Indiscutivelmente, deixou de fazer qualquer sentido falar do mundo rural em tom depreciativo conotando-o com subdesenvolvimento, atraso ou pobreza, o que indicia que provavelmente, ou estaremos perante uma nova noção de ruralidade ou, estaremos perante uma nova realidade para a qual será preciso inventar um novo conceito. Os geógrafos já lhes chamam, apropriadamente, “territórios de baixa densidade”, e não é apenas à dimensão demográfica que eles se referem. Os sociólogos vão argumentando que a nova “ruralidade” integrou uma dimensão simbólica que anteriormente era marginalizada, motivando assim novas práticas sociais, as quais, presume-se, se estão traduzir num acréscimo de procura da ruralidade, quer no sentido físico quer simbólico. Há uma socióloga que já fala em McRural, querendo com isto significar que essa procura se dirige a um mundo mais ou menos estilizado que ofereça, a um tempo, ambiente não poluído, paisagem colorida, natureza florida, campos pouco intervencionados, produtos típicos, e, se possível, algumas manifestações tradicionais e autóctones ostentatórios da sua identidade e da sua diferença. Não importa muito se estamos na Baságueda, nos montes Cantábricos, na Aquitânia ou na Toscânia, importa é que os requisitos se verifiquem, daí o McRural. O caminho lógico para combater a homogeneidade desta procura só pode residir na diferença da oferta. E aqui, a questão que se coloca é se essa diferença deverá assentar no mundo rural que parece, ou no mundo rural que é (ou quer ser). A problemática do mundo rural está prenha.

Seja como for, os tempos ajudaram a gastar a sobranceria dos urbanos, agora a lutar para ensinar os seus filhos que as couves e os tomates não nascem nas prateleiras do hipermercado. Ou que as azeitonas não se colhem doces.

A propósito, já que estais atidos à história, cá vai ela. Mário Caravelha aproveitou o fim de semana prolongado dos Santos para vir à terra e colher umas oliveiras carrasquenhas e vermelhal. Trouxe com ele o filho Luís Miguel, mancebo adolescente nado e criado no bairro da Serafina. O rapaz achou fixe ir colher azeitonas, apesar de não saber muito bem identificar a árvore que as dava. O grupo de trabalhadores contratados incluía Chquim Moca, nosso Farnando e nosso Zéi, conhecidos exímios na arte de enrolar incautos citadinos e não só. Entre outros ensinamentos, Luís Miguel aprendeu a aguentar a comichão das urtigas convencido das suas propriedades afrodisíacas, e que o sabor do fruto azeitona, ali colhido directamente da árvore, não era o mesmo que aqueles que a sua mãe comprava no hipermercado.

Quando ele informou que gostava muito de azeitonas, Chquim moca ouviu-se a sugerir de imediato:

- Ó rapaz, atão vai comendo, aproveita agora!

Até o pai se aguentou calado ao ver o esgar que o seu herdeiro fez quando roubou uma azeitona à árvore e a meteu na boca.

- Estas azeitonas sabem bué da mal.

- És tu que não as sabes colher. Tens que escolher as mai madurinhas – continuou o Moca.

Enquanto a cena se repetia, nosso Zéi agarra uma mão cheia na sacola do almoço e mete no bolso.

- Anda cá ao pé de mim qu’as há boas aqui.

Abana um ramo a fazer ver que a tinha colhido no momento e oferece ao pobre Luís uma azeitona carrasquenha retalhada. Perante a aprovação, nosso Zéi incentivou-o a continuar a colher e a comer directamente da árvore. Nosso Farnando também não quis perder o seu quinhão. Só à quinta cuspidela é que o pai se resolveu a intervir.

- És a minha vergonha. Estás atido a que te ponham tudo à frente, pronto a comer. A culpa é da tua mãe.

A inventora do conceito é a minha cara amiga Elisabete Figueiredo, da Universidade de Aveiro.

quarta-feira, março 04, 2009

A NOSSA FALADURA - CXXIX - TARIMBA

Se os fornos eram quatro, três eram os lagares. Bem, um era conhecido pela fábrica, pela simples razão de que já trabalhava, primeiro a motor e depois a electricidade. Ficava onde é hoje o café LAGAR, que lhe herdou o nome. Pertencia ao professor Leitão, artista inventor mor, espécie de professor Pardal, com motos a tirar água, chapéus de chuva invertidos para apanhar fruta, com uma tesoura colocada na ponta de um varapau que prolongava o eixo do guarda chuva, e por aí fora; outro pertencia à D. Carminda. Ficava ao lado da igreja no caminho para a ribeira: lagar de varas onde ainda se tentou adaptar um motor que a maior parte das vezes estava avariado. Raios e coriscos com praguejos mais que muitos se ouviam quando as correias não faziam andar o moinho e a massa estava quente....; o terceiro, e é este que merecerá maior atenção, era o da Lameira. Eram seus proprietários a Casa Campos, o professor Zé Manel Landeiro e a família Bargão com alguns Baptistas. Foi neste que quase me nasceram os dentes.
O Lagar, propriamente dito, tinha duas grandes salas: a da entrada onde se situavam as três varas e à direita a sala da lagariça. Tinha esta um enorme pio em pedra onde a azeitona ( 600 Kg por moedura) era moída até ao ponto conveniente por uma junta de vacas do Alberto Vaz. A hora de começo era, habitualmente as 5h 30min. O tempo de moagem era em regra de 2 a 2h-30 o que significa que a massa estava pronta por volta das 8h.
O moinho trabalhava a frio e a massa era transportada à mão, em gamelas para quatro ceiras que estavam por debaixo de cada uma das varas e que se iam enchendo e sobrepondo. Repare-se que cada uma levava 150 kgs de massa. Era obra. O líquido escorria para uma tarefa incrustada na rocha donde depois era decantado para outra ficando aí já o azeite limpo. De vez em quando lá ia o Zé Lopes a abrir a torneira para o azenagre ir para o inferno, espécie de poço, por onde passavam os detritos antes de entrarem na ribeira. É daqui que vem o velho aforismo: "a azeitona dá-a Deus e o azeite dá-o o diabo". As varas (enormes troncos de sobreiro) assentavam nas ceiras e com a pressão iam fazendo espremer as ceiras, mas para mais peso, havia, a meio, três enormes pedras, uma para cada vara, que eram levantadas num fuso enroscado numa chave, tudo em madeira, obra de arte de carpintaria artesanal. Por fim as ceiras eram despejadas e a massa era então escaldada e de novo enceirada. É aqui que eu entro:
O Chamiço dava lenha (recebia poia, é claro) mas a água para a caldeira que estava sempre aquecida era dada por três pessoas: eu, o lavra miúdo e o mota. Três vezes ao dia, às vezes quatro, quando o serviço apertava, lá íamos nós a dar água para a caldeira. À porta do lagar havia um pequeno poço donde era tirada a água que um transportava e outro despejava. O serviço era rotativo, mas eu queria ficar sempre a tirar a água do poço. Era um artista. Tenteava a água e o caldeiro caía sempre de borco e era só puxar e despejar. Tudo às escuras, que ali, às 5h 30min da manhã em pleno Inverno, não havia luz. Mau era quando chovia, mas lá se dava o jeito. Como era cedo e ainda nada se via e nada se podia fazer, às vezes ficava por ali, junto ao lume da caldeira no quentinho, sentado num tropesso e, quando combinava com os lagareiros, papávamos uma lata de atum de mistura com umas couves do dia anterior e escorropichávamos uns tintos pelo copo de lata sempre junto à candeia com torcida de trapo.
As duas salas do lagar eram divididas por taipas em madeira e o ganhão e as vacas dormiam logo à entrada, elas junto à manjedoura e ele numa tarimba cravada na parede e suspensa por dois barrotes para a qual subia por um escadéu. Às vezes já não subia porque o tinto era tanto que qualquer palha servia de enxerga. No outro lado dormiam , também em tarimbas, os três lagareiros.
Não sei em que estado isto tudo está, que o Zé do café comprou o lagar e pôs lá as galinhas e o tractor e mais o que quis.
Uma pena perder-se um lagar que eu vi em tão bom estado. Ainda esteve em tempos para ser adquirido pela autarquia para museu... O Presidente mudou, o lagar morreu, e o museu nem no papel.
Se alguém dos que me lêem tiver influência, sugiram a aquisição desta relíquia e facultem-na ao povo.
Um povo sem passado não tem história.
Aqui fica o apelo.
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