quarta-feira, setembro 26, 2012

A NOSSA FALADURA - CLXXXV - BOUCHADA ou BOUCHEDA

São muitas as histórias acerca do aproveitamaento total dos animais para a alimentação humana: veja-se o caso das tripas ou das alheiras, só para servir de exemplo. Sem dúvida que o animal mais aproveitado, foi, desde sempre, o porco. Desde a pele aos ossos, tudo era reconvertido em alimento.
No caso vertente, referimo-nos à cabra e ao seu estômago: a bochada/ bocheda/ botchada/ botcheda/ bouchada/ boutcheda.
A época, por excelência, do abate dos caprinos, tal como dos anhos/borregos / ovelhas/carneiros, em suma, dos chamados pequenos ruminantes, é a Páscoa. Não é por acaso que até o próprio Cristo na Liturgia é apelidado de Cordeiro de deus e que com o sangue deles que se marcaram as portas .
Na região interior a bochada é aproveitada para a feitura de um alimento de sabor delicioso  - os maranhos. Depois de bem lavada e virada, deixa-se em curtume num alguidar com laranja, alho, louro, sal, corta-se à medida pretendida, cose-se com agulha e linha e enche-se com carne da própria cabra (preferentemente a do cachaço, previamente e razoavelmente encalada, chouriço caseiro, presunto com pouco branco, muita salsa e hortelã picadas, e arroz demolhado, fecha-se e coze-se durante o tempo considerado necessário, tendo em conta a idade da rês. Convém não encher muito porque depois o arroz vai , naturalmente, inchar durante a cozedura. Há quem coma a bouchada e outros consolam-se apenas com o recheio. Eu, por mim, como tudo. Só sobra a linha da cosedura. Nada como arriscar a fazer e depois contar.
As tradições são o que são e se muitas se perderam ou cairam em desuso, outras, sobretudo as culinárias ainda subsistem e são até alvo de um revivalismo saudável. Aqueles que comeram comida feita em panela de ferro ou em caçola de barro sabem bem do incrível paladar dessas iguarias.
Cinco foram as mulheres que quase sempre vi descalças: a minha bisavó paterna Isabel, a velha Lorpa, a velha Nacha (Inácia), a velha Pieres e a velha Poupeda.
Trago-vos hoje a Pieres: media por aí um metro e quarenta, seca como as palhas, sempre de saia comprida, ligeira quanto baste, corria a aldeia toda e apanhava tudo quanto fosse gravato para acender o lumito. Vivia num tugúrio ao cimo da barreira do outeiro, curiosamente, mãe de um dos homens mais altos que ainda hoje habitam a aldeia xêndrica: o Camião.
Por altura das festividades religiosas, muitos dos Xendros vinham até à terra mãe e era ver a velha Pieres, solícita a prestar-se para todo o serviço que a senhora precisasse. Uma das que mais aproveitava as prestações serviçais de Pieres era D. Bondita (Benedita) , professora, esposa que era do ilustre comendador, também ele professor Zé Manel Landeiro, autor de Penamacor na História e na Lenda, e Caminhos Velhos de Penamacor, membro da Academia de História e com direito a dar nome ao Largo central de aldeia. Foram professores em vários locais, mas acabaram a sua vida profissional no Montijo.
Não era muito comum a D. Bondita descer ao povo, mas o professor Zé Manel vinha logo de manhã a ver se o correio já tinha chegado, a beber uma ginja traçada na tasca do Fatela e a comprar tabaco. Sofria dos calos e o seu andar era muito característico. Pieres sabia logo quando chegavam porque nas suas constantes deambulações depressa se deparava com o professor e lá ia ligeirinha a ver o que a senhora precisava.
Depois era vê-la no Chquim do Trem a comprar a mercearia, e no ti Chico Miguel a ver da chiça de cabra e da bouchada. Foi na casa de D. Bondita que provei os maranhos pela primeira vez. Fui lá levar a bilha do gás naquele mais que famoso carrinho de quatro rodas e o cheirinho da hortelã levou-me a soltar um louvor: "Oh Senhora D. Benedita, hoje há rancho melhorado... Cheira tão bem!" E ela ofereceu-me uma fatia de maranho. Lambi-me. Benedita gostava de me examinar e perguntava-me sempre qualquer coisa. Naquele dia perguntou-me se eu já tinha lido a Bíblia. "Já sim, já a li". «Então qual é a profissão do diabo?» Eu fiquei a olhar para ela, encolhi os ombros e ela» «era padeiro, rapaz, era padeiro...é por isso que temos que comer o pão que o diabo amassou»
Fiquei assim de cara ao lado, despedi-me e cruzei-me com Pieres que ia a subir as escadas.
XXXXXXIIIIIIIIIIIIIGGGGGGGGGRRRRAAAANNDEE

terça-feira, setembro 11, 2012

A NOSSA FALADURA - CLXXXIV - ÀS E(I)ND(I)RE(I)TURAS

Não raro confundimos convicção com certeza, teimosia com persistência, causa com opinião e por aí fora.
A natural tendência para aparecermos como vedetas maiores nas estórias que contamos levam-nos a uma pseudo auto estima a partir de uma imagem defeituosa do nosso próprio auto conceito.
Educados como fomos numa lógica bivalente, numa divisão dicotómica, num maniqueísmo atávico, tendemos sempre a pensar que quem não é por nós é contra nós e que quem discorda de nós é tendencialmente anormal ou um cegueta que não quer ver a verdade (que evidentemente é a nossa). A questão agrava-se se falamos de religião ou nos metemos em questões de fé.
A nossa matriz mais profunda é, sem dúvida, a matriz judaico-cristã. Mas não só: temos raízes celtas, fenícias, helenas, romanas, árabes e depois africanas, brasileiras, francesas e anglicanas e o que mais se queira, como indianas e asiáticas no seu todo. Os portugueses foram os primeiros aldeões globais. Por isso é que " se Deus criou o homem, o português criou o mulato".
A religião enquanto fenómeno individual e social é, a bem dizer, um fenómeno universal e intemporal. Só que as religiões são todas sectárias, desde os cristãos (católicos, anabaptistas, adventistas, anglicanos, luteranos, calvinistas, cárpatos, coptas, ortodoxos, iurd, piniel, maná, e um rol mais que inumerável) judeus com as testemunhas de jeová, rabinos e outros que tais, muçulmanos com as teocracias mais que muitas com as diferenças interpretativas que levam, em todas elas - estou apenas a falar das três monoteístas - a fundamentalismos sem nexo, cada uma convencida que o seu deus é o único deus, quando é apenas um a das divindades aceites por correligionários crentes.
Permita-se-me citar Michel Onfray - Tratado de Ateologia,- pg. 69:... «os homens , quando se decidem a dar à luz um deus único, fazem-no à sua imagem: violento, ciumento, vingativo, misógino, agressivo, tirânico, intolerante....»
Não há dúvidas que em nome de deus tudo é possível, desde uma fervorosa Teresa de Calcutá a um Torquemada, de mártires pela liberdade a vingadores de 11 de Setembro, de união em torno de um ideal a invasões de toda a ordem com morticínios a eito. Se deus soubesse o que fazem em seu nome, envergonhar-se-ia.
Alma de Sino tinha uma burranca valente. Quase parecia uma mula. Quando bem arreatada como na altura das festas, era um animal garboso, bem posto, crina brilhante e rabo enorme, dorso largo. Alma de sino primava pelo trato da sua besta e tinha razões para isso. O seu modo de vida consistia em ir ao Sabugal a vender as primícias: o primeiro feijão verde, a batatinha nova, figos, abóbora, nabiços, que sei eu... Aparelhava a burranca, punha-lhe as angarelas e carregava-as com dois cestos laterais e dois ao centro de sobrecarga. O animal arrancava com a carga sem aparente esforço e Alma de Sino lá ia, quantas vezes também ele atado à burra, caminhando, qual sonâmbulo, puxado por corda presa à rabicha da albarda.
"Ó Ti Mnel, atão qual é o caminho que vomecê toma para encurtar viagem até ao Sabugal? perguntei-lhe um dia. E ele: « olha cachopo, meto aqui direito à quelha funda, vou às endireituras da fonte de Carvalho, subo até ao talefe do salgueirnho, passo ao lado da capela do Meimão às endireituras do castanheiro das merendas e depois é só descer até ao Sabugal.»
"Atão e se fosse ali pelo carregal, a passar à sra do incenso contornasse a mata às endireturas da ponte do zé mendes e à queijeira do elias até ao carvalhal da meimoa, passasse pela sra da póvoa, subisse a serra de opa e depois fosse na mesma a dar ao castanheiro das merendas?.»" »Tu és tonto, era muito mai longe! e além disso tinha que ensinar o caminho à minha burra e ela, como é velha, já não aprende vereda...»
Discutimos os trajectos mas ao fim cada um ficou com a sua. A burra olhava para nós a dizer que éramos os dois uns tarantas.Se calhar era ela que tinha razão.
Passados dois anos a burra acabou por morrer e Alma de Sino começou a ter que ir na camioneta da carreira.
Assim somos nós: só mesmo perante uma evidência insofismável alteramos as nossas convicções, mas a tendência é a de continuarmos a bater na mesma tecla, mesmo que esteja desafinada. Habituamo-nos àquele som e passa a ser melódico ouvi-lo, contra tudo e contra todos.
Somos mesmo muito lindos, não somos?
As coisas só estão bem quando ficam nas nossas endireituras!
XXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIGGGGGGGGGGGRRRRRRRAAAAANNNNNNNNNNDDDDDDDDDE