quarta-feira, agosto 21, 2013

A NOSSA FALADURA - CC - ÀS ABAS

Terá sido a partir de meados da década de 60, postulo eu, que as festas de Verão, nas aldeias e vilas deste país ganharam a dinâmica e o figurino que actualmente as caracteriza. Esse novo figurino cresceu  e instalou-se às abas da chamada “modernização” do mundo rural, por via da sedimentação de padrões de vida importados do modo de vida urbano que vêm operar mudanças significativas nas práticas colectivas e nas referências simbólico-culturais das comunidades localizadas no dito "mundo rural". Os (e)migrantes terão assumido protagonismo decisivo no processo.

Invariavelmente, todas as festas nas comunidades rurais têm na sua origem o fervor religioso e o pretexto da celebração do dia do santo padroeiro ou de outra qualquer figura do panteão de santos da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana. Constata-se, todavia, que a festa tem vindo progressivamente a dessacralizar-se. Uma das principais características da nova festa de Verão é o seu carácter eminentemente profano, independentemente de ser realizada sob a auréola do santo padroeiro. Mesmo que não declarado, é notório o esvaízamento dos tradicionais motivos simbólicos que lhes deram origem, estejam eles ligados a celebrações religiosas ou aos ciclos agrícolas. Pese embora o motivo religioso (o padroeiro), a verdade é que, exceptuando a missa e a procissão, tudo o resto é profano.

A nova festa rege-se por novos valores que muito ficam a dever àqueles padrões de vida importados do espaço urbano, influência essa que se inscreve, aliás, no processo mais vasto de transformação das comunidades rurais, observável em praticamente todas as dimensões da vida social local. É a cultura dominante, a chamada de massas a engolir irreversivelmente as culturas locais.

Caricaturalmente, a festa tipo realiza-se num recinto quase exclusivamente reservado para o efeito. No topo do recinto, jaz um palco coberto, onde actuam os artistas músicos que animam a festa, preferencialmente da área da designada música pimba cujo espectáculo decorre à maneira do “concerto” musical citadino, cheio de cor e movimento, habitualmente a cargo de 2 ou 3 bailarinas que se apresentam provocadoramente vestidas (ou será despidas?). A maioria da plateia assiste quase impávida, uma minoria cede ao impulso de dançar nas cantigas mais populares, cuja estrutura musical é simples, pontuadas por refrões fáceis de letras brejeiras. Estrategicamente posicionado  funciona um bar corrido, permanente e maioritariamente ocupado por homens, às abas  do qual existe uma secção com um conjunto de mesas e bancos para fruição gastronómica. A principal bebida consumida é a cerveja, servida gelada em copos de plástico, com pouca espuma. Nas comidas, o frango assado é rei, complementado com bifanas, moelas e pipis. Tudo conjugado e preparado para alimentar uma atitude eminentemente passiva e consumista.

Na organização está uma “comissão”, nascida às abas da dinâmica e da vontade de um grupo de voluntários, motivados, uns pelo fervor religioso, outros por puro bairrismo, outros prosseguindo uma estratégia de afirmação identitária, na medida em que a festa permite a apropriação social de determinados momentos e acções a que atribuem elevado valor simbólico no quadro sócio-cultural da comunidade de origem.

Dia S. Bartolomeu, 24 de Agosto de 1973. É dia de semana, dia de trabalho em todo o mundo, excepto na aldeia dos xendros que saem à rua exibindo as suas mais vistosas indumentárias. A batalha trava-se entre as que insistem no corte tradicional – inspiradas ainda na matriz cultural que iria em breve ser mortalmente ferida na madrugada que Sophia esperava, o tal dia inicial inteiro e limpo – e outras mais arrojadas, viajadas directamente da fresca e desinibida Gália. A matriz regista a maior afluência do ano, logo aproveitada pelo pregador convidado para se alongar no sermão. O povo feminino abana-se freneticamente com coloridos leques timbrados com motivos tauromáquicos.

Manda a tradição que imediatamente a seguir à eucaristia se leve a estátua de Natanael com a faca na mão direita e o diabo preso na mão esquerda, a dar um passeio pela aldeia em procissão para ser depositado durante algum tempo na capela do Espírito Santo. O ambiente cénico, para além do numeroso povo que preenche completamente a rua, inclui o pálio que cobre o clero com a sua sombra, os andores, os estandartes e, inevitável, a banda de Aldeia de João Pires, complementado por um ambiente sonoro onde pontificam os rebentamentos secos dos foguetes lançados pelo igualmente seco Miguelito e, indispensável e marcante, o sincopado dlim dlim dlão, dlim dlim dlão, dos sinos da torre da Igreja.

Naquele tempo, havia forte disputa entre a garotada pelo direito de dar ao badalo – do sino - durante toda a procissão. Chegava a ser combinada uma escala para permitir que todos tivessem tamanha honra, dispostos a aguentar o zumbido que havia de ficar nos ouvidos durante um par de horas por efeito da prolongada exposição ao desaconselhado volume de decibéis que era atingido naquela exígua câmara. Naquele ano, o sacristão tinha autorizado João Feijão, Tonho Mamanaburra, Domingos Albardinhas e, excepcionalmente, o Jorge Braga - porque este vivia em Lisboa e só lá estava de férias - a revezarem-se na produção da banda sonora. Iniciada a corrida pela estreita escadaria que conduzia ao cimo da torre, na ânsia de ganhar o direito a ser o primeiro a agarrar os ditos badalos, o Braga levou inadvertidamente o pé esquerdo a embater numa espécie de pedregulho que jazia às abas do complexo sistema do certeiro relógio que marcava o ritmo de vida de toda a aldeia, cuja queda foi bem audível em toda a nave. Não tardou muito que Xquim Camião aparecesse esbaforido, na sua qualidade de guardião e afinador do relógio, e se desse conta da tragédia: por entre o ruido ininterrupto do dlim dlim dlão, dlim dlim dlão e os sons guturais que caracterizam a sua difícil fala, os garotos conseguiram perceber, ainda assim, que o dito “pedregulho” era uma peça importantíssima para os equilíbrios da complexa obra de arte da relojoaria concebida e montada por esse génio e mestre autodidacta que se chamara Manel Ferreiro. Inconscientes e ignorantes sobre a calamidade que tinham provocado no relógio, a preocupação dos gaiatos resultava apenas da ameaça deixada pelo Camião de que iria fazer queixa ao senhor prior e ao regedor, gesticulando muito e apontando em especial para o Braga. A antevisão da sova que o esperava notou-se bem no fraco vigor e no ritmo menos rigoroso com que ele abanou os badalos na sua vez. O receio era bem fundado, considerando o respeito temeroso que toda a gente naquele tempo votava à figura do regedor e o padrão de actuação dos pais em qualquer caso de comportamento desviante dos filhos.

A tarde foi de expectativa. Nem os pirolitos na festa estavam a saber como habitualmente. O Braga havia de ficar mais aliviado quando o amigo João Barbosa, filho do Presidente da Junta, chegou ao recinto e contou que o Camião tinha ido lá a casa a acusá-lo de ter feito o estrago no relógio. Ora, era impossível que o Barbosa tivesse praticado tal crime, porquanto ele ia na procissão vestido de anjinho. O Camião, que ia a contar ficar bem visto e com o copinho do famoso morangueiro produzido na casa, saiu com a garganta mais seca, levou um valente responso da senhora mãe do Barbosa e a ameaça de queixa por falsos testemunhos. A confusão do camião tinha uma explicação: eram evidentes algumas parecenças físicas entre os dois amigos Jorge e João.

Safou-se de boa o Jorge Braga. Às abas disso, foram ambos saborear calmamente um pirolito. Alguns dias mais tarde soube-se que o Camião tinha concertado competentemente o relógio da torre.


Ainda hoje ouvi bater o meio dia e me lembrou que eram horas de almoço.


Notas:
1. A história tem uma pontinha de verdade e devo-a ao meu bom e antigo amigo Jorge Manteigas que às abas disso tem direito a figurar como personagem principal. Um abraço para ele.
2. Com este texto, atingiu-se o post nº 200 da rubrica "A nossa faladura". Eu seja ceguinho se contava chegar tão longe...

quarta-feira, agosto 07, 2013

A NOSSA FALADURA - CXCIX- BO(U)NICRA ou BENICRA

Assunto que nunca foi muito do meu agrado, em matéria de língua portuguesa foi o da classificação das palavras em homónimas, homógrafas e homófonas. A razão é que todas as homónimas são homógrafas e homófonas e todas as homógrafas são homónimas e homófonas mas já não é verdade que todas as homófonas sejam homógrafas. Só por aqui já se vê que não é à primeira que se pode classificar a palavra da faladura de hoje. Deixo, pois, ao vosso critério.
Já lá vão uns anos valentes... começava a debater-se o acordo ortográfico que acabou (vergonhosamente) por entrar em vigor quando e, numa reunião ocorrida numa Instituição de Ensino Superior, propus a um dos elementos da equipa que discutia o tal acordo numa intervenção que era mais ou menos assim:« Se vão mexer na língua, mexam de uma vez ou não lhe toquem... mas se mexerem então crie-se um grafema para cada fonema, ou seja, que cada letra tenha sempre o mesmo som e não haja nem dois ss ou cedilha, que o x tenha um único valor fonético e não como agora que se lê como x(xisto), z (exame) cs (sexo) s (expulsar)..., acabem-se os diacríticos como o til e a nasalação seja sempre biliteral,... Enfim, dei uma série de sugestões, não sem alguma ironia que fez sorrir muitos dos circunstantes...Talvez assim se evitasse a minha dificuldade...
Hoje estou com vontade de escrever...  Algumas das palavras que vos vou deixar não fui eu quem primeiro as escreveu, mas não me importava de ter sido. Vou, portanto fazer citações. A primeira é retirada  do Diáro de notícias  de Quinta -Feira, dia  25 de Julho, nº 52698, pp 55 e pertence a Manuel Maria Carrilho, sob o título "ESQUEÇA AS PALAVRAS - E APROVEITE PARA CONVERSAR. " As notícias tornaram-se tão tóxicas para a mente como o açúcar se revelou para o corpo... As notícias não explicam nada, elas são como a espuma à superfície das águas...Se calhar o melhor remédio é seguir o conselho de Rolf Dobelli que propõe dez pontos em que vale a pena reflectir... Esses dez pontos são: 1- as notícias enganam, 2- são irrelevantes, 3- não explicam, 4- são tóxicas para o organismo, 5- aumentam os erros cognitivos, 6- impedem de pensar, 7- funcionam como uma droga, 8- fazem perder tempo, 9- tornam-nos passivos, 10- matam a criatividade ... Um bom desafio para o mês de Agosto é seguir o conselho de Theodore Zeldin que escreveu um fantástico Elogio da Conversa. A conversa pode ser o antídoto das notícias: ela pode aproximar da verdade, pode ser explicativa e relevante, estimular o pensamento e a criatividade, desintoxicar a mente e explicar as ressonâncias com o mundo". Conclui-se que mais vale conversarmos e sermos activos num diálogo do que ficarmos de olho escancarado nas notícias que nos entram porta adentro. Que saudades dos belos serões de antanho! Aí sim, debatiam-se os verdadeiros problemas da casa e passava-se alta cultura de geração para geração. Nada disso, agora. Vamos então conversar neste verão em vez de nos determos perante ecrãs, sejam eles quais forem.
 A outra citação vem num livro de Afonso Cruz (que aconselho vivamente), sob o título JESUS CRISTO BEBIA CERVEJA  (Alfaguara), pp.223 :- " Eu por vezes sinto-me vazio, a minha ciência é desprezada. O conhecimento não interessa para nada. Os conhecimentos é que são importantes. Isto é um país de amigos onde, curiosamente, todos são meus inimigos. Ninguém se digna a perder tempo a ler o que ponho no mundo, com toda esta sabedoria que me caracteriza. A sociedade é feita de dinheiro. A carne dela são cotações, cheques, cartões de crédito. Vende-se o que dá dinheiro. O que importa não importa. É o fim dos tempos, o homem volta a ser um macaco. Volta a olhar o porco, cara a cara, e a sentir que se olha ao espelho. É isso o homem. Uma espécie de suíno que, momentaneamente, esqueceu a sua condição orwelliana. Somos todos uns porcos que chafurdam na banca e na economia. A vida não passa de um gráfico de barras, umas estatísticas, probabilidades, projecções. E neste mundo somos todos escravos de notas de todas as línguas.
- Deus deveria dar-lhe fama.
- Não me fales em Deus, Rosa. Deus tem um jardim, que é onde vive. Nós temos um inferno. Foi o que Ele nos deu. Ele é um dos patrões que mais andam por aí. Um pai, se o filho passa fome, é o primeiro a privar-se de comida, para que os seus filhos possam comer. Deus devia andar a passar fome e a sofrer todas as dores. Aquela cruz não dá para nada. Olha à tua volta: um dirigente quando quer sacrificar, fá-lo sacrificando o povo, mas que pai faria isso aos seus filhos? Qualquer pai estaria disposto a sacrificar-se a si antes de sacrificar os filhos e é isso que faz um líder e é isso que faria o verdadeiro Deus, se existisse. Se queres encontrá-Lo, procura-O no maior indigente, no maior sofrimento. Essa é a sua única hipótese de existência. Os líderes que vemos a governar os nossos países, são apenas criminosos iguais ao Deus católico. Quando se portarem como um pai a tomar conta dos seus filhos, serão verdadeiros estadistas. Deus não está no céu, está na barriga dos esfomeados. É um punho fechado, peludo, a gritar de agonia, dentro do estômago.
- Mesmo assim o professor devia ser famoso.
- A fama é o modo como as pessoas célebres se dão a conhecer. Já dei à fama um protagonismo maior. Para os Romanos, era um monstro cheio de olhos e bocas, com asas. Andava sempre acompanhada pelo Boato e pela Crudelidade. Diz a verdade com umas bocas, enquanto com outras mente. Um monstro."
Não tínheis em que pensar e motivo de conversa? Ora aqui tendes um bom.
Rosa Rei e Albertina Milhana eram o oposto uma da outra: se fossem palavras eram antónimas. Rosa morava no beco da ribeira e Milhana no arrabalde da Lagariça. Rosa tinha voz de homem, Albertina se puxasse pela voz escavacava vidros, tal a estridência, Rei andava sempre na onda da frente, começa quando os outros só estavam a acabar a ladainha anterior, Albertina acabava quando já toda a gente ia na oração seguinte, Rosa estava completamente desdentada, Albertina cortava um travisco à dentada, Rosa teve um filho, Albertina uma filha, Rosa tinha um burro, Albertina uma burra, Rosa Rei puxava-o sempre pela rédea, Milhana ia sempre atrás, às vezes com um baraço preso à rabiça da albarda para acompanhar a besta.
Como se vê eram mesmo paralelas: nunca se encontrariam por muito que as prolongássemos.
Em comum, pois tudo tem uma excepção, era a sua presença continuada em todos os actos eclesiais, mas enquanto Rosa ficava logo no banco colado à coxia e chegava com meia hora de antecedência, Milhana ficava quase sempre no último banco, próximo do espaço já reservado aos homens, já que vinha sempre esbaforida em cima da hora, ainda a ajeitar o lenço. Rosa morava perto da Igreja, Albertina num extremo longínquo.
Não se falavam e Rosa dizia que Albertina ia atrás da burra que "era por mor de apanhar com as bunicras nas ventas", enquanto Albertina se defendia a dizer que ela puxava o burro pela rédea" Para ver o seu próprio retrato, quando olhava para trás".
Facto era que a burra de Albertina já era entradota na idade e quando ia carregada com as angarelas cheias de esterco para a sorte da Ribeira, a subir o cabeço do Feijão tinha tendência para se abrir de forma altamente sonora, mandando fedorentas bonicras que cheiravam a 50 metros. Se calhar queimava misto e a subir ligava também o gás para ajudar à palha... Já o burro de Rei, inteiro como era, de vez em quando à passagem por uma burra excitava-se, arreganhava o beiço, mostrava os dentes e por isso Rosa ia sempre à frente com a rédea curta, para evitar que ele se pusesse atrás das burras e aventasse com os aparelhos ao ar.
Pronto. Já sei que vai longo... Se não quiserdes conversar, olhai que rir também é saudável.
XXXXXXXXIII  GGGRRRRAAAAAAAAAAAANNDDDDDDDDDDDDDDEEEEEEEEEEEEEEE