sexta-feira, junho 30, 2017

A NOSSA FALADURA - CCLII - DESAJUDA/DESAJUDAR



Como já por várias vezes aqui foi referido, o meu amigo Lameiras, de vez em quando saía-se sempre com a sua proverbial sentença:"tem lá porras". Pois é: a língua portuguesa tem lá porras. O prefixo (eu acho que ainda é assim que se chama) DES, em regra, significa disseminação, distribuição, intensificação  como em des vario, e também a negação /oposição da palavra primitiva, como em des vio, des tacar, des aparecer,... Ora, a nossa faladura de hoje não verifica nem uma nem outra das possibilidades, a não ser que, com muito boa vontade aceitemos que ajudar significa auxílio para cima e desajudar quer dizer auxílio para baixo.
Expliquemo-nos: com toda a certeza, alguns dos que têm a coragem de me ler vivenciaram a árdua tarefa cometida às mulheres de ir buscar água à fonte/chafariz/poço. Não raro, traziam um cântaro assente numa molídia (rodilha, sogra) à cabeça, um caldeiro numa das mãos e um flho/a puxado pela outra mão. Uma verdadeira proeza de equilíbrio, Nas terras xêndricas, que eu conhecesse, só um homem ia ao chafariz e transportava o cântaro à cabeça, e, mesmo assim, amparava-o sempre com uma das mãos: era o Tonho Félix, filho de velha Lorpa, uma das patas galhanas não há muito referenciadas aqui no basa. Nanja as mulheres que não precisavam de qualquer amparo para transportarem o cântaro.
Era costume que nessas fontes colectivas existisse um baturel onde as mulheres pousavam o cântaro já cheio e, depois de ajustarem a molídia baixavam-se ligeiramente e, com um impulso elevavam-no para cima da cabeça e toca a andar. Mas se por ali houvesse outras mulheres, elas ajudavam-se umas às outras e era mais fácil a colocação do cântaro à cabeça.
Ora aqui está: para elevar o cântaro até à cabeça era uma ajuda, a questão põe-se agora quando, chegada a casa, era preciso tirar o cântaro para a cantareira ou outro pedestal que ficasse à mão de todos e relativamente baixo para que até as crianças lhe chegassem para se dessedentarem. Aí, a mulher carregada pedia a quem estivesse por perto; "desajuda-me aqui, se fazes favor". Não penseis, todavia, que é esta a única palavra que verifica esta "anomalia". Sirva de exemplo DESINFELIZ.
Vem este fraseado para poder questionar-(me/vos) sobre se a religião ajuda ou desajuda seja qual for o sentido que queirais dar a estes termos.
Do que não restam dúvidas é que a religião (seja ela qual for) é senhora de um poder cujos limites ninguém consegue descortinar. Enquanto mitómano e mitófilo o ser humano faz do melhor e do pior em nome da mesma divindade. Para mim tenho também que as práticas religiosas, sejam os ritos convencionais, sejam as crenças instantâneas e esporádicas, são uma espécie de negócio de troca: promete-se qualquer coisa à divindade ou a um dos seus mais próximos: a Virgem, anjos, santos,...) mas com o intuito de receber uma benesse qualquer, que, para os que crêem não está ao alcance de outros seres humanos. E tanto se pede para o bem como para o mal. Neste caso leva muitas vezes o nome de bruxaria. Mas lá vêm os quebra quebrantos e as ladainhas e jaculatórias, sempre com intervenção divinizada, para desfazer os enguiços. O mesmo para os chamados possessos...Por isso é que :"Mais vale quem Deus ajuda do que quem muito madruga."
A questão complexifica-se se formos avaliar a «cultura» religiosa de grande parte dos crentes. O próprio Kant acaba por secundar a razão à Fé: " é preciso substituir a razão pela crença"! Valha-nos, ao menos, Fernando Pessoa: «crer é morrer; pensar é duvidar».
Se perguntardes, atrevo-me a dizer, à maioria dos que se dizem cristãos, ou mesmo católicos se leram a Bíblia, ou parte significativa dela, a resposta irá ser um rotundo NÃO.
Se os confrontardes com os paradoxos da Fé, ou com o absurdo da Fé, como lhe chamou Kierkegaard, a resposta, invariavelmente será que foi assim que aprenderam e que sempre foi assim e eles acreditam que assim seja. Mainada.
Para não pensardes que falo por falar ficai-vos estes dados:
Uma sondagem feita em Gallup, E.U.A., por Robert Hinde e depois referida no livro dele mesmo sob o título Why Gods Persist, a ignorância revelada em matéria bíblica por gente educada em décadas recentes era tal que espanta qualquer um:75% dos católicos e protestantes não sabiam o nome de um único profeta do Antigo Testamento; mais de dois terços não sabiam quem tinha proferido o sermão da montanha; a grande maioria julgava que Moisés fora um dos doze apóstolos... e por aí fora.
A Bíblia não é, com toda a certeza um livro que se aconselhe a uma criança no intuito de uma boa formação moral. Repare-se que no Levítico 20 são merecedoras de pena de morte as seguintes ofensas: amaldiçoar os pais, cometer adultério, ter relações com a madrasta ou com a nora, a homossexualidade, desposar a mulher mais a filha, a bestialidade (aqui com o pormenor de matar também o pobre do bicho).
No Livro dos Números,15, os filhos de Israel encontram um homem no deserto a apanhar lenha no dia proibído. Levam-no e perguntam a Deus o que fazer com ele ...«Então o Senhor disse a Moisés: esse homem será morto. Toda a assembleia o apedrejará fora do acampamento. Assim se fez.
Afinal Deus ajuda ou desajuda? ambos ou nenhuma?
Deixai-me terminar com Blaise Pascal:"Os homens nunca fazem o mal tão completa e alegremente como quando o fazem por convicção religiosa".
Já me alonguei bastante. Logo cá voltaremos.

XXXXXXXXIIIIIIIIIIGGGGRRRRRRAAAAAAAAANNNNNNNDDDDDDDDDDDEEEEEEEEE

Desenho: Carlos Matos