sábado, agosto 18, 2012

A NOSSA FALADURA - CLXXXIII - AF(E)NÉDO


Marcel Proust, em “Em busca do tempo perdido”, que, confesso, nunca li na totalidade, realiza um notável exercício de memória de um tempo que ele perdera mas que reconstrói admiravelmente: o da sua infância. Claro que mais notável ainda é a sua capacidade criativa de o descrever, mas também é enfadonho e até doentio que esse passado lhe seja tão presente. É que, admito: são poucas e difusas as minhas memórias de infância. Mesmo sem o desejar, devo ter concebido e feito correr um programa de selecção dessas memórias, tão exigente nos critérios que só deixou algumas. E, mesmo que assim não fosse, reconheço humildemente a minha incapacidade de as reconstruir como Proust o fez. Tenho muitas dificuldades em encontrar aquele tempo, ou porque está perdido ou porque a minha memória o arquivou num dos seus cantos mais recônditos.

Todavia, tudo indica que subsiste uma relação da memória com o passado. O changoto já qui o declarou solenemente: a memória não encorrancha. Involuntariamente, resgatamos acontecimentos da infância e revivêmo-los, reconstruídos, na vida adulta. Por um processo complexo, o nosso passado está permanentemente a revisitar-nos, sem o chamarmos, ressuscitado por um cheiro, por um sabor, por uma imagem, por um som…
Agora mesmo, eis o que a minha memória foi represtinar: o velho Nicas, meu vizinho, cuja imagem mais forte o coloca dentro de um enorme pio (em boa verdade nem era muito grande, mas era essa a perspectiva do gaiato de 5 anos), ceroulas brancas com listas pretas finas longitudinais, arregaçadas ao máximo mal tapando as nalgas, marchando compassadamente no meio das uvas esmagadas; de vez em quando, agarrava no rodo e revolvia vigorosamente toda aquela massa meio líquida meio sólida da cor do que havia de vir a ser: de vinho.  Eu apareço à porta da loja, curioso, e ele:

- Anda cá ó roupinha afnéda qu’ê t’ensino a nadar aqui”.

Para além desta situação, noutras, com contornos difusos, não recriáveis, a minha memória regista que o epíteto de “roupinha afnéda” era-me bastas vezes aplicado. À sua maneira, o velho Nicas alimentou o meu auto-conceito de javarino que a idade, naturalmente, corrigiu.

Por essa época, também, o mesmo javarino tinha o privilégio de acordar ao som de fado de Coimbra. Nas manhãs mais amenas do Verão, dia novo de 7 horas, sem qualquer acompanhamento de guitarra, só com a sua tonitruante voz, Mnéixquim Carrêras plantava-se ali no vértice do Batoco em frente à minha casa e debitava, qual Luíz Goes:

O sol anda lá no céu
Tão contente atrás da lua
Assim minh’alma anda
De castigo atrás da tua

Mnéixquim Carrêras era uma figura invulgar numa pequena aldeia do interior profundo. Tinha o 5º ano (antigo, equivalente ao actual 9º) o que naquele tempo fazia dele uma das pessoas mais letradas da aldeia, vantagem que ele soube rentabilizar: toda a vida ganhou a vida a dar explicações. Décadas antes do ensino recorrente, o Carrêras foi pioneiro na educação de adultos. Todos os “cavalgaduras” que o professor José “tanganho” Paula de Campos não conseguia fazer passar no exigente exame da 4ª classe, todos os pastores, latoeiros, sapateiros, albardeiros que foram obrigados a trocar a escola pela “arte”, todos eles iam pedir ao Mnéichquim Carrêras, que a troco de umas moedas, os compensasse da falta de oportunidade ditada pelas contingências das suas vidas. Disso vivia.

O seu método não era muito distinto do que era utilizado no escola regular, salvo, talvez, as reguadas. Nem a exigência era menor: em vez de “cavalgadura” ele não hesitava em mimosear de “martelão” todo aquele que demorava a distinguir os advérbios dos adjectivos. A sala de aula era austera: uma pequena assoalhada, paredes toscamente caiadas de branco, piso de madeira carcomida, despida de qualquer mobiliário ou outro adorno a não ser uma espécie de carteira de escola, de pé alto, adaptada propositadamente para que o aluno se mantivesse em pé, estrategicamente colocada ao lado da única janela por onde entrava a luz. Com voz forte, a mesma com que entoava as baladas coimbrãs, ele passeava-se ruidosamente nas suas impecáveis botas de sola feitas à medida pelo sapateiro Guerrilhas, 5 protectores metálicos em cada uma, por detrás do aprendiz tentando que ele aprendesse os rudimentos, para a época, da gramática, da aritmética, da geografia (que neste tempo incluíam as colónias ultramarinas), da história de Portugal.

- Repete atrás de mim, rapaz: os reis de Portugal da Primeira Dinastia foram D. Afonso Henriques, o Conquistador; D. Sancho I, o Povoador, D. Afonso II, o Gordo, D. Sancho II, o Capelo, D. Afonso III, o Bolonhês, D. Dinis, o Lavrador, D. Afondo IV, o Bravo, D. Pedro I, o Justiceiro, D. Fernando, o Formoso.

Se ele não repetia af(e)nédo à segunda, lá vinha:

- martelão! martelão! martelão!

E o tratamento não fazia grande distinção entre o mancebo de 16 e o homem de 40 anos. Muita gentinha aqui aprendeu a ler e a escrever, outra tanta aqui apreendeu conhecimentos básicos mas essenciais para posteriores actividades noutras latitudes, mais lucrativas e se calhar menos rudes do que o pastoreio e demais trabalhos da lavoura – o movimento emigratório estava em crescendo no início daqueles anos sessenta.

Aos mais adiantados, obrigava a saber na ponta da lingua:

- Os minerais classificam-se segundo a sua dureza, do menos para o mais duro: talco, gesso, calcite, fluorite, apatite, feldspato, quartzo, topázio, corindo e diamante.

O fado de Coimbra aprendeu-o ele sem nunca ter posto os pés na cidade do Mondego. Machado Soares, Fernando Rolim, Luíz Goes e mesmo José Afonso eram sofregamente bebidos através da rádio Altitude que ele sintonizava no velho aparelho blaupunkt, aos sábados à tarde.

E nas manhãs de Verão lá comparecia ele na esquina do Batoco entoando, af(e)nédo quanto baste:

Fui ao Mondego lavar
As penas das minhas mágoas
Minhas mágoas eram negras
Negras ficaram as águas

Para um roupinha af(e)néda de 5 anos, era uma inusitada forma de acordar. E um luxo!

quarta-feira, agosto 08, 2012

A NOSSA FALADURA - CLXXXII - ACONDUTER

Nada, nem ninguém como as coisas de aldeia e as gentes de aldeia! Não sei se deverei falar em "bons tempos" aqueles em que vivi e, sobretudo, convivi na aldeia. Foi lá que aprendi muito da escola da vida. Poucos me ensinaram tanto como o velho Comandante, aquele avô severo, rude, áspero, bruto, na verdadeira acepção da palavra, que se gabava de nunca ter posto as mãos em cima dos filhos! Pudera! batia-lhes em pêlo com a bomba de borracha do vinho ou com o cinto pelo lado da fivela, quando não com as cordas de sobrecarga ou mesmo vergôntea de gesta ou arrocho de aperto.
Tito Lívio dizia de Aníbal Barca que mal dormia, pouco se alimentava, era de resistência invulgar, sempre o último a deitar-e e o primeiro a levantar-se, capaz das maiores façanhas, simultaneamente conselheiro e admoestador, capaz do elogio ou de uma sentença de morte que ele próptio executava, vigilante ímpar, passando furtivamente pelos sentinelas, verificando se dormiam ou se se mantinham despertos. O que fosse apanhado a dormir nunca mais acordava. O velho Comandante timha muito a ver com este famoso general Cartaginês, o primeiro que foi a atravessar os Alpes, ínvios até então, como conta Salústio repetido por Lhomond, ele, o seu exército e os elefantes. Foi obra: ir de Sagunto (Barcelona) até Cannas e derrotar os Romanos em casa. O velho Comandante era igual: por tal severidade a avó Isabel se findou cedo. Poucos aguentavam aquele ritmo: tanto trabalhava à canha como à direita, quer a cavar, a ceifar, a gadanhar a cortar, a podar,... Era um ambidextro, na verdadeira acepção. Sempre o primeiro a chegar ao trabalho e, se se tratava de trabalho onde pudesse adiantar, como na apanha da azeitona, por exemplo, era certo e sabido que quando os assalariados chegavam já tinham tudo montado: fato estendido, escada encostada, lume aceso e ele já no cimo da muda a gritar: CHOVA!CHOVA!. Era capaz de trabalhar de sol a sol, ir de noite a Espanha, no tempo da guerra civil, entregar vacas e estar na linha da frente para pegar ao trabalho logo cedo. Um fenómeno!
Cito, um tanto de cor, o retrato de Lívio que, sendo romano, nunca será muito probo relativamente a um cartaginês :" princeps proelium ibat, ultimus, conserto proelio, excedebat. Inhumana cruidelitas, perfidia plus quam punica, nihil veri, nihil sancti, nullum deum metus, nulla religio...".
Parcimonioso, mais que medieval, bastava-lhe um figo seco para aconduter uma refeição...
Fazendo aqui uma espécie de anacoluto convém esclarecer que não é raro, no lingujar popular a troca de sons, especialmente, no caso vertente, a troca do som E pelo A: em vez de assobiar dizem assobier, por mijar pronunciam mijer, por molhar preferem molher (as vogais finais devem ser abertas)... e por aí fora.
O nosso linguajar de hoje é alvo desta permuta de fonemas: em vez de a condutar, sai aconduter. ( leia-se ACONDUTÉR).
Que me lembre, apenas duas matanças aquele homem fez para casa. Não se pense que os porcos eram valentes; ao contrário... tal como o dono, eram magros, de cabelo ericedo (=eriçado), e de pequeno porte. Se nas outras matanças a refeição era uma festa, ali apenas se comia a meloreja, um prato de sopa de couve, mal aconduteda, fígado e soventre, bebia-se vinho por copos que mais pareciam dedais, lá aparecia uma cunca de queijo e "ala milhano" que se faz tarde!.
Raramente oferecia um copo a alguém e, se fosse o caso, nunca oferecia nada para aconduter.
 De facto, estranho que apenas conhecesse aquela casa iria com uma apreciação errada do que é uma típica casa de aldeia: junto do pipo se não havia, depressa aparecia um pão e o respectivo conduto, para acompanhar o copo: azeitonas, queijo, presunto, uns fritos de beringela, se fosse o tempo, ou, que mais não fosse, uma tora de toucinho salgado para fazer boca. Eram assim as casas de aldeia: sempre que se bebia tinha que se comer. Nunca se comia pão seco, sempre aparecia algo para aconduter. É esta a escola que eu pratico: alguém que me visite tem sempre pão e algo para aconduter. No velho Comandante não era assim.
Eu, enquanto neto, beneficiava de uma excepção: lá vinha o figo deco ou, raramente, um naco de pão com um queijo seco embrulhado em folha de botelha e guardado no arcaz da semente, "por mor de ficar macio".
 Agora que já vos matei a bicheza e vos trouxe um naco de prosa para aconduter, prometo voltar mais cedo para não vos desavezar...
XI GRANNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDEEEEEEE