sexta-feira, fevereiro 05, 2010

A NOSSA FALADURA - CXLIX - CAMPANITO

As marcas da antropogénese, ou seja, as progressivas mudanças que o pitecantropo sofreu, desde o aumento do perímetro cefálico, à oponência do polegar, passando pela famosa dialéctica de LEROI GOURHAN, que explicava a evolução a partir do momento em que o homem primitivo passou o peso do corpo para os pés e, consequentemente, a locomoção, que possibilitou a libertação da mão e a consequente feitura de instrumentos, o que depressa se manifestou numa maior e melhor capacidade de pensar e logo uma acção sobre a natureza mais conseguida, originando assim a cultura que ao longo dos tempos também foi evoluindo.
Convém assinalar que a cultura é algo de substantivo, ao contrário da civilização que é acessória e, portanto, adjectiva. Em rigor deve dizer-se que uma pessoa é culta e não que ela tem cultura. Já a civilização, essa é dispensável. Na verdade, não se pondo em causa a sua utilidade e simplicidade em termos tecnológicos e não só, a civilização não é necessária para a sobrevivência humana. Esta conclusão encontra eco na circunstância de que o importante é saber adaptar-se ao meio que o rodeia que permite ao homem ter resistido até hoje e não o facto de ter televisão e telemóvel...
O que é natural é naturalmente bom e o que é transformado pode ou não ser .
Todos sabemos que sempre se comeu queijo e chouriço e azeitonas e presunto e tantas outras iguarias, que nunca precisaram de condições exigentes que, hoje, técnicos, em regra insuficientemente preparados e esquecidos das suas origens, avaliam, exigem e impõem.
Todos os estudos, mesmo os encomendados pelas entidade superiores, apontam o caminho a seguir pelos portugueses: ater-se à sua originalidade produtiva tradicional e não submeter-se aos ditames europeus que uniformizam gostos e assim condicionam paladares.
Ainda podemos saborear a bela sardinha e o chicharro ao natural, mas, se calhar por pouco tempo e temos que passar a deglutir uns insípidos enlatados, em conservantes uniformes e universais, em vez de podermos conviver ao sabor do que a natureza nos proporciona, como aliás os nossos antanhos faziam e não foi por aí que morreram.
Lembro-me bem de dois caminhantes incansáveis que todas as quintas feiras iam da Aldeia dos xendros até á cidade da Covilhã com um macho carregado de ovos que compravam durante a semana e que para eles se reduzia de Sábado a Quarta: Joaquim Catrino e José Planeta. Catrino era longilíneo, chapéu clássico, sapato reluzente, amigo do tinto, andar elegante, corneta sonora e angarelas em ferro feitas pelo ti David, ferreiro que era no beco da Ribeira, angarelas em vime entançado... já Planeta era mais atarracado, chapéu redondo a imitar o de coco, jaqueta à meia haste e colete sempre com relógio cortebert, preso por corrente de prata com presilha dupla, à cautela, para não lhe cair, angarelas em pau e cesto de castanho. Não usava aparelho sonoro como Catrino para se anunciar, antes bradava com a sua voz, mais conhecida que os sustos do Tonho de Aldeia: Quem vende ovos? Quem vende ovos? Lá desciam as escadas aquelas que dos ovos faziam o pouco dinheiro com que geriam o governo da casa, já que a jorna dos respectivos, nem sempre lhes vinha parar à mão...
Encontrei o filho de Catrino não há muito num casamento a que ambos fomos em Alcobaça. Estava novo o Domingos Catrino, meio irmão do meu tio e pai do noivo Manuel Joaquim Catrino, já aposentado da P.S. P.. Há quanto tempo os não via...
Foi aí que recordámos, eu e o Domingos, aquelas aventuras de garotos quando os dois, por detrás do cemitério apanhávamos campanitos e com navalha afiada os limpávamos e construíamos bardos e cancelas, fazíamos cravelhas e tirós para carros de bois em miniatura, hastes para bandeiras que pregávamos com carapetos de silva e e até casebres rústicos e choças de pastor, tudo para embelezarmos o presépio de Natal, que ele, como sacristão e eu como acólito, todos os anos fazíamos, do lado da Epístola, na Igreja Matriz. Pedia meças aquele presépio com os nossos artefactos de campanito e mais uma gruta em cortiça e mantas de musgo que mais ninguém era capaz de tirar como nós da Serra da D. Maria ali para os lados do canchal, por detrás do depósito da àgua, ao alto de Aldeia...
Bons tempos, outros valores, outras tradições, outras culturas, outros entreténs. Era assim a vida de catraio novo. Se queria brincar tinha que fazer o brinquedo: não havia padrinho que oferecesse ou avô que cedesse ao pedido, menos ainda pais que pudessem satisfazer tais pedidos. Como eram valiosos aqueles brinquedos ! não os estragávamos, não! eram religiosamente guardados e para o outro ano aumentava-se a variedade. Orgulhosos, tal como Apeles, escutávamos vaidosos e embevecidos os pareceres dos que apreciavam o nosso presépio. Mais que as imagens de anjos e Reis magos, pastores, ovelhas, montes e lagos de papel de prata de chocolate, mais que tudo, o importante era que vissem os nossos bardos e pequenas estruturas de campanito que estrategicamente colocávamos no presépio, que era de todos, mas muito mais nosso...
Mais uma vez a habilidade manual desafiava a critividade da imaginação criadora e o pensamento divergente proporcionava novas soluções cada ano nunca se repetindo as imagens na totalidade. Sempre produzíamos coisas novas. Leroi Gourhan tinha razão.

É caso para dizer: ah CATRINO!

XXXXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIIII GGGGGGGGGGGRRRRRRAAAAAAANNNNDDDDEE