sábado, dezembro 27, 2008

A NOSSA FALA - CXXII - ALDRA

Freud tratou deste fenómeno de forma superior: o contínuo desejo de retorno ao ventre materno, ou, dito de outro modo, o retorno às origens: a Regressão. Tal como Homero no canto X da Ilíada, narra de forma única o mito do eterno retorno: essa eternidade constante mas sempre renovada. Todos os anos há Inverno, mas ele é cada ano outro e é nesse fluir que a vida ao morrer se renova. Afinal tudo começa onde acaba. O que nasce traz já consigo a morte. Morrer é reviver e aí está o cerne da eternidade.
A ideia de procurar a origem das palavras só faz sentido se for no intuito de descortinarmos o significado original. É na fonte que se encontra a pureza dos significados. Aí não é preciso depurar nada. Está tudo virgem, intocado, puro, límpido e cristalino.
Foi assim no comentário do Karraio ao escarrafoucedo e assim vai ser aqui. Vou regressar às origens como sempre faço: Freud com a regressão e o ciclicismo homérico acompanham-me.
Em tempos, quando tinha mais vagar, entretinha-me a brincar com muitos aspectos da aprendizagem por que ia passando. Foi assim que profanei o singelo e inimitável poema de Augusto Gil - A Balada da Neve - a que chamei Balada da Pinga e que era mais ou menos assim: Bebem leve, levemente/Como quem bebe por mim/Será vinho ou aguardente/Ginja não é certamente/ E a cerveja não se bebe assim./Fui ver: a pinga caía/Tinta e leve, tinta e fria/... e por aí adiante.
Foi também assim que me deu para brincar com a convergência e a divergência, a propósito da entrada das palavras na língua portuguesa. Em regra, diz-se, as palavras ou entram por via erudita ou por via popular. Assim: solitarium deu em português solitário, por via erudita e solteiro, por via popular. Tudo bem, mas não tem piada. A questão agora prendia-se com a palavra NAU, cujo étimo latino é NAVEM (acusativo do singular de navis-is). Então, saio-me assim : NAVE entrou por via espacial e NAU entrou por via marítima.
Vem isto a propósito da origem da palavra que hoje vos trago aqui. Esta veio de Cometa.
Zé Cometa era ajudante de carga no antigo serviço de correspondência das centrais de camionagem com a C.P., que por acaso era lá em casa. Cometa era um fraca chichas, homem aí de 1,60 de altura, esquelético, mas verguio e teso como vi poucos. Brincava com as sacas cheias de batatas e, às vezes, eu e ele punhamo-nos a ver a que distância conseguíamos lançar uma saca de 50 Kg da loja para a camioneta encostada à porta. A loja era curta. Não havia pai. Muitos lá foram mas só eu e Cometa ou Pereira (o motorista),outro bom amigo desses tempos fazíamos tal proeza. Por tudo e por nada, Cometa gritava ALDRA! a moda pegou e a xendrice agarrou a palavra e fê-la sua. Ainda hoje se ouve por lá. Veio mesmo de Cometa
A vedeta que hoje vos quero trazer, porém, é o Miguelito: figura mais que famosa, fogueteiro das festas com camião, sempre pronto para ajudar em funerais, procissões e outros eventos, mordomo quase perene do sr. S. Bartolomeu, leiloeiro, pedreiro, mineiro, tosquiador, lavrador, limpador, cortador de lenha, valdevinos e amigo de fazer rir o pessoal. Lembro-me bem de, quando ele trabalhava para o Alferes Rei, ser o grande animador dos Carnavais da Aldeia. Só por uma vez foi substituído e um dia logo vos conto como foi. Estou a vê-lo, qual Napoleão, montado numa mula, de espada brandida, dando notícia dos namoros escondidos que por lá se passavam. Corria a Aldeia toda como um arauto, anunciando o que se queria ocultar. Era tchapado o Miguelito.
Casado com Lurdes Lúcia, de vez em quando abalava-lhe sem dar cavaco e ia a ver delas. Chegou a ir para França sem lhe dizer nada.
Certo dia, depois de regressar de uma dessas suas viagens mirabolantes, prometeu à Lurdes que só vinha ao povo a beber um café e voltava logo para casa. A promessa fez ele, mas o cumprimento foi como os do governo. Esqueceu-se.
Lurdes, cansada de esperar, deitou-se. Miguelito foi para casa já madrugada dentro, meteu-se à sucapa na cama, Lurdes fingiu que não deu conta.
Na manhã seguinte: «oh, meu aldrabão, a que horas te deitaste onte, à noite? E o Miguel:" às dez; demorei-me um pouco porque incontrei o Changoto e estivemos a escrever uma carta prá França, por mor da Segurança Social. Se num acreditas, pergunta-lhe".
Miguelito tinha ideia de me preparar para a inculca mas Lurdes veio ao sabão, à loja:« Já viste: o mê Miiguel disse que entrou às dez em casa e que esteve contigo a escrever uma carta prá França, o aldrabão...Eu bem ouvi o relógio a bater só uma hora» " Ó ti Lurdes, atão tamém queria que o relógio batesse o zero" « És igual a ele, ALDRA!
Para todos vós os desejos de um Ano Novo com tudo o que mais desejardes; convém não esquecer que o último minuto de dois mil e oito tem mais um segundo, para acertar o movimento da terra com a hora atómica. Ela vai-se atrasando. é preciso dar-lhe mais tempo.
Não esquecer que o relógio não bate as zero horas...
XIIIIIIIIIIIIIIII EEEEEEEEEEEEEENNNNNNNOOOOOOORRRRRRRRRRRRRRMMMMMMMMEEEEEEEEE

segunda-feira, dezembro 22, 2008

VOTOS

A vida, como sabeis, está a modos que encrencada e há alturas em que uma pessoa se sente desacorçoada de todo. Tendes que ser azados cassenão ficais chapados. Tenteai as dificuldades comédado, não sejais taloubenas nem nhonhas, não cuideis que a galula é certa e andar só à gosmia também não é a atitude mais acertada. Se for preciso mostrar que tendes cafones, mostrai-os. E quando vos sentirdes assim mais tchoutchinhos, buêi umas p'chorras valentes e lêde o Baságueda para não encorranchardes . Mas ide dando inculcas.

O Changoto e o Karraio votaram. Por unanimidade e aclamação é-vos desejado um Feliz Natal e um Bom Ano de 2009.





Se acaso alguém estava com ideias de me oferecer uma prendinha de Natal e não sabe bem como me agradar, eu facilito: pode ser o dvd deste concerto de Natal.

quarta-feira, dezembro 17, 2008

A NOSSA FALA - CXXI - ESCARRAFO(U)CEDO

A vaidosice sempre foi característica dos seres vivos sexuados, quer machos quer fêmeas. Se bem que a Apostólica Romana a tenha colocado no rol da Preguiça, da Ira, da Inveja, da Gula, da Luxúria, da Avareza, a Vaidade ou Orgulho, mesmo na Idade Média e apesar das santas atrocidades cometidas pela Santa Inquisição, nem mesmo assim ela alguma vez se reduziu. Ao contrário, cada vez mais fermentou e no mundo de hoje a pedantice grassa por tudo quanto é sítio.
Lembro-me, lembro-me bem, de, por alturas da catequese para o Crisma, altura em que o bispo diocesano saía do seu opulento Paço, onde até se podia a gente pentear ao espelho dos azulejos, Clara Violas, Tonha Freira, Menina Irene, Menina Palufa, Joãozinho Bargão, ensinavam e repetidamente insistiam no significado deste Sacramento: Que seríamos soldados de N.S.J.C..
Chegado o dia, no lado Norte, a todo o cumprimento da Igreja, estenderam-se as mesas e as iguarias foram espalhadas por cima de toalhas alvas: bolinhos de toda a qualidade - borrachões, esquecidos, bolos de leite, de noz, de amêndoa, tartes e tortas, de buraco e fechados, pão de ló, e mais cascuréis (=coscorões), biscoitos, troncos, pratinhos com chouriço, presunto, queijo, azeitonas, galos no forno, coelhos, e até um perú... e sumos de capilé, groselha e limão, grades de pirolitos, gasosa castraleuca e prazeres, laranjada e muito leite de cabra e de vaca em cântaros de lata, tapados por guardanapo bordado à mão - Não havia A:S:A:E:.
Bebi leite com cacau naquele dia pela primeira vez. Ainda hoje bebo. Gosto muito de cacau com leite.
Era um regalo de ver: tudo muito bem arreado, assim mesmo como mandavam os trinques: avôs de surrobeco de jaqueta ao lado, relógio de bolso, preso por corrente de prata segura com nó cego na casa do botão do colete, avós com chita bem passadinha coma atilho na cintura, sandalinha de cabedal a reluzir, saiote a meia perna e algumas de avental "por mor de alguma nódoa", as mães, mais novas, já com saia de merca em feira e, algumas mesmo, com vestido feito pela ti Glória em fazenda garrida comprada na Troa, Tó ou João Robalo, e blusa ou casaquinho a "conduzir" =(condizer) com a farpela, todas (avós e mães) de lenço na cabeça, algumas já de preto, os pais, esses de botim cardado, fato feito por medida no Tó Pedro, chapéu de aba curta.
Chquim Camião e Miguelito estavam ao alto da estrada, à espera que o séquito episcopal lhes estivesse ao alcance da vista e , de repente, PUM,PUM;PUM,pum,pum, tau,pum: o bispo estava a chegar.
Só nessa altura é que os dois manos Chamiços, João Feijão, Domingos Abade e outros foram molhar as fúcias no caldeiro da água, lavar a cabeça com sabão de borra de azeite e mistura de petróleo, vestir-se à pressa e chegar ao adro esbaforidos, mas a horas de entrarem na fila comandada pelos respectivos professores e ao lado dos padrinhos competentes.
O cabelo dos Chamiços alumiava. Naquele dia de S. Bartolomeu, brilhante de Sol, a mistura do petróleo da lavadela com o suor da corrida deixou a cabeça dos dois irmãos a reluzir que nem pirilampos nas guardas da ponte em noite húmida.
Já de si aquele cabelo era desalinhado e depois cortado com a tesoura da costura com a ajuda de uma malga para ficar arredondado, dava aos Chamiços, de face encarnada, um aspecto escarrafoucedo. Menina Irene vê aqueles preparos e foi-se a eles, só o que o cheiro do petróleo era ainda intenso e mexer naquele cabelo era impensável para uma mão de alvura mais que neve. Como resolver o problema: sobrou para mim, está claro. Pediu-me para acender o fogão que havia de servir para amornar o leite ao fim da cerimónia, aqueci água, ela lavou a cabeça aos Chamiços com sabonete e saio-me: «O Mné furdas trouxe-me um perfume de Espanha, quer que o vá buscar?»Era Tabu, cheirava a uma légua, mas Menina Irene antes queria Tabu do que Petróleo. Untou a cabeça dos Chamiços que continuaram escarrafoucedos, mas cheirosos. Empestaram a igreja toda. Os velhos cá atrás comentavam:«quem será o do garoto que tomou banho em Tabu? Raios o afundem...»
D. Policarpo quis saber da nossa competência: " Quem me diz o que significa o Crisma? "Ao fim de algum tempo lá levantei a mão e a Clara Violas, catequista, ficou assim a modos com medo e "Vê lá se sabes?" "Diz lá meu menino! "e vou eu: «O Santo Sacramento do Crisma significa que agora nós pertencemos ao Exército da Santa Madre Igreja Católica Romana e somos soldados de Nosso Senhor Jesus Cristo! » " Muito bem! E como se chama aquele soldado que em vez de obedecer às ordens do comandante para avançar e atacar, vira as costas e foge?" Prontamente digo :« é um cagão , senhor bispo». Risada geral em toda a igreja e discussão pegada; Zé Borges acalma as hostes no coro:" o miúdo tem razão porque um cagão é um cagarela mas também pode ser um vaidoseco".
D. Policarpo lá me crismou, levei a bofetada do meu padrinho e fui-me ao cacau e ao presunto, ao queijo e aos cascuréis. Mas não fiquei ao lado do Chamiço de cabelo escarrafoucedo e cheio de TABU
XI GRANDE

sexta-feira, dezembro 12, 2008

A NOSSA FALA - CXX - (T)CHINCAR

O ícone da Justiça é, de si, polémico: olhos vendados, balança inclinada espada de gume lasso, jovem, são símbolos que podem ser lidos do lado avesso. De facto, ter os olhos fechados, pode indicar que a lei é igual para todos e que a justiça não privilegia ninguém, seja rico ou pobre, crente ou infiel, branco ou preto, nobre ou plebeu, mas também pode ser lido de outra forma: fecha os olhos à realidade, não liga a circunstancialismos decisivos, dogmatiza as suas conclusões, apodera-se da verdade e não quer saber de mais nada, breve, confunde verdade com veracidade ou verosimelhança; a balança inclinada também oferece leituras contraditórias, porque pode significar que, seja qual for a força dos argumentos, ela, a Justiça, há-de descortinar a verdade oculta e, qual divindade, "escreverá direito por linhas tortas"; ou, diferentemente, pode induzir a que se pense que, por muito que ajuíze, há-de sempre pender para um dos lados, já que a equidistância do fiel é perturbada pela inclinação dos pratos da balança; a espada de gume nada afiado pode querer dizer tudo menos que corta bem a direito e a juventude da donzela que a empunha, tal como à balança, não é obrigatório que signifique que a Justiça mesmo que seja aplicada tarde é sempre a justiça e nunca envelhece. Ora, é sabido que a experiência não deixa de ser boa conselheira e que só se obtém depois de longos anos de vida.
A Justiça, como a Beleza, a Bondade, a Caridade e outras virtudes são irrepresentáveis tal como não podemos representar um fotão, ou um Volt ou um Ampère, um Joule, etc. Podem ser traduzidos em valores matemáticos, em relações de ratio, mas nunca sabemos como são: sabemos o que valem.
O importante para nós não são as coisas em si mas o que elas valem. O valor da Justiça é mais importante do que a sua própria substância, e assim das outras formas ideais. É pela sua influência na nossa vida que nós as avaliamos.
O mais interessante no meio de tudo isto é que nós somos sempre insatisfeitos e não ficamos consolados com o que temos, isto é, apreciamos a estabilidade, a ordem, o equilíbrio, exigimos que se cumpram as regras que permitem a convivência pacífica, mas, a cada passo, achamos que "isto assim não está bem" e vai de, não raro, fazermos as nossas privadas regras de conduta que colidem com as geralmente aceites. Criamos o desequilíbrio, a desordem a instabilidade. É por isso que há guerra e crime e o resto que, se não existisse, dispensaria a necessidade da Justiça para corrigir a ofensa. A justiça vem sempre ao fim quando devia estar ao princípio. Atiramos:" é da mais elementar justiça que..." Só que a justiça não conhece o nosso elementar.
Não há muito tempo, um parlamentar afirmou que os animais não têm direitos. Aqui d'el rei que o homem não sabe o que diz, clamaram muitos pseudo defensores dos animais. Mas, a verdade é que muito antes de ele o ter dito já eu o pensava.
Quem dá e tira os direitos aos animais, somos nós. Afinal, criamos coelhos, galinhas, vacas, porcos, patos,...,pescamos, caçamos, fazemos trinta por uma linha aos animais e, ao fim, até os comemos. Invadimos-lhes os espaços, delimitamos-lhes os contornos, seleccionamos as gerações, limitamos a sua propagação...
Entre os muitos animais que tive, um me deixou saudades maiores: um pardal.
Apanhei-o caído do ninho, levei-o para casa, aqueci-o, fui à minhoca, fiz papa com gafanhotos esmagados com farelo, arranjei-lhe um espaço com cobertor para não ter frio, metia-lhe comida no bico, dava-lhe água com uma palhinha...O pardal cresceu e afeiçoou-se a mim: ia comigo para todo o lado, quando queria voava, mas voltava sempre para mim e nunca teve a porta da gaiola fechada. Essa foi a causa da sua morte: um gato comeu-o.
Ainda o vi a roer as últimas partes do meu Golifão...
Evidentemente que isto não podia ficar assim.... Arranjei modos de fintar o gato e um dia lá calhou: com uma pressão de ar (T)CHINQUEI-LHE um olho. Mandou um escrito ao ar, um grito de dor lancinante e eu«e se te torno a agarrar a jeito (T)CHINCO-TE o outro. »
À distância no tempo e com o passar dos anos, fui entendendo que a ordem da natureza é mesmo assim e que, se calhar eu devia ter deixado o passarinho à triste sina de ter caído do ninho .
É sempre assim: a morte de um pode ser a vida de muitos. Mas, no momento da emoção, a gente cega e chincar um olho ou dois a quem perturba a nossa felicidade, ainda que mesquinha, não faz diferença: tem que as pagar !
O ser humano é naturalmente mau: é o mal radical que já Kant propalou.
Bem se fazem, votam e aprovam Declarações Universais (passaram agora 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos) ! Vede só como vai o seu cumprimento...
Com esta vos deixo.
XI GGGGGGGGGGGGGGGGGRRRRRRRRRRRRRAAAAAAAAAAAANNDDDDDDDDDEEEEE

sexta-feira, dezembro 05, 2008

A NOSSA FALA - CXIX - (t)CHANCA

Não sei bem se já partilhei convosco, mas não faz mal se me repetir. O ocidente, onde vivemos, tem uma mão cheia de matrizes que determinam a nossa forma de ser ,estar e pensar e até agir, crer, procriar, tudo... Os livros incidem, na sua maioria em duas grandes matrizes, que afinal são três:a grega ou helénica e a judaico-cristã: a Bíblia, sempre a Bíblia, sem ou com Novo Testamento. Ineludível, indiscutível, irrebatível. Cá para mim, porém, não são só estas as grandes marcas teleonómicas que nos vinculam a uma forma específica de viver a vida. Como Camões quando viu o fogo de Santelmo -vi,claqramente visto -, também eu claramente vejo que não podemos deixar para trás, ou alijar para o lado, as influências marcantes dos celtas, (basta ver os enormes robles - que ainda os há - e que eles plantavam por cada filho varão; isso mesmo, o QUERCUS, o carvalho robusto, frondoso e duradouro; depois, dos romanos, esses dominadores imperiais que por aqui andaram, na Bética e na Lusitânia, com centro na vetusta Egitânia e, que mais não fora, nos deixaram, como legado, a língua com o seu SERMO VULGARIS ou PLEBEUS, e até com o ERUDITUS, para aqueles que sabem que Cícero teve essa alcunha, por causa de uma barruma que tinha mesmo na ponta do nariz e que se parecia com um chícharo. Daí que não ficasse apenas com o nome de Marcus Tulius e se distinguisse pelo Cícero. A sua eloquência era tal- basta ler as Verrinas, ou as Catilinárias, para ficarmos espantados com a capacidade investigatória e oratória, não sem Retórica da mais apurada, que ainda hoje, aqueles que nos explicam o significado das obras nos museus ou nas igrejas, ou..., se chamam cicerones. Mas não ficam por aqui as nossas matrizes: os árabes, esses soldados do profeta, de espada em forma de crescente e que o brazão de Penamacor ostenta, deixaram estigmas culturais que o tempo não mais apagará. Não vingou a língua, se bem que alguidares, almotolias, almofarizes, alcatruzes, alfinetes e outros al, para além das práticas no fabrico de azeite, vinho, sistemas de rega, tudo e ainda mais, nos chegou por via dos moiros. Os moiros, esses mesmos a quem os reis conquistaram os castelos até ao Algarve.
Sendo assim, a nossa cultura não é unívoca mas plurívoca. Invoca e evoca muitas matrizes.
Vem tudo isto a propósito de que andei a procurar, cá bem no fundo, donde derivaria etimologicamente este fonema TCHANCA, que hoje aqui vos trago. A verdade é que não encontro raíz que me pareça fidedigna e, olha, se errar também não vem daqui grande mal ao mundo. Tenho para mim que isto há-de ser celta.
O velho Corlha, soldado veterano, combateu em la Liz na primeira guerra mundial e foi dos poucos portugueses que escapou à chacina. Tinha mesmo uma pensão, dessa sua jornada por terras de França. Era crónico vê-lo sentado com outra figura castiça que ainda não constou neste memorando: o velho Domingos Argentino, emigrante lá pelas sulaméricas e agora vivendo dos rendimentos, especialista a amortalhar tabaco de onça, em mortalha da marca Cegonha (não há outro que se lhe oponha). Tinha uma bela casa com um dossel de vinha ferral por um corredor exterior até à porta onde é hoje a casa do Branquinho. Era das casas mais originais, com frescos pintados nas paredes de tom predominantemente azul.
O Corlha, coxeava devido a uma TCHANCA mal tenteada: contrabandista, como muitos, trazia um carrêgo para o Zé Aranhiço, já tinha passado a Baságueda e vinha já todo lampeiro a pensar que o dia estava ganho. Ouviu o tropel de cavalos e teve que acelerar. Ia a atravessar uma barroca, e, fosse pelo peso do carrêgo, ou por ter escorregado na altura do impulso, para, de uma TCHANCA o passar, bateu na outra margem e partiu o tornozelo. O grito de dor denunciou-o, perdeu o carrêgo, mas salvou a vida, que o mais certo era ficar ali sem se conseguir mexer, se a guarda fiscal não desse com ele. Depois ainda foi preso por ter envenenado o irmão; enfim, uma vida complicada a do nosso Corlha. Já não a de Domingos Argentino, esse, por essas dez aparecia ali pelo batoco, sentava-se no batorel do Agostinho Ratado, amortalhava cigarro atrás de cigarro, ia ao Chico ou ao Fatela escorropichar um copinho e voltava e era vê-lo a comentar quem ia ao chafariz.
Quem lhe fez a casa foram dois irmãos que vieram dos Escalos e casaram na Aldeia: Moisés e Tonho Pitincouro - os Pitincouros. Deles se dizia que sabiam tralha como um corno. Se alguém quisesse saber quantos litros levava uma pipa ou um poço ou o que quer que fosse e tivesse forma cilindrica, tinha que se socorrer deles. Eram artistas: faziam render o segredo. Eles sabiam o valor do PI. Nunca o revelaram. Os 3,14 eram exclusivos dos Pitincouros.
O Zé Chornico tinha aberto um poço, ali perto donde eram as poldras, num chão colado ao Zé Toco ( o Zé Mangueira, de quem se dizia que o tinha tão grande que dava duas voltas à perna e sobravam 15cm para mijar) e deu com um nascente dos lados do sol nascente -os melhores- e quis saber quantos litros levaria o poço para calcular se havia de afundar mais ou não.
Não tinha fita métrica, calculou a altura pelos degraus da escada e o diâmetro:«ponho aqui um barrote de travesso e espeto-lhe uma tábua por cima e meço isto à Tchanca» Depressa fez o que pensou, mas a Tchanca não dava certo com as bordas do poço e então chega-se aos Pitincouros e: « o mê poço tem de altura dezoito degraus de escada e de largura três tchancas dois palmos, uma mão de travessa e o mê tchapéu. Quantos litros poderá levar quando estiver rasinho?» Os Pitincouros calculam a altura com base nos 35 cm por degrau e cada Chanca a 1 metro,o palmo a 20 cm, a mão travessa a 10 e o chapéu a 15, e concluem: "Ó ti Zéi isso é bicho pra conter aí por volta de 22.500 litros". Vamos a beber um copinho que a água já me dá. Quando é que me podeis ir a forrar o poço"?
E assim, valendo-se do seu saber o valor de PI os Pitincouros lá ia arranjando trabalho. Sim, que eles eram pedreiros de profissão.
Novas xendrices para a semana.
XXXXXXXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIIIII GGGGGGGGGRRRRRRAAAANNNNNDDDDEEE

BANDA DE ALDEIA DE JOÃO PIRES




Naquele ano de 1908, a capital da Nação vivia dias agitados. A pontos de se ter morto um Rei, Carlos, Dom, o Primeiro. Em Aldeia de João Pires viviam-se igualmente dias agitados, mas por motivos bem mais prosaicos, mas não menos consequentes: fazia-se nascer uma Banda Filarmónica.

Há dias, festejou-se com pompa e circunstância, o centenário da sua fundação e o Baságueda aqui presta a sua homenagem a tão insigne Instituição: A União de Aldeia de João Pires, Sociedade Recreativa e Musical, de seu nome completo e oficial. A pompa e a circunstância incluíu a publicação do Livro “Banda Filarmónica de Aldeia de João Pires – Centenário”, da autoria de Lopes Marcelo, que reúne muitas das muitas histórias que cabem num século de história.


Contam-se duas, a primeira, protagonizada pelo primitivo impulsionador da Banda, o Pe José Maria, e recordada no dito Livro, remete para o episódio da efémera restauração da Monarquia em Aldeia de João Pires, em 1912; a segunda, referencia um outro grande homem da Banda: o Sargento “Jaimeca”.


1. Com a devida vénia, transcreve-se um pequeno extracto do texto de Lopes Marcelo:

“Na sequência da implantação da República em 1910, seguiu-se um período de agitação em que a perseguição às Ordens Religiosas e à Igreja Católica foi muito forte, com a alteração das funções dos Párocos resultante da Lei do Registo de Afonso Costa em 1911. Acresce que o Padre José Maria era um fervoroso adepto da monarquia e, em 1912, perante a notícia de que o movimento chefiado por Paiva Couceiro tinha restaurado a Monarquia no Norte, não se conteve e proclamou restaurada a Monarquia em Aldeia de João Pires em clima de festa e com foguetes. Quando a notícia chegou à guarnição militar aquartelada em Penamacor, logo a tropa saiu para repôr a ordem republicana…”

A história continua com a fuga do Pe José Maria, primeiro para Monsanto, com contornos rocambulescos, depois para a Espanha e daí para o Brasil. Anos mais tarde, em 1926, haveria de retomar as suas funções de Pároco de Aldeia de João Pires (e Aldeia do Bispo).


Fugas à parte, realça-se o episódio interessante da restauração da Monarquia pelo Pe José Maria, donde, comparativamente à grande maioria do resto do vastíssimo território português - nesta época incluíam-se as províncias ultramarinas -, Aldeia de João Pires tem mais tempo de Monarquia, ou, se se preferir, tem menos tempo de República.

2. Jaime Antunes Rei, mundialmente conhecido por Jaimeca, atingiu o posto de 1º Sargento do Exército Português, tendo dedicado parte da sua vida à Banda de Aldeia de João Pires, sobretudo a partir da aposentação em 1963, quando se fixou na sua aldeia natal. Localmente, também se referiam a ele como "sargento porqueiro" por via da criação de suínos que mantinha ali nas imediações da aldeia. O Changoto já nos fez antever, no post anterior, quão especialista ele era na arte de criar recos, a pontos de até ter pretendido registar a patente de uma nova raça: a ALJARPI. Os animais andavam soltos na sua propriedade, alimentando-se de tudo o que podiam encontrar, fossem bolotas ou criadilhas, preocupando-se Jaimeca, todavia, em lhes fornecer o complemento nas medidas que só ele sabia determinar, com as farinhas que ia comprar a Aldeia do Bispo, ao estabelecimento comercial dos progenitores destes dois que vos entretêm no Baságueda. Igualmente não prescindia da clássica vianda, composta de restos de comida e legumes vários, muita botelha, batata miúda, couves, tomate, enfim, todo o excedente da horta.


Antes de ter investido numa mobilette, seguramente por influência de algum emigrante em França, daquelas que possuíam pedais só para a pôr a trabalhar e depois andava sem mudanças, o seu meio de transporte por excelência era a bicicleta, quer para se deslocar a Aldeia do Bispo à farinha, quer para abastecer a pia dos seus tós. Cena característica era a do Jaimeca a transportar vários caldeiros de vianda enfiados pela asa numa vara assente no guiador da bicicleta, mais uma saca de ração no suporte traseiro. Um equilibrista, o Jaimeca. E sempre, mas sempre, com uma mola de roupa a apertar a parte exterior das calças, junto ao tornozelo, por via de não as sujar com a massa da corrente da bicicleta.


Numa das centenas de vezes que lhe vendi uma saca de 50 Kg de ração para porcos em crescimento, que ele acondicionou cuidadosamente no suporte traseiro, já ele tinha percorrido 100 metros estrada acima a caminho da sua Aldeia de João Pires, quando, ali junto à casa do Ti Julho Aspirante, lhe aconteceu um raro percalço que até o fez tombar. A cena resume-se em dois parágrafos:


Vinha a descer o T'Zé Branco, de aguilhão empinado assente no ombro, à frente da sua Junta mista composta pela vaca andorinha e da burranca freira maria, assim chamada por causa da lista branca na testa a contrastar com o escuro do resto do pêlo. A sair do quintal, vinha o jerico pardal do Aspirante que de imediato cheirou o cio da freira maria. O instinto animal do pardal não quis saber dos berros do Aspirante nem do aguilhão do Branco e vai de atirar as patas dianteiras para cima da asinina fêmea, firmemente determinado a doar-lhe a sua contribuição para a reprodução da espécie.


O rebuliço apanhou o nosso Jaimeca em cima da bicicleta, em equilibrio periclitante, não tendo conseguido evitar o estatelanço no alcatrão. Não ficou muito magoado o maestro músico, mas a saca da ração rachou ao meio espalhando a farinha para porcos em crescimento a toda a largura da via, mesmo à frente da vaca andorinha. Esta não se fez rogada a aproveitar a oferta, manjar raro para as sua beiças. Foram precisos algumas aguilhadas no costolado dos quadrúpedes, evidentemente acompanhados por vocabulário impróprio, mesmo para eles, por parte do T'Zé Branco, para repôr a ordem e a lei. Ajudei o Jaimeca a apanhar a farinha para uma nova saca e ele lá seguiu em direcção à aldeia dos cucos.



Aqui ficam expressos e registados os votos de longa vida à Banda Filarmónica de Aldeia de João Pires.