sexta-feira, dezembro 05, 2008

A NOSSA FALA - CXIX - (t)CHANCA

Não sei bem se já partilhei convosco, mas não faz mal se me repetir. O ocidente, onde vivemos, tem uma mão cheia de matrizes que determinam a nossa forma de ser ,estar e pensar e até agir, crer, procriar, tudo... Os livros incidem, na sua maioria em duas grandes matrizes, que afinal são três:a grega ou helénica e a judaico-cristã: a Bíblia, sempre a Bíblia, sem ou com Novo Testamento. Ineludível, indiscutível, irrebatível. Cá para mim, porém, não são só estas as grandes marcas teleonómicas que nos vinculam a uma forma específica de viver a vida. Como Camões quando viu o fogo de Santelmo -vi,claqramente visto -, também eu claramente vejo que não podemos deixar para trás, ou alijar para o lado, as influências marcantes dos celtas, (basta ver os enormes robles - que ainda os há - e que eles plantavam por cada filho varão; isso mesmo, o QUERCUS, o carvalho robusto, frondoso e duradouro; depois, dos romanos, esses dominadores imperiais que por aqui andaram, na Bética e na Lusitânia, com centro na vetusta Egitânia e, que mais não fora, nos deixaram, como legado, a língua com o seu SERMO VULGARIS ou PLEBEUS, e até com o ERUDITUS, para aqueles que sabem que Cícero teve essa alcunha, por causa de uma barruma que tinha mesmo na ponta do nariz e que se parecia com um chícharo. Daí que não ficasse apenas com o nome de Marcus Tulius e se distinguisse pelo Cícero. A sua eloquência era tal- basta ler as Verrinas, ou as Catilinárias, para ficarmos espantados com a capacidade investigatória e oratória, não sem Retórica da mais apurada, que ainda hoje, aqueles que nos explicam o significado das obras nos museus ou nas igrejas, ou..., se chamam cicerones. Mas não ficam por aqui as nossas matrizes: os árabes, esses soldados do profeta, de espada em forma de crescente e que o brazão de Penamacor ostenta, deixaram estigmas culturais que o tempo não mais apagará. Não vingou a língua, se bem que alguidares, almotolias, almofarizes, alcatruzes, alfinetes e outros al, para além das práticas no fabrico de azeite, vinho, sistemas de rega, tudo e ainda mais, nos chegou por via dos moiros. Os moiros, esses mesmos a quem os reis conquistaram os castelos até ao Algarve.
Sendo assim, a nossa cultura não é unívoca mas plurívoca. Invoca e evoca muitas matrizes.
Vem tudo isto a propósito de que andei a procurar, cá bem no fundo, donde derivaria etimologicamente este fonema TCHANCA, que hoje aqui vos trago. A verdade é que não encontro raíz que me pareça fidedigna e, olha, se errar também não vem daqui grande mal ao mundo. Tenho para mim que isto há-de ser celta.
O velho Corlha, soldado veterano, combateu em la Liz na primeira guerra mundial e foi dos poucos portugueses que escapou à chacina. Tinha mesmo uma pensão, dessa sua jornada por terras de França. Era crónico vê-lo sentado com outra figura castiça que ainda não constou neste memorando: o velho Domingos Argentino, emigrante lá pelas sulaméricas e agora vivendo dos rendimentos, especialista a amortalhar tabaco de onça, em mortalha da marca Cegonha (não há outro que se lhe oponha). Tinha uma bela casa com um dossel de vinha ferral por um corredor exterior até à porta onde é hoje a casa do Branquinho. Era das casas mais originais, com frescos pintados nas paredes de tom predominantemente azul.
O Corlha, coxeava devido a uma TCHANCA mal tenteada: contrabandista, como muitos, trazia um carrêgo para o Zé Aranhiço, já tinha passado a Baságueda e vinha já todo lampeiro a pensar que o dia estava ganho. Ouviu o tropel de cavalos e teve que acelerar. Ia a atravessar uma barroca, e, fosse pelo peso do carrêgo, ou por ter escorregado na altura do impulso, para, de uma TCHANCA o passar, bateu na outra margem e partiu o tornozelo. O grito de dor denunciou-o, perdeu o carrêgo, mas salvou a vida, que o mais certo era ficar ali sem se conseguir mexer, se a guarda fiscal não desse com ele. Depois ainda foi preso por ter envenenado o irmão; enfim, uma vida complicada a do nosso Corlha. Já não a de Domingos Argentino, esse, por essas dez aparecia ali pelo batoco, sentava-se no batorel do Agostinho Ratado, amortalhava cigarro atrás de cigarro, ia ao Chico ou ao Fatela escorropichar um copinho e voltava e era vê-lo a comentar quem ia ao chafariz.
Quem lhe fez a casa foram dois irmãos que vieram dos Escalos e casaram na Aldeia: Moisés e Tonho Pitincouro - os Pitincouros. Deles se dizia que sabiam tralha como um corno. Se alguém quisesse saber quantos litros levava uma pipa ou um poço ou o que quer que fosse e tivesse forma cilindrica, tinha que se socorrer deles. Eram artistas: faziam render o segredo. Eles sabiam o valor do PI. Nunca o revelaram. Os 3,14 eram exclusivos dos Pitincouros.
O Zé Chornico tinha aberto um poço, ali perto donde eram as poldras, num chão colado ao Zé Toco ( o Zé Mangueira, de quem se dizia que o tinha tão grande que dava duas voltas à perna e sobravam 15cm para mijar) e deu com um nascente dos lados do sol nascente -os melhores- e quis saber quantos litros levaria o poço para calcular se havia de afundar mais ou não.
Não tinha fita métrica, calculou a altura pelos degraus da escada e o diâmetro:«ponho aqui um barrote de travesso e espeto-lhe uma tábua por cima e meço isto à Tchanca» Depressa fez o que pensou, mas a Tchanca não dava certo com as bordas do poço e então chega-se aos Pitincouros e: « o mê poço tem de altura dezoito degraus de escada e de largura três tchancas dois palmos, uma mão de travessa e o mê tchapéu. Quantos litros poderá levar quando estiver rasinho?» Os Pitincouros calculam a altura com base nos 35 cm por degrau e cada Chanca a 1 metro,o palmo a 20 cm, a mão travessa a 10 e o chapéu a 15, e concluem: "Ó ti Zéi isso é bicho pra conter aí por volta de 22.500 litros". Vamos a beber um copinho que a água já me dá. Quando é que me podeis ir a forrar o poço"?
E assim, valendo-se do seu saber o valor de PI os Pitincouros lá ia arranjando trabalho. Sim, que eles eram pedreiros de profissão.
Novas xendrices para a semana.
XXXXXXXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIIIII GGGGGGGGGRRRRRRAAAANNNNNDDDDEEE

7 comentários:

Anónimo disse...

Boa tarde ."Descobri" este blog há uns meses e ainda não deu para o "escacabulhar"completamente.
Acabei de ler o post"Javarino"e, (posso provar o que digo),no que toca a fazer aquelas tiranias ao prof.Barbosa, o Mário não era o único.Para ele(prof. Barbosa) antes fosse!Parabéns aos autores.
A.Leitão

Anónimo disse...

Simplesmente delicioso!
Sabe tão bem ler algo tão apetitoso, vez em quando!
Bem Haja, Sr. Professor!

Anónimo disse...

Um dos aspectos que eu mais gosto nestes textos é a mistura do popular com o erudito. E este é um belo exemplar do que digo!!!

António Serrano disse...

Isto começa a (re)animar: 4 comentários é bom, mas isto merece muito mais. Gostei. Excelente. Obrigado!!!

Anónimo disse...

Correcção ao meu comentário anterior:escadabulhar e não escacabulhar.Aproveito para fazer minhas as palavras de alguns "comentadores" que incentivam a edição dos textos em livro.Para além dos termos engraçados tenho a realçar as histórias hilariantes associadas e,mais importante,a excelente forma de as contar.A.Leitão

Anónimo disse...

Concordo que seria interessante editar os textos, publicá-los em livro. Até me atrevia a uma sugestão: tendo a Câmara Municipal vindo a apoiar edições várias, repetidamente dos mesmos autores, que sendo do concelho escrevem sobre temas que de alguma maneira revestem interesse local, não seria curial que apostasse também numa edição dos post's do Baságueda?

Anónimo disse...

Exelente blog. Gostei do que li até agora