sexta-feira, dezembro 30, 2005

A NOSSA COMEDURA - III - BACALHAU À ALMA DUM RAIO

Tempos dum raio aqueles: uma pessoa levantava-se - NO VERÃO - noite escura, breu como alcatrão, acendia-se o lume para a cozedura do malhinho (feijão frade) , aguado quanto bastasse que o caminho era ainda longo e não se compadecia com os gases intestinais. O caminho era para andar em rancho," c'ossenão!": se queres ver o teu companheiro a andar, põe-te a cagar!
Assim fui eu, garoto ainda, mais a minha mãe - mulher ímpar, há pouco desaparecida do mundo dos conviventes, mas que perdura sempre na propagação dos que amadamente gerou e criou - caminho da serra da Raposa fazer um quinto. Aquilo era a doer! Não tanto para para mim que não entrava nas contas, e que, quando me apetecia largava o sacho da sacha (= monda) do milho, quando se aterrava por mor de , se chovesse, a água não lhe levar a terra e deixar a raíz ao sol exposta e logo secar.
Se o calor me apertava muito, vinha para a sombra dum abrinheiro de rainha Cláudia - não era grande sombra, mas sempre era melhor que a torreira do sol - , dava volta ao resto da merenda e rapava o que aparecesse.
Quando, já noite adiantada, chegávamos a casa, eu e a minha mãe, ela mais estafada do que eu, o que apetecia era um refresco de vinagre, água do cântaro e açúcar.
Tantas vezes fiz esta maravilha de gelado!
Ainda hoje gosto deste refresco. Tem é que ser com vinagre do verdadeiro! Tinto. Assim mesmo comédado.
Ora.... (e lá vem a estória... e, claro, a receita!)
Ainda muitos dos que nos lêem se hão-de lembrar que se criavam porcos para a matança no centro do povo. No ano em que o Karraio (= ingrumêncio .) nasceu - 1961, Outubro, o nosso bacorinho crescia ali no beco do Chico, numa furda, paredes meias com o velho Valente.
Minha mãe, já ia adiantada na gravidez e as ordens foram estas: " ficas cá, pedes a burra emprestada à avó, tiras o esterco ao porco e vais a descarregá-lo ao chão na leira do poço pequeno que é por causa de lá semearmos as batatas."
Pronto! fiquei e tirei o esterco.
Não penseis vós que era tarefa doce! Para um garoto espetar a forquilha no feto, cardido e cardado pelo patear do roncador, e acertar nas angarelas, era aventura hercúlea!
Não me levantei para as migas do feijão pequeno, mas foi pouco depois. Três vezes fui com a burra a descarregar o esterco!
Eram para aí obra das cinco da tarde quando desaguei a burra, a meti no palheiro e me fui lavar debaixo do caldeiro com um funil invertido, furado à laia de chuveiro, coisa que era um luxo para a época! Lavava o cabelo com petróleo para evitar o piolho e ficar reluzente. Até alumiava!
Disse cá para mim:" vou-me a fazer um refresco de vinagre e espeto-lhe uma sorna das valentes!". esta era a ideia...
Quando chego ao pé do fogão vejo umas aparas( Pelharancas) de bacalhau na água a dessalgar!
Tiro de cabeça!:
1 - cozem-se uns quantos olhos de couve da branca, sem sal
2 - enquanto a couve ferve, estalam-se uns valentes dentes de alho numa sertã funda
3 - Quando tiverem estalado tiro-os e boto para o mesmo azeite uma cebola às rodelas e deixo alourar bem
4 - tiro a pele e as espinhas ao bacalhau, lasco-o grosso e deito para a cebola já dourada. Abafo!
5 - abaixo lume e deixo cozer lentamente
6 - escorro as couves, espalho maneirinhas, a fim de perder mais depressa a água e arrefecer um chisco
7 - confirmo se o bacalhau já se tomou do azeite assim comédado. Envolvo bem.
8 - deito o alho que fora retirado, avivo o lume, deito os olhinhos da couve e mexo com a colher de pau.
9 - Tapo bem aí obra duns cinco minutos. Torno a envolver e abafo.
10 - salpico com vinagre do verdadeiro, deixo suar!
11 - papo tudo e arroto!

PS. - para quem quiser, pode, na altura em que deita o bacalhau para a cebola a aloirar, juntar umas batatinhas cortadas largas, às rodelas. Só depois de quase semi fritas /cozidas, deve acrescentar os olhos da couve.

Só vos digo: é a oitava maravilha do mundo!

Minha mãe é que não gostou muito desta minha desenvoltura, e : Ah!ALMA DUM RAIO!

domingo, dezembro 25, 2005

A NOSSA FALA - XL - ABOBRINHO

Dantes havia muitas eiras por essa aldeia e campos fora.
De luxo, era a da ti Natividade, ali mesmo atrás da igreja: toda em lage, com guardas inclinadas, também em cantaria, com uma área para aí de 80 metros quadrados. Mas, havia muitas outras: no ti Mné Guerra, no Césaro, no velho Cavalheiro e uma também bem jeitosa ali para o chão do Robalo onde vivia quase meia aldeia nos tempos idos: zé padre, tonho troncho, ambrósios, feijão, césaros, sabão, potes, menina aguércia, e logo depois, puta maluca, passa culpas, abades, rainhos, ferrenho - já a dar para o bacharel- . Viam-se todos nas matanças e, claro, nas malhas. A semente juntava-se numa eira, onde o acesso da malhadeira, que, ao tempo, tinha rodas de ferro e era traccionada por um tractor, não fosse muito complicado. Isto, quando havia quantidade que justificasse a máquina, como lhe chamavam, porque, muitas vezes, a malha era a mangoal e o mandador era, quase sempre, o padre zé.
Engraçado foi uma vez o professor Leitão que quis pôr uma mota velha a fazer andar a máquina... Faz lembrar a história do S. Luís nos Escalos de Baixo: num ano em que não chovia tiraram o Santo da capela e fizeram-lhe uma procissão a ver se as núvens apareciam. A procissão acabou mas a água não chegou. Vai daí, o papa-arroz sai-se com esta: ' se o santo não nos dá água, damos-lha nós a ele'. e ala! : tiraram o santo do andor e aventaram com ele para dentro do poço, ali pertinho da capela. E não é que depois começou a chover?!!!.
O mesmo com o professor Leitão: a mota não fez andar a malhadeira e, de castigo, levou-a para o poço que tinha no chão colado à ribeira, ali mesmo, pegado ao café do Cavalheiro, mesmo ao lado da ponte, e obrigou a mota a tirar água. Eu vi! E tirou mesmo: Fazia re(de)moinhos na pia de pedra e ainda enregueirei a água para os tomates que o professor tinha por debaixo de uma nogueira enorme que aí havia. Era habilidoso o professor Leitão. Parecia o inventor Pardal! Engenheiro era também o nosso querido Amandinho, filho do dito, que vinha todas as Segundas--Feiras a Castelo Branco, ainda a estrada era em MacAdame, no super famoso Réu-Réu-Tum-Tum, uma preciosidade duma arrastadeira, que pegava a manivela e/ou de empurrão e a canalha, entre a qual eu, subia toda para cima e aquilo não amelancava! Chegávamos a andar vinte em cima do réu réu tum.
A matrícula era AC-00-01. Nós até lhe chamávamos o Antes de Cristo por causa do AC.
Vim nele fazer o exame de admissão à Escola e ao Liceu a Castelo Branco.
Comigo, fazia exame o menino Zequinha, filho único do sr. Barbas, que tinha um armazém de solas e cabedais ali junto à Sé. Quando me viu tão cedo, antes da chegada da camioneta da carreira, perguntou-me como tinha ido: «vim no réu réu tum tum»."Isso o que é"? «É um carro antigo com eixos de pau»."tu és maluco! agora eixos de pau!" «É verdade!». Fizemos o exame escrito e antes de ir para o almoço diz-me o Zequinha: "onde é que está o carro"? Levei-o lá. Deitou-se no chão a apalpar o eixo, chegando mesmo a raspar com uma latinha: "puto de merda! bem me enganaste: os eixos são de ferro!" e eu: « não, não são! parecem! São de pau-ferro que vem do Brasil». O Zequinha foi para casa com esta e foi o fim da tourada.
Bem, mas o que nos trazia aqui é o abobrinho.
Passou-se (ou não, que interessa?) na eira do choupa, para os lados dos pinheiros: Julho no fim, calor de assar tordos ao meio dia.
Puta Maluca, Passa Culpas, Aguércia, velho Comandante (há quanto tempo não aparecia o meu velho avô!), Rainho, Bombo, Ambrósio, Proença, e, claro, o Choupa, tinham todos a semente, dum lado e do outro da eira, para a máquina entrar no meio das duas medas e a malha acontecer nos primeiros dias de Agosto. Era regra que ao S. Bartolomeu já tudo devia estar bem acadajado e era preciso pagar a côngrua ao sr. prior e a poia pelas barbas ao patanisca.
Era para ser!
Então não é que a 28 ( ou seria 29?) desse mês de Julho se alevanta um cabrão dum abobrinho que, com vento com uma força dum filho da puta, rodopiando sobre si mesmo, passa no meio das medas da semente e arranca tudo para o céu! molhos inteirinhos de semente, de grão bem grado, foram cair a mais de cem metros! Aqueles que se desprenderam dos nagalhos espalharam-se pelo astro e foi ver cair palha e mais palha por toda a zona, até mesmo na aldeia! Um prejuízo dum corno!
Tudo olhava para o céu incrédulo, inventavam-se justificações para o fenómeno, a ti Rosa Manata, fez uma reza com esconjura, em pratinho novo de esmalte, com azeite virgem e raminho de oliveira guardado, propositadamente para estas ocasiões, desde o Domingo de Ramos ; a velha Bate-Orelhas faz quatro figas atrás do cu, e o Zé Borges (figura incontornável, que um dia há-de ser visita aqui no nosso blogue) não foi de modas: «Isto foi obra dos cabrões dos espanhóis que se puseram todos ali na fronteira a assoprar para não deixarem para cá passar as núvens com água.»
Deve ser por causa disto que: "de Espanha nem bom vento, nem bom casamento".

segunda-feira, dezembro 19, 2005

A NOSSA FALA XXXIX - CAFONES

Desde garoto que simpatizo com a cooperação transfronteiriça. Do outro lado da fronteira eu via um mundo novo, uma espécie de mundo”civilizado” onde havia mais de tudo. Numa primeira fase, este tudo resumia-se a chumbo para a pressão de ar, caramelos e torrões de Alicante. Numa segunda fase o interesse estendeu-se às “chicas guapas”. Mais tarde havia de chegar à cultura propriamente dita - incluída a componente gastronómica, evidentemente -, mas só muito mais tarde.

Lembro-me de uma vez que eu, mais o Montanhaque e o Molezas, garotos ainda imberbes, fugimos aos velhos, providos de duas latas de atum, uma cebola, um saquinho de plástico com duas pitadas de sal e 5 tomates dos grandes para o almoço, e partimos de bicicleta à descoberta de Valverde del Fresno, (inconscientemente) imbuídos de espírito cooperante. O Montanhaque pedalou numa bicicleta, tipo último modelo antepassado da TT, com volante direito, o Molezas deslizou numa de corrida, levezinha como uma pena e eu, tive de me esforçar a dobrar para os acompanhar na velha pasteleira que roubei ao meu pai e que era pesada como um corno. Escusado será dizer que a amarela não foi minha, mas subi ao pódio na mesma.

Já havia Tratado de Roma, mas nada de Mercado Único, Espaço Schengen, e outras futurices. Vá lá! quer os Guardas Fiscais, quer os Carabineros não nos consideraram perigosos e deixaram-nos passar, contra entrega do Bilhete de Identidade, devolvido à volta. Não podiam eles adivinhar que o objectivo da nossa incursão em terras de Castela era mesmo o contrabando e estava relacionado com motivos “bélicos”: comprar chumbo para a pressão de ar. Para os ludibriar, acondicionariamos as caixas de chumbo junto ao pirilau, bem seguras pelas cuecas, tendo eles visto apenas os caramelos. Uma vitória estrondosa sobre as forças repressivas da liberdade de circulação de pessoas e bens, e da cooperação transfronteiriça. A preocupação no sucesso da missão impediu-nos de pedir um golo de água às autoridades, apesar da sede que nos matava. Daí que logo que saímos da sua vista, atirámo-nos ao primeiro poço que descobrimos. Era estreitinho, não havia burra (picota, cegonha) e a água estava a 1 metro da borda. Valeu uma lata de salsichas velha e dois atacadores atados um ao outro. Confirmada a potabilidade da água segundo o método do cuspo – cuspia-se para a água, se a saliva dispersava, era boa, se permanecia junta, não convinha beber), bebemos sofregamente, não nos importando nada com a cobra que correu a esconder-se no fundo quando nos sentiu.

Dois ou três anos mais tarde, haveria de ser em Valverde del Fresno que eu entraria, pela vez primeira, numa discoteca, daquelas comédado, globo espelhado no centro da pista de dança, música muito alta, fumos, jogos de luzes e... chicas guapissimas. Encostado ao balcão, com ar displicente e uma Aguilla na mão, ninguém desconfiou. O ar do rapaz era o de tipo batido naqueles ambientes. O único problema que havia tinha a ver com o horário de funcionamento da fronteira. Como encerrava entre a meia noite e as 8 da manhã, ou os cooperantes portugueses abandonavam o barulho das luzes por volta das 11 e meia da noite para estarem no rio torto um minuto antes da meia noite – o que, convenhamos, não dava jeito nenhum, sobretudo se a chica guapa também estava interessada na cooperação transfronteiriça – ou, então, só de manhã é que se poderia voltar a pisar território luso. Naquele tempo, sem telemóveis com roaming activado, a maioria dos pais portugueses não compreendiam o alcance da cooperação transfronteiriça.

E eu simpatizava mesmo muito com essa coisa da cooperação transfronteiriça. E tinha pena do meu avô, cuja experiência era bem mais dura do que a minha. “Naquele tempo”, repetia ele, “conhecia eu melhor os caminhos para a Espanha de noite do que agora os conheço de dia”. As histórias dele, no que toca ao tema da cooperação transfronteiriça, eram todas de contrabando, sempre à volta de carregos pesados, de café, sapatos, borracha, de andar toda a noite, à chuva e ao frio, sempre a fugir aos carabineros e aos guardas fiscais que lhes podiam confiscar a mercadoria ,etc, ou seja, a cooperação transfronteiriça do meu avô não incluía nem caramelos nem discotecas, muito menos chicas guapas. Felizmente, as coisas evoluem.

Pioneira nesta modalidade arcaica de cooperação transfronteiriça por via do contrabando era a MariPortas. Sim, uma mulher, dir-se-ia mesmo, uma mulherona. Em portunhol precisar-se-ia: uma mulher de CAFONES. Alta, pernas ligeiramente arqueadas, voz grossa e vocabulário viril, manteve-se sempre solteira mas, consta, com experiência. MariPortas era inseparável do seu cão, apropriadamente baptizado de Fiel, que alimentava a ovos estrelados. Para além da cabrada que pastoreava, Maria Portas dedicava-se igualmente ao contrabando e fazia ver a qualquer homem, no volume e peso do carrego, no andar ligeiro e até nas artes de contornar a vigilância das autoridades. Contam-se duas peripécias.

Um dos estratagemas habitualmente utilizados pela MariPortas era aplicado quando contrabandeava calçado. A “importação” era feita em duas viagens, na primeira só entravam alpargatas do pé esquerdo, completando-se o par na segunda viagem. Na hipótese de ser apanhada numa das vezes, a preocupação de MariPortas era mínima, porque sabia que, em leilão da mercadoria apreendida, só ela poderia estar interessada em comprar 50 alpargatas, todas do mesmo pé.

Outro estratagema igualmente digno de nota, destaca-se pela simplicidade. Mari Portas vinha sempre à frente a bater terreno. Se calhava ser apanhada, coisa rara, armava um espectáculo de gritaria e correria por entre codeços, estevas e azinheiras, obrigando os guardiões da fronteira a mobilizarem-se todos para a encurralarem e confiscarem o carrego. Enquanto ela jogava ao esconder e achar com os guardas fiscais, o grupo que trazia a soldo rodeava o perímetro e escapulia-se em segurança. E que trazia o carrego da MariPortas? Palha.

Esta mulher era de CAFONES.

quinta-feira, dezembro 15, 2005

A NOSSA COMEDURA - II - ARROZ DO OSSO DA SUÃ

Expliquemo-nos: o osso da suã é a quilha do peito de sua exª, a bacoreza. Quem já abriu um porco não tem dúvidas sobre a sua localização, quem já assistiu a uma abertura, quando por exemplo segura numa parte do tabuleiro para aparar as tripas, facilmente o situa, mas quem não teve estes privilégios precisa de saber o que seja este osso da suã. Não é raro que a malta lhe chame: osso da sevã. Se é verdade a analogia,quase sempre ouvida nas matanças, e que consiste no provérbio: "mata o teu porco e conhecerás o teu corpo", se é verdade esta analogia, dizia, então o osso da suã correstonde ao nosso esterno. Pior! dizem uns. Vamos aos trocos:Já ouvistes falar da lei da simetria? Ainda pior! bradam muitos. Então é assim: os egípcios tinham uma forma característica nas suas forma pictóricas e que deixaram gravadas para a posteridade em túmulos, templos e outros locais em que apresentavam o corpo de perfil e o rosto de frente ou então o rosto de perfil e o corpo de frente. Esta é a regra. Há, no entanto, uma estátua em madeira muito famosa, chamada "O ESCRIBA",que aparece totalmente de frente numa simetria perfeita: Uma linha imaginária que passe pelo nariz, esterno e umbigo divide a imagem em duas partes simetricamente iguais. Aqui está a lei da simetria. O esterno é então aquele osso onde, à frente no nosso corpo as costels entroncam e que assim fecham a cavidade toráxica onde, contente (julgo) bate o nosso coração. Forma assim uma couraça protectora para que o músculo que faz expandir o sangue não seja facilmente agredido.
No porco passa-se o mesmo (salvo seja). Alguns ainda lhe chamam o osso do crescimento exactamente porque é um tanto cartilagíneo, isto é, é menos rijo que os outros ossos das costelas a ponto de, com um pouco de força, um faca vulgar, o cortar. Quando se separa do resto das costelas, então, miga-se grosseiramente com um cutelo ou um machado.
Inicie-se agora a confecção:
Ingredientes: Osso da suã, uma cebola média finamente picada, 3/4 dentes de alho esborrachados, pimentada caseira ou, em alternativa, colorau, um chirrichichi de azeite, duas folhas de louro, arroz, de preferência vaporizado, vinho tinto de uva, água e sal se não se usar pimentada, um ramo de salsa, picante a gosto.
1- Depois de migado, melhor dito, partido aí com uns 5/6 cm de comprimento lançam-se os ossos para uma panela de ferro ou tacho também de ferro. É decisivo que seja de ferro ou, noutra boa hipótese, de barro.
2- deixe-se fritar um pouco ( cerca de 5-10 min.) na sua própria gordura, com o recipiente tapado.O lume não deve ser vivo mas também não pode ser mortiço. Convém vigiar e mexer frequentemente para não colar.
3- Deite-se a cebola picada, deixe-se esturgir um pouco e arreganhe-se com um pouco de água.
4- Quando a cebola estiver bem lourinha, deite-se a salsa mais o alho, o louro, mais um pouco de água e aguarde-se que quase evapore
5-Acrescente-se o vinho; envolva-se bem e deixe puxar um pouco. Verifique se a carne está quase comestível por forma a que quando o arroz cozer ela esteja macia
6 - deite-se a água a ferver necessária para o arroz, ( se usar arroz vaporizado, que indubitavelmente é o indicado, duas vezes e um quarto, chega) o picante se gostar, tempere agora com o azeite -pouco- e o colorau se não usou pimentada. Rectifique temperos.
7- deite-se finalmente o arroz; dê uma boa mexidela e deixe cozer.
8-passados 8 a 10 min., depois de ter levantado fervura, confira-se o paladar, teste-se o arroz a ver se já abriu; se não, aguarde-se mais um pouco, sempre com o recipiente tapado.
9- Deite-se para o recipiente onde se vai servir e ponha-se de imediato na mesa de forma que ainda quase borbulhe. O arroz tem que vir soltinho mas sem ser escorregadio (malandro)
10-quem quiser, pode facultar coentros picados que cada comensal usará como lhe aprouver.
NB. - Pode, nesta confecção de prato, juntar-se o coração migado em cubos. Faz um bom conjunto.
Sempre vos digo que se sair simétrico ao que eu faço, a malta lambe tudo até ao fim.

sexta-feira, dezembro 09, 2005

A NOSSA FALA XXXVIII - F(E)CÁ !

Júlio Aspirante ou também Julho Casqueiro, levantava-se à hora de almoço. Quando os outros vinham para casa almoçar, estava Julho a chegar a parelha de burros ao carro, sempre armado de fueiros. Nazaré, sua mulher, andava sempre a duzentos à hora e, se não trazia o cântaro da água à cabeça, certo e sabido que na molídia pousava um caldeiro para o qual apanhava à mão todos os cagalhões de burro que ficassen caídos na estrada:'que eram para os alfobres,'dizia. Duma vez tinham dois porcos a criar. Um era o da matança da casa e outro queriam vendê-lo. Assim, num segundo Sábado de Dezembro - faz agora anos - por esse meio-dia, Nazaré, à frente, com caldeirinho de lata com meia dúzia de grãos de milho e 10 bolotas e Júlio atrás do porquinho, preso com um baraço a uma pata traseira, de giesta na mão - a qual acenava para orientar a caminhada do porco para um lado ou para outro - saem do portão do quintal para ir à lameira tentar vender a nalguda.
Arranca Nazaré abanando o caldeirinho para meter barulho com o milho e com as bolotas: Fcá!,Fcá! Fcá! . E Julho :" rais a palissem, anda lá bonita, anda nalguda! e a porca: "Ronron,ronronronron", bem, uma orquestra afinada. Fcá,fcá,fcá, nalgudanalgudanalguda, ronc,ronc ronc: experimentai fazer tudo ao mesmo tempo e vereis a beleza da orquestração.
O animal sai bem e abanando a nalga lá ia estrada abaixo... Nisto, à curva do adro, aparece a camioneta da carreira (é a camioneta, não é o Toni Carreira) e, como é sabido, na aldeia, apesar de ser aquela que de todo o concelho mais largos tem, o povo está sempre no meio da estrada, a camioneta buzina com toda a força, que o sr. Fernando não era de modos, e "filha da puta! "grita Casqueiro ao ver a porca passar-lhe ao lado assustada com o som da buzina. Julho puxa o baraço mas o cordel rebentou. Nazaré, aflita, corre para a frente da porca e, ao querer fazer mais barulho com os ingredientes do caldeiro, aventou-os e a porca foi rapar para a valeta um resto de erva, mas já ia quase àquilo do velho argentino onde é agora o Branquinho. Julho vai por outro nagalho, Nazaré apanha as bolotas e os bagos do milho e o povo, solidário, habituado que está a estas peripécias, abre os braços e vai enxotando a porca para baixo outra vez na direcção da lameira. Nazaré e Julho praguejam à porfia e com uma cordita de nylon lá vai ele tentar laçar a pata da nalguda.
É preciso dizer que não indo os dois com fato de ver a Deus, enfim, lá levavam uma roupita mais coisa e tal, que sempre iam ao mercado, não é verdade?
A custo Nazaré põe o caldeirinho com a bolota na frente do focinho da nalguda e Julho lá consegue de novo atar a baraça à pata da porca.
Entre praguejos e comentários: «vá lá, vá lá, mesmo assim o homem teve sorte. A porca era mansa! vá lá,vá lá!» ...É neste entrementes que a porca unta o fatinho de Julho Aspirante: " só me faltava mais esta! puta da porca agora cagou-me a farda! raispartamnodiabo! Nazaré ficou para morrer:« já passa da uma e nós aqui. Ainda por cima agora o meu Julho tem que ir mudar de farda. Atão mas há-de vestir o quê? O que está na arca está tudo amarfanhado e outra roupa capaz não tem!» Raisparatamnodiabo! Lá vai ficar a porca mais um mês na furda.»
Nosso Fernando tinha acabado de cortar o cabelo ao chicó-rela e deita os olhos à porca: " eh! Nazarée! nem penses ir a vender a porca hoje ao mercado:« À uma já vais tarde, e à outra ela está barronda. Ninguém ta quer assim. » Nazaré pôs-se logo a fazer contas: " o nosso mercado de Janeiro calha cedo, vá lá vá lá! assim não passam as quatro luas para estar barronda outra vez". Vai logo Nosso Mnel: "porque é que a não chegas? Lévasa ali ao barraco do jaimelgas e aquilo é um instante! Sempre fazes algum com ela. O que está a pedir é mesmo um salto do barraco do Jaimelgas. É mau filho de puta: o gajo chega ao cimo das giestas e chama-o: barraco!barraco! no sei donde é que o cabrão aparece, mas logo se chega a nós a roncar. oh filho do diabo! a porca no sou eu!vai-te lá encostar a quem te fez as orelhas.´Digo-to eu, é mau filho de puta o barraco do jaimelgas. Leva cinquenta paus pelo salto mas aquilo vale a pena. Não falha e se falhar para o mês que vem tornas lá, o porco goza e não pagas nada ao jaimelgas. " E a Nazaré chorosa: "e onde é que tenho os cinquenta mil réis. Ia agora a vender a porquinha para poder comprar a farinha para amassar uns pãezinhos que nem isso há em casa pr'os meus garotos."
Aí é que ninguém apareceu para ajudar a Nazaré e mais o Julho!
Lá voltam, Nazaré , julho e a nalguda para a furda. Tocam de pôr os burros ao carro e, mesmo sem almoço, lá se vão para a Tapada, ele de vara à frente do carro e ela de caldeirinho à cabeça para ir apanhando os cagalhões de burro que fosse encontrando pelo caminho. Haveriam de trazer umas couvitas, cozê-las com um naco de toucinho do porco do ano anterior, comê-las sem pão e sem luz que não fosse a que emanava de dois toros de videira que tinham trazido e toca para a cama que debaixo das mantas está-se quente e poupa-se lenha. Os filhos ficavam ali um pouco mais até ao esmorecer completo da brasa. Depois, cama também, que descer até à Rosa só lhes traria mais frio e outro lume depois não tinham.
Eram outros natais!
Já não há F(e)cás nas aldeias, daqueles criados a vianda. Há uns suínos engordados à pressa na maioria dos casos.
Outros tempos!
Já não há Nazarés de caldeirinho com dez bolotas a meter barulho e a fazer ouvir o F(e)cá!,F(e)cá!, nem há Julhos com parelha de burros. Agora há tractores e rautau-taus, !
Outras paisagens!
Ficam-se as lembranças. É isto a eternidade. As coisas perduram enquanto as lembrarmos. A vida é a relembrança. A rememoração. Os filhos lembram os pais e estes os avós. É isto a eternidade. Não é o céu, nem o inferno nem nada. É apenas a memorização. Apenas!

quinta-feira, dezembro 08, 2005

Madeiro

Hoje apetece-me ser politicamente incorrecto.

O madeiro é das poucas “tradições”, que ainda mobilizam o povo, que acode em massa a assistir ao desfile nos dias 8 de Dezembro de todos os anos.

Em Penamacor, parece que sentem grande orgulho em ostentar o ceptro de maior madeiro do país, porque mobilizaram meia dúzia de retros, uma dúzia de tractores, uma dúzia de motoserras, para deitarem abaixo uma dúzia de sobreiras.

Nas aldeias, são um pouco mais comedidos, ficam-se pela metade.

Digo eu, sem mais rodeios:

Nos moldes actuais, é praticamente inexistente a ligação deste madeiro ao espírito religioso (e/ou até pagão) original.
Na perspectiva ecológica, é potencialmente um crime.

Sem rodeios nenhuns:

A tradição do madeiro deixou de o ser.