terça-feira, março 25, 2014

A NOSSA FALADURA - CCXXII - ÀS AT(E)(I)NÊNCIAS

Às atinências de que não me esqueço onde ponho as  chaves, confio na fidelidade da minha memória... O facto é que, como dizia o velho Comandante do meu avô: « a memória drome»! assim mesmo drome e não dorme. Dizia esse avô inesquecível, apesar de ser o Comandante do Inferno, velhaco como as cobras, que a memória tinha horas, como a água correr: « hades arreparar, uma noite calma que andes pelo campo, perto duma queda de água, que, de vez em quando, deixas de ouvir a cachoeira da água... ela continua a correr mas como corre a dormir num se ouve... Podes crer que a água drome...» Tal qual como a nossa memória. Ela sabe o que se passou, mas não é capaz de to pôr à frente dos olhos. Drome! E quanto mais te esforçares por te alembrar, menos t'alembra.»
 A verdade é que o velho Comandante tinha razão.
Vem isto a propósito de um texto que, faz tempo, escrevi, e que há muito procurava. Cumprindo um velho aforismo : «Quando encontras sem procurar é porque já procuraste muito sem encontrar». Encontrei-o finalmente. Como ainda gosto dele, ofereço-vo-lo, às atenências que também o aprecieis. Se não gostardes, pronto, tenho que me convencer que não se pode continuar a viver às atnências. Por exemplo, de que quem governa cumpra o diz que irá fazer... Mas aí já não me fio ...
O ponto tudo inicia e tudo acaba. Para tudo, ou quase tudo, há um ponto de partida e um ponto de chegada.
Ao longo da nossa vida andamos sempre à procura do nosso ponto:
A criança aproxima o livro o idoso afasta o texto…
O ponto é o elemento da recta, que mais não é que a sua infinitude e se fecharmos a recta, e juntarmos ao ponto outros dois, o ponto transforma-se em plano, já com superfície definida; não se esgota aqui o ponto, afinal, o volume é ainda a tridimensionalidade do ponto. Do plano passamos ao objecto.
Ocupamos, depois, um ponto no espaço, e o espaço está cheio de pontos: uns vazios, outros cheios, uns próximos outros longínquos: que é a Terra, afinal senão um minúsculo ponto no seio do Universo?
Este mesmo Universo começou por ser um ponto grande que, grávido de energia, explodiu e preencheu o que vemos e o que não vemos, dispersando-se por infinitos pontos.
É ainda o ponto que procuramos quando pretendemos a perfeição: a comida está óptima, quando estão no ponto, a confecção, o sal, a apresentação…
Quando entendemos que qualquer coisa está mesmo como nós queremos e até desejávamos dizemos que está em ponto rebuçado.
A verdade e a mentira são pontos de vista e a afinação dos instrumentos tem um ponto exacto; acertamos a nossa vida pelo ponto certo e quando queremos argumentar e contra-argumentar asseveramos que é aí mesmo, ou não, que bate o ponto.
A meta é um ponto de mira como o alvo e até os nossos desejos mais íntimos almejam alcançar um qualquer ponto. O nosso ponto.
É assim o artista: tudo começa num ponto, seja a primeira nota de uma sinfonia ou o primeiro risco de uma pintura, a primeira cinzelada na pedra da escultura, o primeiro corte na madeira da imagem, a primeira letra de um romance e é porque algo toca ao nosso ponto sensível que se torna significativo para nós. A adesão ou a repulsa e o afastamento do que sentimos mais não são que pontos da nossa sensibilidade.
Mais que sensação, que é bruta, a estética é sensibilidade, é percepção, porque inteligente.Tem outro ponto de interesse.
A arte gravita no mundo da emoção e portanto não tem ponto fixo, não tem regra, não precisa de ponto geométrico.
Arte é imaginação, criatividade, ponto fora do plano e por esse ponto tudo pode passar.
O ponto é, assim, a encruzilhada do infinito. O infinito reduz-se a um ponto.
O ponto é a perfeição, por isso o colocamos apenas no fim.
 O ponto não ocupa qualquer lugar.
O ponto para estar no ponto tem que estar no ponto certo.
Só quando tudo está acabado é que dizemos: ponto final!
Quando temos lacunas mnésicas é que mais apreciamos o valor do ponto: como no teatro, quem safa o actor é o ponto.
Até há pessoas que são mesmo um ponto.
Parece então que não há só um ponto, tantos são os pontos.
Chegamos a um ponto em que já não se tornava aconselhável continuar a bater no ponto … 
O estudante clama: vêm aí os pontos! e esses pontos não são para brincadeiras. São pontos que têm nós, que são pontos mais grossos e que muitas vezes decidem até que ponto podemos chegar.
Apesar de não pretendermos ter dado um nó neste ponto, apenas pretendíamos uma laçada, o facto é que é nesse ponto que bate o ponto.
Esperamos que ainda possamos deslaçar o laço e que o ponto sem nó venha até nós com novos pontos de vista,  nova vida, quem sabe num outro ponto.
Temos pessoas que, para nós, marcam pontos e por isso as colocamos no ponto mais alto.
É nesse ponto, o mais alto, que eu vos tenho. 
Sou mesmo um ponto, não sou?
XXXIIIIIIIIGGGGRRRRRAAAAAANNNNNNNNNNDDDDDDDDDEEEEE!

segunda-feira, março 03, 2014

A NOSSA FALADURA - CCXXI - CHARRINCA

Hoje deu-me para aqui. Quero a vossa cabeça a aquecer.  A ver se não charrinca quando for preciso pensar na vida a sério. E já faltou mais! Há que preparar. Senão depois, enferrujados como estamos charrincamos por todo o lado e não damos carreira direita. A ver se gostais desta prosa:
Vivemos num tempo em que quase não há tempo para ter tempo. Apesar das velocidades que a tecnologia nos possibilita a verdade é que passamos grande parte da nossa vida a protestar que não temos tempo.
Por isso vivemos num tempo sem tempo. A característica mor deste tempo é a efemeridade. Tudo é efémero e descartável: pessoas, situações, objectos, … Já nada é como era e a própria memória, essa nobre faculdade humana, está hoje tão empobrecida e esquecida que já não é estimulada.
Trocamos a memorização e a recordação pelo registo em artefactos.
O futuro será de Alzheimer a não ser que se arrepie caminho e voltemos a accionar a nossa faculdade de evocar e reconhecer.
Até parece – perdoe-se a delação - que  o novo acordo ortográfico também alinha por este diapasão: tiram tanta letra que desconfiguram o português e a nossa língua deixa de ser novilatina para ser novimulticultural. Perde a sua identidade e a sua vernaculidade. Penso que isto é também consequência deste tempo sem tempo: quantos menos letras escrevermos, mais depressa escrevemos e assim ganhamos o tempo que não temos e nos falta. Triste solução.
Por isso, aparecer neste tempo quem recuse o fast thinking, com a mesma veemência que eu recuso o fast food, alguém que parou para pensar, que não se afligiu em parecer fora de tempo, em ser desalinhado face à grande maioria, que come em pé e não saboreia calmamente a refeição, é tão estranho que até destoa.
É mesmo necessário parar para pensar! Exercitar aquela que é a dimensão mais elevada do ser humano: a sua capacidade de criar, de romper com o estabelecido, de desobedecer ao status quo, de subverter o dogma, de propor ousadias e de nos convidar a nós próprios também a exercitar o nosso pensamento.
O tempo hoje nem é local nem global: é glocal, e o facto de as coisas que não sabemos serem muitas mais do que as que sabemos, não nos deve preocupar sobremaneira. Afinal estamos, hoje por hoje, sempre mais perto do erro, da falibilidade, do que da segurança e da estabilidade. Já nada está certo a não ser a insegurança, ela mesma. Mais que nunca o velho efésio tinha razão: panta rei. Tudo flui, tudo passa naquela fugacidade do instante eterno. Estamos muito num agora e pouco num aqui.
A indefinição do espaço e a ausência de fronteira obriga-nos a um nova concepção do limite. Afinal vivemos no limite sem contornos, no ilimitado.
É assim que se entende que cada vez que dou uma volta e volto ao ponto de origem, já não volto como saí. O não-eu fichteano desnorteia o eu e a inconsciência sobrepõe-se ao consciente, nesta efemeridade permanente, em que o que é, é o que não é. 
O que é, é apenas o que é nosso:  a subjectividade de cada momento é que revitaliza a objectividade do que acontece.
Estamos longe das coordenadas cartesianas em que tudo tinha um quadrante e o ponto era entendível nesse espaço; «Já nada sói como soía», pregava, faz tempo, o nosso zarolho.
A educação, ela própria, esse motor que impulsiona o progresso, vive o dilema de ficar para trás a empurrar para a frente. Esta nova realidade surge tão relampejante que ofusca o simples observador e, imperioso é que tenhamos a necessária competência para releituras desta realidade que nos ultrapassa e à educação.
O passo é maior que a perna.
Já nada é paradigmático, único, fechado, sistémico. Temos que aprender a aprender e limparmos as nossas leituras, pejadas de viciações, que já não se enquadram nas padronizações em que enraizamos o nosso saber.
O mundo, hoje por hoje, é da mobilidade, da alterabilidade, do movediço, do polémico. Não mais uma razão arquitectónica , alicerçada em fundamentos tidos como inabaláveis.
Os dogmas são rebatidos e já nada é sagrado, tudo é, a cada momento, profanado.
É aqui que entra, impante, a necessidade de uma ética mínima.
Na nova educação não pode haver pretensões ao “no meu tempo é que era”.
Os valores mais tradicionais entraram também em decadência e é indispensável uma nova escatologia axiológica.
Estamos numa nova dimensão da ética: não já a fixa deontologia do chinês de Konigsberg, menos ainda o oportunismo utilitarista de Mill, que não dava carreira direita no que à felicidade dizia respeito, mas numa ética de outra dimensão, virada para os tempos hodiernos, com fulcro no homem e no seu tempo, numa idiossincrasia com o ambiente e percorrendo todos os campos da sua actividade, acentuando o enfoque numa educação ética, que proponha uma educação para os valores e para a cidadania, pois só esta, enfim, possibilitará a almejada felicidade ao homem, perante as mudanças produzidas pela sociedade actual.
Tempos outros foram aqueles que proporcionaram as éticas do equilíbrio, da ponderação, da temperança, da aurea mediocritas… Os de hoje têm inimigos muitos, desde o egoísmo, muitas vezes camuflado num altruísmo reversível, em que o gene egoísta nunca desaparece, ao relativismo cultural que, hipocritamente, diz que cada cultura deve ser respeitada nos seus valores, mas quer sempre impor os seus, renegando-se a si próprio e aos outros, caindo num individualismo que pode levar a uma total perversão do que deve ser a compostura humana e humanitária.
Vamos então situar o homem perante uma charneira onde nada está fechado e tudo está em aberto.
A contemporaneidade é acidental relativamente ao tempo, mas é essencial para a assumpção da condição humana no tempo.
A necessidade educativa e/ou ética parte das exigências de compromisso do sujeito responsável e activo em estar presente no presente, que, no fundo, é um tempo caracterizado pelas ideias e crises, pela globalização, pela informatização, pela ruptura e avanços das tecnologias nas diferentes áreas do saber.
Num tempo em que o homem tem dificuldade em segurar o presente a dimensão ética adquire foros de necessidade premente, não com pressupostos valorativos impostos, mas antes, como propostas que sejam vivenciais e atractivas, visando a obtenção da felicidade que se busca.
A epistemologia desvia-se para a ética e os cientistas quase emergem como novos deuses e o saber arrisca-se a arrastar-se para uma crise axiológica que mais não é do que uma crise antropológica.
A questão agrava-se se confirmarmos que vivemos numa sociedade de informação, quando a questão mais premente é se essa informação é boa e, mais ainda se os cidadãos estão e são bem informados.
É que, tanta informação torna-se em desinformação e o que se transmite pode resvalar para os não valores e o homem acaba por desaparecer no meio da massa, no interior do sistema.
É por isso que mais ressalta e emerge a importância do papel da escola para que o homem não desapareça.
Entramos numa nova era que abriu os campos do desespero como diz Toffler e não há alternativa senão que
“ é obrigatório falar de uma ética mínima, entendendo por ética o espaço de procura e articulação de formas válidas de convivências, e, por mínima, o conjunto de valores comuns a todos os homens e culturas.”
Volvamos ao começo para que o norte não nos fuja! Neste tempo de mudanças contínuas, não cabe já falar de uma profissão mas de profissões e a ética das profissões acarreta a responsabilidade de arcar com a missão de ser o pontífice entre a tradição do constante com a alterabilidade do contemporâneo, satisfazendo as cada vez mais sucessivas especialidades formativas que a sociedade exige.
Basta ver que, paradoxalmente, a sociedade da comunicação convida a que se trabalhe em casa, que cada um “case” com a sua máquina, que produza no isolamento.
Singular paradoxo!
Morin tem vindo a recuperar para a ribalta as ciências humanas e sociais e, mais radicalmente ainda, Bourdieu assinala o decisivo papel do homem, já que é dele que tudo parte e a ele tudo retorna – o inultrapassável mito do eterno retorno, -  mas agora numa dialéctica fermentada num campus de forças, que acrescenta sempre novidades, como Husserl exigia na alteração da posição radical.
Talvez não seja asneira colocarmo-nos off-side e metermos muito do que temos crido até agora entre parêntesis, para que lixiviados de crenças que reputamos de bem fundamentadas, não nos confrontemos com a simples constatação de Gettier: afinal o relógio do tempo que sempre bateu as horas certas e me servia de fuso para as minhas tarefas, naquele dia, avariou e eu cheguei tarde ao trabalho…
Cartesius queria a ordem, mas, ao que parece, mais vale a entropia. A boa ordem, não é a ordem do racionalismo, mas a do humanismo e esta nunca é igual e, mais importante que seguir um método que não se renova, melhor será uma aparente ausência de metodismo, jogando numa abertura a novidades que permitam transformar o método em plano e assim admitir, e até aconselhar, alterações ao momento, enfrentando as realidades com novas epistemologias e novas diálises.
Os jovens de hoje gravitam na era da tecla, do click, do instante, do eficaz, do empréstimo, do importa e do exporta, do actualizar e reformular, do formatar, não estão muito para se encharcar com informação despicienda, desde os sistemas das serras até às linhas de comboio e afluentes das duas margens dos rios.
Eles sabem -  e quanto eles sabem que os outros não sabem! -, eles sabem tirar do caos a ordem de que necessitam. Não é preciso forçar! Está-lhes na massa do sangue: a inteligência racional casada com a inteligência artificial dá campo vasto de manobra para as novas ciências cognitivas.
Não queiram, pois os velhos do Restelo querer andar para a frente a olhar para o retrovisor.