sexta-feira, dezembro 27, 2013

A NOSSA FALADURA - CCVII - ATALAMOCADO /ATALAMOUQUEDO

Não há povoação onde não haja um atalamocado. Normalmente vítima da mangação popular o atalamouquedo é normalmente brando de costumes e, se algumas vezes se enfurece, breve lhe passa, tanto mais que, se se mete com a canalha, acaba por perceber, apesar da sua relativa lentidão raciocinante, que fica sempre a perder. Era assim com Daniel, que não sendo um xendro, pois era cuco, passava a maior pare do tempo em terra xêndrica. Bastava que um garoto o visse para que, de repente, Daniel tivesse um cortejo de futebolista famoso a conceder autógrafos, a atazanar-lhe o tino. A princípio, corria contra o provocador, mas, a breve trecho, limitava-se a ameaças mais ou menos barulhentas e a acenos de cabeça, prometendo vingança próxima e ajuste de contas quando apanhasse algum sozinho.
Somos mesmo assim: quanto mais desgraçada for uma pessoa, mais a desgraçamos, achincalhando-a, numa espécie de valentia fálica, demonstrativa de algum poder. O cérebro humano mais primitivo é mesmo o reptiliano. Os mais velhos, às vezes, assistindo a cenas destas, lá iam admoestando a canalha, mas, ao mesmo tempo, riam-se a bandeiras despregadas com as patifarias a que assistiam e até faziam disso motivo de conversa, avaliando a esperteza da canalha. 
Figura típica da comunidade xêndrica, era Mné Gaguela: sempre agarrado à sua bengala, meio corcunda, muito gostava de se sentar no baturel do Chico ou do Fatela, puxar do livro de folhas Toro, procurar a onça de tabaco Duque e despejar o tabaquinho com  muito cuidado para que nada se desperdiçasse  na folha semicurva, arrecadava a onça e, com arte mais que muita, apertava o tabaco na mortalha, enrolava-o na ponta da unha, lambia-a no sentido do comprimento e segurava o cigarro no canto da boca, não sem antes ter humedecido toda a superfície labial com a língua a parecer um pincel. Puxava, então, da tocha, uma espécie de torcida feita com desperdícios, riscava um vidro na cabeça de um prego espetado numa tabuinha, baforava um pouco e aí estava a mecha a fumegar com que acendia a ponta do cigarro. Dava uma chupadela forte, soprava o fumo, traçava a perna, encostava-se à parede e regalava-se de prazer. De vez em quando lá vinha uma cuspidela mais forte, provocada por algum tabaco que se desprendia da mortalha, uma tosse de esgana, mas nada que impedisse o sublimado prazer duma valente fumarada. Gaguela também era meio atalamocado, mas tinha partes que demonstravam que no fim é que se via quem ria melhor. Nunca aventava as beonas: apagava-as cuidadosamente e com o bico de uma navalha, abria-a e despejava os restos não queimados para uma caixa de fósforos vazia. Assim fazia a reciclagem do tabaco.
Numa tarde de S.Bartolomeu assisti a uma cena com Gaguela: Um xendro que tinha vindo à festa do orago, para provocar o Gaguela, pôs-lhe à frente uma moeda de dez e outra de vinte cinco, perguntando ao Gaguela qual queria. Gaguela, lesto: quero a grande! Deu-lhe a moeda e foi a rir-se do Gaguela para um grupo próximo, todo pavão a contar a sua proeza. Outro, não acreditando fez o mesmo e o mesmo fez Gaguela. Acabou por ter ficado com cinco escudos enquanto todos se riam. Fui ter com Gaguela e disse-lhe:« O Mnel, então não vês que a moeda de vinte tostões, apesar de mais pequena, vale mais do dobro do que a de dez tostões que é muito maior?» E o Gaguela: "Tu num vês que assim já cá moram cinco mil réis. Se tivesse tirado a pequena só ficava com metade porque eles já não me tentavam outra vez". Bati-lhe com a mão no ombro e comentei: embrulha e manda para a tulha.
Gaguela não guardava só as suas beonas. Na ponta da bengala tinha um prego espetado na lateral com que apanhava outras pontas de cigarro que encontrasse no caminho. Principalmente as que fossem, como ele dizia" com cu de cortiça"=(filtro). Assim não tinha que se baixar para as apanhar. Às vezes, os atalamouquedos ensinam-nos muito.
Fazem-me lembrar um grande pensamento: Porque é que o mar é grande?- Porque é humilde! Não se importa de ficar a um nível abaixo dos rios.
O melhor 2014 para todos.
XXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIGGGGGGGRRRRRRRRRAAAAAANNNNNDDDDDEEEEEEEEE

quarta-feira, dezembro 11, 2013

A NOSSA FALADURA - CCVI - PAFONSO /PALONSO

Joãozinho Palufo era assim uma espécie de unto sem sal: não empurrava nem fazia força, não estava nem fazia míngua, não pinava nem saía de cima. Para os que não saibam o unto sem sal resumia-se a enxúdia de galinha velha, liberta de película, batida em tábua com martelo também ele de madeira, até fazer uma papa, que depois se embrulhava num papel de cartucho, daqueles onde antigamente se pesava o açúcar, o arroz, a massa e demais mercearia a retalho, e tinha utilidades várias. A mim, duma vez que espetei um carapeto de silva no calcanhar do pé esquerdo, que infectou, a minha avó aplicou-me o unto sem sal, fez um atilho com um trapo velho, mas limpo em volta do tornozelo e calcanhar e o facto é que o unto "puxou" o carapeto, sugou o pus da inflamação e deixou-me o pé com pele de bebé. Mainada!  Sem dor e absolutamente inócuo.
Palufo era um palonso: andar ligeirinho, passinho curto, meneava o corpo esguio, mãos sempre entrelaçadas, salvo se transportasse alguma coisa. Era o moço de recados da casa Bargão. Aviava tudo e dava bem conta do recado: mercearia, bacalhau, chita, carros de linha, media vinho e azeite a quem queria comprar na casa da Lameira, ia aos correios, registava cartas, escrevia cartas a muita gente que não sabia escrever e cantava como muito tenor com disco gravado nunca seria capaz. A sua voz era límpida e sonora, suave e bem timbrada, sempre afinado e obedecendo com rigor ao ritmo e aos momentos de entrada. Era mesmo um regalo ouvi-lo e agora que o Natal se aproxima, era por ele que a maioria seguia, já que Rosa Rei ia sempre adiantada e Albertina Molhana ia sempre atrasada. Não só cantava limpidamente, como falava de forma irrepreensível. 
As más línguas difamavam Palufo, mas nunca se vislumbrou a mínima situação  que pudesse dar azo a que pudessem ser confirmados comportamentos de que era suspeito...
Nada pior que cair na bocas do mundo.O povo tem sempre gente que espalha qualquer evento de uma forma mais rápida do que labareda em pasto de panojo no fim do Verão. Palufo sabia tudo o que se passava  na aldeia. Era sempre dos primeiros a noticiar qualquer acontecimento e quer Tecla quer Irene Paca ou Chicorrela, quais arautos régios, perdiam quase sempre para ele.
Ainda assim Palufo não difamava. Contava o que ouvia, mas não emitia opinião. Não era o que se poderia chamar de malino, como as linguareiras referenciadas.
Não sei se uma vez vos falei já do chamado mal radical. A doutrina é do "chinês de Konisgberg", como Nietzsche lhe chamou, o eminente Kant, e resume-se à tese de que, de sua natureza, o homem é velhaco. Por isso se impõe uma lei moral que o trave na sua natural tendência para o mal. Como se vê é doutrina no antípoda do velho Sócrates, que pregava que só ignorante do Bem fazia o Mal. Aqueles que soubessem o que era o Bem, nunca praticariam o mal. O problema do Mal é assunto mais que polémico e não é nestas pobres crónicas do Basa que ele pode ser escalpelado. Adianta-se ainda uma outra perspectiva. Foi uma querela dos Universais, bizantinices com que os medievais se entretinham  e também os modernos posteriormente, até que chegou à actualidade e foi reavivado, e de que maneira, por essa grande pensadora que foi Hannah Arendt, a aluna dilecta do filósofo da Floresta Negra, Martin Heidegger. Na verdade era um problema sério porque chocava com a crença dogmática de que Deus tudo tinha criado. Mas só por absurdo é que se poderia admitir que Deus tivesse criado o Mal. Seria absolutamente contra natura que tal possibilidade fosse admissível. Como apareceu então o Mal e se impôs que fossem necessários os Mandamentos e as leis morais? Só podia existir uma causa: o homem , ele mesmo. Defendia-se que Deus só podia criar a Perfeição, de acordo aliás, com a sua própria essência: de uma causa perfeita não podia sair o que quer que fosse imperfeito. Mas não se podia negar a existência do Mal e isto chocava com a defesa de que Deus tudo tinha criado. Argumentou-se então que Deus agiu na Perfeição: criou o homem livre, o que muito mais perfeito do que se o tivesse criado condicionado como aos outros seres da natureza que não têm possibilidade de optar por decidir responsavelmente entre várias opções. Estão condicionados ao que a natureza lhes confere e ponto final. O homem, esse, é incondicionadamente livre e absolutamente responsável pelas suas acções. Ele pode decidir  praticar o Mal em detrimento do Bem, apesar de o conhecer. Foi infinitamente mais perfeito que Deus tivesse criado o homem livre do que condicionado, possibilitando-lhe mesmo que o pudesse ofender, que pudesse defender apostasias e cometer sacrilégios. Assim, Deus deixava de ser o criador do mal e a responsabilidade da sua prática recaía totalmente sobre o homem. Só existe o Mal porque existe o homem.
Palufo nunca emitiu parecer sobre esta temática.
Bom Natal.!
XXXXXXXXXIIIIIIGGGGGGRRRRRRRRRAAAAAAAAAANNNNNNDDDDDDDEEEEEEEEEEE