terça-feira, maio 30, 2006

A NOSSA FALA -LVII -ACADEJA

Já andáveis com saudades! Todos temos na vida momentos em que o lazer e/ou o prazer tem que ficar adiado. Foi o caso.
Em tempos num encontro com Fernando Namora a que tive a oportunidade de assistir, explicou ele que já tinha todo o livro escrito, faltando-lhe apenas a primeira frase e o título. A estória passava-se no Alentejo, mais concretamente em Pavia, e ele resolveu deslocar-se à vila para ver se se inspirava. Contou que não demorou mais de um minuto a arranjar a primeira frase e título: O livro é "O Trigo e o Joio" e a primeira frase:" a vila é uma rua". Nem mais. Podeis confirmar.
De repente, também me transpus para a curva do adro da nossa Igreja (que bem precisa de umas obras e, pelo menos, das paredes limpas e dos vidros substituídos, e....).
Olhei para cima na direcção de Aldeia de João Pires, e que vi eu? A aldeia como era quando eu era garoto.
Não havia café da Rosa, a casa estava a cair e o Zé Augusto é que a reconstruiu, ao lado onde é agora a casa do Chinchas, era a casa da velha Mona, cuja loja estava arrendada ao Fatela e era onde ele tinha o sal para as salgadeiras e outras drogas que não podia ter na tasca. Lá dentro tinha um poço onde eu ainda refresquei muita laranjada Cristalina e alguma cerveja, para além de uns garrafõezitos de vinho bem arrolhados. O largo, em frente, era terra batida com o talho do ti Zé Rolo e a tasca, na perpendicular a casa de alferes Rei, o homem das festas populares, ao lado da casa do Clube Fernão Lopes que tinha no r/c a barbearia, primeiro do sr. Joaquim Vicente e depois do Domingos Patanisca e Zé Maroco e, à ponta, a tasca do Zé Júlio.
Regressando à estrada -afinal a aldeia é uma rua, como dizia o Namora - passei pela casa da Conceição do Trem que vendia desde chita da tabela até bacalhau corrente e do graúdo, a tasca do fatela, o quintal do chquim pardalinho e menina aguércia onde se comia arroz de manjerico, e logo o do Zé Geadas hoje do Antonino. Em frente a tasca do Chico Miguel que tinha, pasme-se, quatro furdas de porcos coladinhas às escadas que dão, ainda hoje, acesso ao primeiro andar da casa e ao pátio, lá por cima. Logo após, o Tó Robalo e o largo do batoco com a paragem das camionetas. A casa do Carradas, hoje café, era da ti Antónia Costa e tinha por baixo o porco e a burra. Assim mesmo. A da esquina, da Pragana, tinha também um burro e na escadaria de acesso havia um buraco onde estavam as galinhas que andavam livremente pela rua. De vez em quando um carro passava e depenava logo metade da pita. Essa casa do Carradas tinha um balcão alto com laje no cima onde se fazia a descamisa do milho até às tantas. À esquerda ia-se para o cavacal e à direita para o outeiro. O largo do Batoco, onde agora está a sede do tribunal da má língua, tinha uma poça de água ao canto, por detrás da casa, onde o povo embacelava vides. A história deste baldio e da sua "requisição popular" ainda um dia aqui há-de ser contada. As galinhas = pitas andavam livremente por ali e nós jogávamos o pião, a bilharda, o pinoco, o malhão = burro, a esconder e a achar, ao fito, à raioula, ao espeta,... Duma vez ao filho do Zé Pantelhão, o Zé Inácio, que está em França, furei eu a bota com o ferro aguçado pelo ti Mné ferreiro, que lhe deixei o pé pregado. Levei uma malha.
À tarde, era ver as Gornhatas, a Espeta Figos, a Surreição, a mulher do Calça Defuntos, a Tonha Costa, a Nicas e as mais que por moravam por perto, vindas da rega da horta, ali chegavam e«gacha, gacha, gacha, gacha, !pnina, pnina, pnina, pipipipipi...Não sei como, mas as galinhas lá acudiam ao chamamento e estendiam uma passadeira da boca do poleiro até ao chão e as galinhas lá seguiam atrás delas, para o descanso nocturno. Era a ACADEJA.
Quando a semente proveniente das eiras era lançada para os arcazes era a Acadeja. Se te pediam para chegares para perto de quem pedia um objecto distante, do tipo: "ACADEJA-ME aí o foição! era ainda a acadeja. Se te pediam para esconderes o sacho no segundo rego da leira do feijão verde era :"Não te esqueças de acadejar o sacho no rego".
Como ficais agora cientes, esta palavra era polissémica. Maináda!
Mas a estrada continuava: o fechamento do largo da paragem das camionetas era feito pela casa dos pais dos que aqui escrevem e, seguindo acima, vinha o João rela e o João robalo com capoeira e coelheira mesmo ao lado, chegadinhos à oliveira grande que já não o é e que tem a ver com o nosso pratitamem. Em frente, quintal e casa de Julho Casqueiro ou Aspirante, Chico Rolo, Maria Esteves, à esquerda, quintal do Ribeiro e casa do sr Brigadeiro, hoje de nosso Fernando, com a horta da madrinha Angelina e casa do velho Argentino, estrada das Águas, quintais do Carradas e do regedor primitivo, palácio do tenente Birra em frente ao Chico Sarapião e chquim Área..Galinhas por todo o lado e à tarde lá vinham as mulheres, Tecla incluída, mulher do ti Mnel Ferreiro, artista maior de relojoaria e ajuste de aros em rodas de carroças e carros de bois, e: "Pnina, pnina, pnina, gachagacha, gachagacha! Todas acadejavam as suas pitinhas, não raro sem lhes meterem o dedo a ver se o ovo do dia seguinte já vinha a caminho...
Chegamos à curva das antigas escolas, um enorme sobreiro, o forno colectivo, o quintal e casa do professor Tanganho e D. Carminda frente ao Ferro Velho ou Forelho, Zé Verniz, e grande Celestino, paredes meias com o ti João Toscano e Penajóia. Era assim a estrada da nossa aldeia.
Havia apenas duas pessoas que faziam desviar a malta da estrada: Padre Zé Pedro, no seu ânglia e Dr. Landeiro no seu Peugeot. Aí o grito não era ACADEJA, mas ARREDA!ARREDA!ARREDA!
Outro dia logo vos digo como era a estrada do adro para a vila!
Hoje ficamos com este jogo, mas não resisto a que, como estamos em tempo de pesca, vos dediqueis a comer, comédado, uns peixinhos de água doce:
primeiro pescá-los, não destripar nem escamar, acender um bom borralho de esteva ou giesta, queimar a grelha, arranjar uma plangana com água da ribeira onde o peixe se pescou, salgar essa água a gosto, depois um pratinho onde está um molho feito de alho esmagado à bruta, azeite e vinagre.
Eis a sucessão:
1 - aventa-se com o peixe para a grelha, se cair para o borralho não faz mal
2 - vira-se para assar dos dois lados
3 - tira-se com uma sovina
4 - atira-se para a água salgada
5 - recolhe-se e passa pelo prato do molho
6 - põe-se em cima da fatia do pão
7 - papa-se.
Se verificardes bem, aí ao quinto peixe, a água fica quente e o sabor do peixe melhorará substancialmente.
Vantagens: a carne do peixe solta-se das espinhas, toma-se convenientemente do sabor, saboreia-se como pertence, não se suja mais louça - a não ser um copo se não quiserdes beber da borracha ou directamente da garrafa - .
Experimentai!
Ensinamentos de velho, que comigo, acadejou muito peixe na barriguinha.
UM XXXXXIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII!

quinta-feira, maio 18, 2006

A NOSSA FALA - LVI - CARCHANTADA

Ouso dizer, sem receio de represálias, que o EX-LIBRIS da nossa aldeia podia e DEVIA SER o Lagar da Lameira.
Quase me nasceram lá os dentes: se não os de leite, pelo menos os definitivos. Com toda a certeza.
Aquele lagar de três varas era um dos três que moíam na aldeia. Para além desse havia o da D.Carminda, ali mesmo onde hoje é a casa do Roupinha Afinéda, acima da casa dos Soalheiros, frente com a casa do professor Marcelo e da ti Catrina Casaca, velhaca como as cobras. Nosso Fernando trabalhou lá um bom par de anos. Havia ainda a FÁBRICA do professor Leitão, a única já electrificada com moinhos de pedra a rodarem sobre superfície metálica e prensas para a espremedura. O lagar da lameira e o da D. Carminda eram integralmente manuais ( se bem que este trabalhasse às vezes com motor Diesel) e a moagem era feita por juntas de bois.
Dediquemo-nos ao da Lameira, que foi aí que eu privei com os lagareiros. Ainda recordo alguns: os velhos Menas, uma família inteira, o velho Manuel, o Chico de andar apressado. Moravam ali a meio da lagariça, paredes meias com a minha bisavó paterna, Isabel, perenamente descalça, pisava silvas como nós andamos em cima de azulejos. Era a mãe do meu avô que dizia que nunca tinha conhecido o pai. Por causa disso não vamos culpar a minha "DESAVÓ". Ensinou-me ainda muita coisa, sobretudo em matéria de ervas de campo e outras que tais: sabeis o que é o LENTICÃO? e o MIJACÃO? sequer ouvistes falar no CU DE GALO, fruto comestível, agre e doce, que ainda hoje "rabusco" por essas baixas vinhateiras? sabeis? Eu sei. A minha DESAVÓ ensinou-me e eu aprendi. Não sou como aquele velho professor que se queixava do ensino ministrado nas faculdades... Instado sobre que dizer da sua aprendizagem nessas mesmas escolas sai-se airosamente com esta: "eles ensinaram-me mal, mas eu aprendi bem". MAINADA!
Assim se passou comigo.
Outros mais recentes que felizmente ainda pisam as ruas de Aldeia- O Zé Lopes, rapaz do dia de Karraio, o Tonho Mota, que já abalou para a Tapada dos calados, o Tonho Lopes, irmão de Zéi, e claro, o inefável Alberto, senhor do Galante, boi de cobrição, que entrou no enredo do desacorçoado.
Voltemos ao lagar senão ainda me dais alguma CARCHANTADA porque escrevi um título e vadio por outras paragens.
O edifício, na sua estrutura base, pelo menos visto de fora ainda está em condições razoáveis e quase um quadrado perfeito. Entrava-se nele por um portão de lata pintado com um preto que mais parecia alcatrão, e dum lado e doutro havia um telheiro coberto, sendo que o da direita servia para armazenar a lenha que o CHAMIÇO garantia quase todos os anos, e só depois, mesmo ao lado do pocinho da água é que se entrava no lagar propriamente dito, por uma porta robusta de duas folhas. Estava sempre acessível durante a safra. Lá dentro havia dois compartimentos: o da direita tinha o pio onde os bois de Alberto moíam os "bifinhos de caroço", a manjedoira e mais ainda uma tarimba onde Beto dormia e ressonava; o lado esquerdo tinha um desnivelado onde os grandes trabalhos eram feitos: enchimento e escaldamento das ceiras; a massa era trazida do pio em gamelas de lata com duas asas que se enchiam à pazada, e onde se situava também a caldeira. A massa era espremida por sistema de varas: enormes troncos de sobreiro que acabavam num fuso com chave, tudo em madeira, dos quais se suspendiam enormes pedras que se levantavvam por meio de uma tranca que fazia rodar o fuso na chave e, assim, permitia maior aperto. O azeite corria directamente para as tarefas (enormes potes de barro) encastradas no granito. A técnica de depuração era o decante, pelo que a TAREFA que ficava mais acima tinha uma torneira de descarga que o lagareiro abria e o azinagre, às vezes com algum azeite envolvido, corria para o INFERNO, ao canto, o qual era periodicamente aliviado para a ribeira que passa mesmo ao lado. Ao canto esquerdo mais perto da porta ficava o canto do bagaço, que o velho Alcides barrigudo ia a buscar para depois ainda ser mais espremido na fábrica de S. Miguel d'Acha.Era assim o lagar.
O ZÉI do CAFÉI comprou-o, em tempos aos três sócios que nunca se entenderam muito bem, Casa Campos, Zé Manel Landeiro e Zé Carreiras...
Era assim a medidura e a respectiva poia: a casa tinha duas panelas à cabeça, e mais uma por cada nove, o lagar (melhor os lagareiros, tinham uma panela (dois litros) por cada dez, a lenha tinha litro e meio por moedura, e a água tinha meio litro por moedura. A média era de três moeduras. O restante ia para o dono da moedura que, ao tempo era de 600Kg.
Não percebestes nada já sei! Aí vai a explicação: os lagareiros eram em número de três e ainda o ganhão que tratava das juntas de vacas que moíam a azeitona no pio. Quando da medidura do azeite, o lagareiro chefe, depois de o decante ter sido bem feito de uma tarefa que recebia tudo para a segunda que só recebia o azeite decantado, media o azeite para o pote do dono da azeitona, sendo que a poia era sempre paga à cabeça.
O trabalho começava por volta das cinco da matina, o que no Inverno não era lá muito agradável. A essa hora lá ia eu a dar água para a caldeira. Era eu, a mulher do Tonho Mota e a mulher do Chquim Lavra-Miúdo. O sistema era rotativo: um tirava a água do pocinho que estava à entrada da porta maior do lagar, outro acarrejava e o terceiro despejava para a caldeira. Não havia luz cá fora (mais tarde lá apareceu) pelo que quem tirava a água do pocinho tinha que"tentear" a superfície da água e fazer o deborco do caldeiro e puxar pela corda. Acabei por combinar com as mulheres: eu ficava sempre a tirar e elas entre si acertavam quem ficava na acarreja e no despejo. Assim foi. Era um prazer acertar à primeira sem tentear a água e o caldeiro entrava deborcado no líquido. Um autêntico motor era o que eu era!
Acabada esta tarefa sentava-me à lareira da caldeira a olhar a ala ou o borralho, e, não raro, dava com cada cabeçada no ar que até parecia que me tinham dado uma carchantada na nuca.
As mais das vezes havia petisco. Aí por essas seis era o desjejum: uma lata de atum sangacho em molho de tomate, meia dúzia de batatas cozidas e sobrantes do jantar do dia anterior, uma cebola das grandes, pão caseiro em fatia de ganhão e azeite, muito azeite. Comia-se sempre à colher e o copo era só um e de lata zincada, suspenso sempre no gargalo do garrafão. Comia-se do barranhão, também ele de lata. Nunca precisava de ser lavado porque ficava sempre bem limpinho com as voltas finais que se davam com o naco do pão. Passava-se pela água a ferver da caldeira e deborcava-se ao lado da pedra até à próxima.
Às vezes havia pândega de mais requinte: bacalhau desfiado, enchido, entremeada e até caça: lebres e coelhos, que ao tempo abundavam...Pudera! Era tudo semeado, desde a lagariça e taliscas até à serra da Raposa e da Marvana, já a dar vistas para a serra de Malcata. Nada do que se passa agora: estevas, giestas e eucaliptos.
Não raro, dormia um sono assado, sentadinho ao borralho da caldeira e vinha Zé Lopes:"dou-te uma CARCHANTADA se te pões aqui a dormir. Inda pegas a maleita aqui a nós e depois vais a buscar o azeite à ribeira".
Duma vez, à noite fui eu à caça com o Mnel Chquim Alma de Sino... À caça, é como quem diz... Saímos no seu ultra famoso Cortina verde, pendurámos por baixo uma tábua, presa com arames e aí vamos para os campos da ribeira da Ceife, ali perto do velho Figueira a dar vistas para o Chico Aleixo: entrámos pela arada adentro (aquele carro era um arrasa montanhas) e, não tardou, já tínhamos uma lebre e dois coelhos, mortos à CARCHANTADA pela tábua suspensa no mais que famoso Cortina verde! E... ala que se faz tarde! Caminho de aldeia! Digo para o Alma de Sino: «Ó Mnel, um coelho destes levo-o eu para amanhã papar com os lagareiros ao fim de dar a água. Tu se queres vais lá a ter aí por volta das seis que já deve estar prontinho». Assim foi.
A panelinha de ferro deixou evaporar um cheiro a cebola e alho com folha de louro, azeite e uma malagueta e coelho bravo; antes de tirar despejou-se um copo de lata de vinho. Assámos umas batatinhas miúdas à beira do borralho, esmagámos mais uns dentinhos de alho, misturámos com sal, azeite e vinagre, murrámos as batatinhas, despejámos o coelho para a gamela que servia de barranhão, e, cada um com sua colher, atacámos ... E foi um ai!
Invariavelmente saía-se Tonho Mota: "Não há dente como o do alho/ nem peixe como o atum/ nem carne como a do c....../ que não tem osso nenhum."
Se coisa há que eu gostava que acontecesse é que este EX LIBRIS fosse adquirido por entidades públicas e se transformasse num museu do azeite. Enquanto é tempo.
XXXXXIIIIIIIIIIIIIII GGGGGGGGRRRRRRAANDDDEEEE

Parir


A questão não é parir ou não parir. A questão é aonde parir. Tal como a questão shakespeariana, parece que esta também não é de fácil resolução.

Foto roubada daqui

segunda-feira, maio 08, 2006

A NOSSA FALA LV - JAVARINO

O melhor do mundo é a canalha. E no mundo da canalha, há garotos mais javarinos do que outros. Habitualmente, até achamos piada aos mais javarinos. Aqui se deixam algumas peripécias de um javarino.

Mário nasceu de uma paixão de Verão entre o Zé Meioquartilho e a Maria Pápófigo. O caso deu o burburinho adequado aos meados dos anos 60 numa aldeia do interior, mas a coisa acabou por se compôr quando eles juntaram os trapinhos e acabaram com o falatório. Que ele era um belo rapaz e ela era uma rapariga séria, todas têm um deslize, ora essa, e não foi Nosso Senhor que disse: "quem nunca pecou que atire a primeira pedra”? Resultado: foi como que perdoado o pecado do Zé e da Maria no palheiro do Ti Ambrósio Meioquartilho, naquela noite da festa do Senhor S. Bartolomeu.

Calhou que Mário nasceu no ano em que o Zé foi chamado para a tropa. Dividido entre o dever patriótico de guerrear pela Nação na longínqua África e o dever paternal de assegurar o sustento da Maria e do pequeno, aconselhado pelo padrinho, Zé Meioquartilho hesitou pouco e, passada a Senhora do Bocesso, deu o salto a caminho da verde França. Nos 10 anos seguintes, todos os 3 meses a Maria havia de receber o suficiente para si e para o garoto. E nesse tempo todo, apenas por cinco vezes, e à sorrelfa, Zé viu o seu Márinho. Regressou de vez, já resolvida a questão colonial do país e também a questão do seu serviço militar.

O garoto cresceu pois sem a presença física do pai, o que terá decisivamente condicionado a sua trajectória e a sua personalidade. Vem nos manuais pedopsiquiátricos, mas nós, as pessoas de bom senso, também o sabemos, que a figura masculina tem a sua função praticamente insubstituível no quadro familiar. (Alguns cidadãos com certas tendências sexuais, acompanhados de outros cidadãos com certas tendências políticas não concordarão. Estarão no seu direito de não concordar. Passemos por cima da problemática, porque ela não se coloca aqui à volta da Baságueda.)

Voltemos ao Márinho. Um autêntico javarino que só tinha más ideias. Entre outras judiarias, era ele o autor - recentemente revelado - da cena do cão a ganir e com um corgalho de latas presas ao rabo que de quando em vez aparecia no adro à saída da eucaristia dominical. O truque estava em escolher um cão cujo dono fosse um católico apostólico romano praticante. O sentido de fidelidade do animal fazia o resto.

Na escola era o brigão maior, a má companhia que convencia os outros a fugir à escola para ir aos ninhos ou à marouva. Sempre que tinha oportunidade escondia a régua ao professor Tanganho, mas acabava invariavelmente por levar com ela, por via dos acusa-cristos. Na noite de S. João era sempre o que mais contribuia com vasos no adro. Bastas vezes, no tempo dos taralhões, arranjava ele uma corgalhada de passarinhos nos costis dos outros. Não perdia oportunidade de se divertir a chamar nomes à velha passarinha, ao tonho maranhão, ao jabão feijão, à chicórrela e a outros típicos da aldeia. A chicórrela era particularmente desgraçada porque não podia estender as ceroulas ao sol que o Márinho ia lá buscá-las e largava no falo do chafariz do Batoco ou no cimo do padrão do adro. As queixas das traquinices do garoto chegavam à Maria Papófigo e ela, lá ia respondendo invariavelmente: "ê no faço nada dele!"

A judiaria que mais gozo lhe dava era a de atar uma linha preta à aldraba das portas das beatas e dos ricos. Uma das maiores vítimas era o Professor Marcelo. A coberto das trevas da noite, enrolava caladinhamente uma ponta da linha a uma das aldrabas de chumbo da porta do velho professor primário, desenrolava cuidadosamente até à esquina traseira da Igreja e, puxava. Numa das vezes, já o madeiro jazia ao lado, a mirrada esposa do venerável mestre aposentado veio de robe cor de rosa e pantufas ver quem batia e, não vendo ninguém, voltou a fechar, julgando ser o vento. Mal deu 2 passos, a aldraba fez-se ouvir de novo. Depois de constatar que não havia ninguém do lado de fora e que o vento mal soprava, começou a rezar baixinho uma Ave-Maria. Passou a Pai-Nosso e em altavoz quando, mal fechou a porta, o batente voltou a cair com estrondo na almofada de metal. O Senhor Professor, para desgosto da esposa, não era homem de fé, por isso, atirou de lá um “qu’arraio de porra é essa mulher, atão isto são horas de rezas, inda por cima em altos berros?” A aldraba insistia e a senhora acompanhava com o Pai-Nosso ainda mais alto. Irritado, o Senhor Professor levantou-se do velho cadeirão e berrou autoritário:

- Cala-te já mulher do diabo!

Apercebendo-se do motivo do terror da esposa, abriu a porta vigorosamente e praguejou para fora:

- Mas que coisa é esta, homem. Eu não acredito em fantasmas, eu rebento é já com o filho da puta que aí está.

Quando tal ouviu, no escuro da esquina da Igreja, Mário sentiu a noite ganha. Foi com prazer tenso que ele puxou a linha mal o velho Marcelo fechou a porta, na ânsia de o ouvir de novo a praguejar. Puxou repetidamente a linha, até que o professor primário reapareceu de caçadeira na mão e lança dois tiros para o ar, enquanto soltava aos berros as imprecações mais ordinárias, fazendo com que a esposa corresse a buscar o terço e se pusesse a rezar ainda mais e com mais fervor, pedindo perdão a Deus pelos desmandos do marido.

Quando sentiu que o café da Rosa esvasiara e o maralhal vinha a saber do que passava, Mário botou a fugir pela caminho abaixo, deu a volta pelos cabeços e entrou no café da Rosa sorridente, mas sem contar a ninguém que era ele o provocador do alvoroço. Havia de repetir a cena mais algumas vezes, quase sempre com o mesmo resultado, até que foi apanhado e metido na garagem do Regedor Xico Sarapião durante uma noite.

Feito o exame da 4ª classe, como repetente, ainda seguiu para o colégio. No Carnaval já quase tinha atingido o limite de faltas, ainda assim, com tempo para infernizar a vida ao velho Professor Barbosa. Entre outras, a sua maior maleita era a asma. Sabendo que ele não suportava o pó do giz, Márinho deleitava-se a bater vigorosamente a esponja no quadro de ardósia, sempre que ia haver aula de Físico-Química, fazendo com que o intervalo se prolongasse por mais um quarto de hora. Depois de dois anos sem aproveitamento e de muitas e variadas javarinices, a mãe de Márinho concordou enfim em que ele abandonasse os estudos e iniciasse a carreira da sua vida: trolha.

A última travessura plagiou-a do pai, corria o Verão de 85, já não no meio da palha do palheiro do Ti Ambrósio Meioquartilho, mas no banco de trás do seu Ford. Acudia a cachopa por Françoise, e era a primogénita do Mnel Jquim Caipila, com quem Zé Meioquartilho tinha partilhado quarto e cozinha em Paris de França nos primeiro anos da sua diáspora. Na entrada do Ano Novo, dispensado do serviço militar por mór do pé chato, partiu Márinho para a Gália. Por lá ficou. Menos javarino, mais homem.

quarta-feira, maio 03, 2006

Definitivamente

1.
Na sua última noite, Abril oferecia uma brisa suave e uma temperatura fresca de Primavera. Àquela hora, ligeiramente adiantada, o céu nocturno mostrava-se limpo e era dominado, no alto sul, pelo Leão, deixando já perceber uma ponta do Escorpião que havia de subir ainda mais um pouco. A Lua ia no segundo dia de crescente apresentando-se com um fiozinho de luz que apanhava a sua Antártida e crescia, pelo lado oriental, até um pouco mais acima do equador. Pareciam estar reunidas as condições propícias para um concerto de excelência e eu decidi que não o podia perder. Tomei o caminho da serra, em direcção à escuridão, fugindo às luzes e aos ruídos. Acomodei-me o melhor que pude, sentado no barroco e apurei os ouvidos. Por esta época, todas as noites, toda a noite, os concertantes mostram o que valem.
Contei 7, cada um na sua árvore, cada um no seu território, cada um com o seu trinado, cada um com a sua partitura, que nunca se repetia. Definitivamente, confirma-se que como o rouxinol, ninguém canta.


2.
O dia apresentou-se bem disposto de sol e de vento. Pouco habitual em dia de Nossa Senhora do Bom Sucesso. À passagem pela Baságueda, parei um instante, só para observar como a água deslizava arrebitada mas serena. Saudei-a e segui para o cabeço onde o arraial fervilhava de vida, como em nenhum dos outros 364 dias do ano. Pelos campos ao redor, por entre azinheiras e estevas espraivam-se os novos burros . Não estavam engalanados com o branco e amarelo das giestas floridas, tão pouco de roxo do rosmaninho. Ao lado da tenda dos ipod’s, tamagoshi’s e leitores de mp3, vendiam-se cabrestos, albardas e cilhas. Ao lado da romaria, a feira, ou seria ao contrário? Definitivamente, a timidez da romaria cedeu à arrogância da feira.