sexta-feira, julho 22, 2011

A NOSSA FALADURA - CLXVIII - LAVARINTO

A vida, às vezes, é mesmo um lavarinto. Chegamos a um ponto que nem sabemos para onde nos virar. É mesmo um lavarinto.O velho Cartesius dizia que se nos perdêssemos numa floresta e não soubéssemos para onde nos dirigir para chegarmos a um local habitado, o melhor era decidirmo-nos por um rumo e, sem vacilar, seguir sempre em frente. Partia do princípio, paradigmático à época, de que o caminho mais curto entre dois pontos era a recta. De facto a geometria em vigor era a euclidiana e portanto tudo se passava no plano. E como tudo ocupa um lugar no espaço então para ir de um lugar a outro o melhor era sempre em frente e em linha recta. Se nos puséssemos às voltas mais ainda aumentávamos o lavarinto e não saíamos da floresta. Nem sempre assim é e, às vezes, melhor é contornarmos, darmos uma volta e, parecendo que é mais longe, ganhamos tempo e o longe torna-se perto...
Deixemos então o lavarinto das coordenadas cartesianas e os eixos da ordenadas e das abcissas e detenhamo-nos, sentadinhos num batorel, à sombra da nogueira do Chquim Pardalim, ali mesmo onde o velho Prim e o Marrafa engenheiravam forma de fanar uns tomatitos, à pála, ao velho Fatela, que, embora sempre de olho neles, acabava sempre por ver parte do lucro da venda da caixa ir-se embora nos bolsos do Marrafa e do Prim. Eram uns artistas. O Marrafa ainda ia, às temporadas, até à Panasqueira, às minas, mas quando o tempo cá fora já era melhor, desandava e juntava-se ao velho Prim em tudo quanto fosse de malandrice e pilhagem. O Prim, esse, dizia que não precisava de trabalhar para se governar...às vezes andava num lavarinto porque a Guarda ia a casa dele frequentemente e dava com vestígios... Lá ia para a prisão e de alto e bom som lá bradava:"agora até me servem o prato e põem roupa lavada na cama!" E assim vivia.
Voltemos então ao batorel do Fatela à sombra da nogueira dos Landeiros, paredes meias com o chão do Geadas.
Convido-vos a outro lavarinto mental. Hoje deu-me para aqui...
Já reparastes que o homem não pode viver sem símbolos? Mesmo os sons que profere, acaba por os desenhar sob forma gráfica - as letras - que depois associa e constrói palavras e logo frase e depois texto e discurso e obra literária. E quando fala quer simbolizar qualquer coisa no sentido em que se refere sempre a outra coisa que é diferente do que diz. É aquilo que a palavra simboliza que faz com que a realidade se torne clara à nossa consciência. Dito de chofre: é no símbolo que o real nos aparece. Sendo assim, o símbolo não é a realidade, mas a sua revelação, a sua manifestação. Estais-me a acompanhar neste lavarinto? Continuemos então.
Se as palavras disserem apenas aquilo que cada um de nós quer dizer e não deixarem espaço para o que outro que nos ouve ou nos lê quer também dizer, a partir do momento em que deixam de ser símbolos e passam a ser simplesmente signos, então degeneram como palavras. São meros veículos de transmissão: uns MEDIUM que se esvaem na efemeridade do momento. Sejamos objectivos e directos: quando uma frase designa apenas aquilo que uma pessoa quer dizer e exclui a participação de outra na construção do significado, nessa altura, torna-se estéril. Fecha-se sobre quem a profere e exclui quem a escuta ou lê, em vez de permitir um fluxo - dis-curso - de comunicação entre ambas as partes. Ora a palavra é ou deve ser o antípoda desta tese, ela é, por natureza, diálogo, logo movimento, nunca estagnação. Clarifiquemos o lavarinto em que vos estou a meter: Se as palavras não tiverem vida, se não mexerem, se não agitarem, se não provocarem, estão mortas. Endoutrinam, dogmatizam, cegam em vez de desafiarem e educarem. Disse ! Aqui é que vai um lavarinto!
O Marrafa nos túneis da Panasqueira orientava-se melhor, até mesmo sem o gasómetro na testa...
Ah!, mas não penseis que já vos larguei. Vós é que podeis largar-me. Mas aposto que quereis saber o fim deste lavarinto! ou engano-me?
Cada um de nós é uma pessoa... Para as finanças e para o Estado somos, cada um, um indivíduo com um número. Nunca uma pessoa com um nome. Critérios...
De si, o termo PESSOA é um nó numa rede de relações (com outros nós) .
Verdade insofismável é que todos podemos usar o pronome Eu, mas ninguém o pode usar por cada um de nós quando nos referimos à nossa própria pessoa. Eu só sou eu para mim. Para vós sou um tu e vós para mim sois também um tu. Assim todo o Eu implica um tu e todo o tu é proferido por um eu. E esta relação implica ainda um ELE/A e mais ainda uma relação mais complexa como é a da dimensão Nós/Tu, que inclui o ELES, de modo que o ELE/ELA se inclui no EU/TU. E pior é que cada pessoa não admite nenhum plural. Cada um de nós é só ele e mais ninguém. Que Grande lavarinto!
Acomodemo-nos no batorel para encontrarmos a saída do lavarinto. Afinal cinco pessoas não são cinco pessoas, mas dez. São cinco tu e cinco eu. Se um sair e for observador então ele é um ele/a e continuam a ser na mesma dez porque ele continua a ser um eu e um tu e cada um dos outros são também eles/as e eus e tus...

Já estava com saudades de vós. Podeis crer. Nada melhor que um exerciciozinho para aquecer.
XXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIGGGGGGGGGGGGGGGGRRRRRRRRRRRRRRRRRRAAAAAAAAAAA
AAAAAAADDDDDDDDDEEEEEEEEEEEEEEEEEEE

(publicado por karraio, texto do changoto)

segunda-feira, julho 11, 2011

A NOSSA FALADURA - CLXVII - (E)INCOURO

No final dos anos 60 os "campos de férias" de Verão em espaço rural permitiam a aprendizagem e desenvolvimento de um conjunto de competências de indiscutível utilidade para o futuro de crianças e adolescentes. Sobretudo porque não existia didáctica imposta pela figura do tutor / orientador / animador.

Uma das mais perseguidas era a arte de manter todo o corpo a boiar. Já não me lembro muito bem mas acho que aprendi a nadar numa charca da ribeira das Taliscas que naquele tempo se aguentava com água quase até ao S. Bartlameu, em harmoniosa partilha com umas cobritas d’água, rãs e até um casal de cágados. Ou terá sido no enorme tanque do Dr Amândio, alimentado por uma mina de água fria mas limpinha, ladeado por um freixo e uma figueira cujas pernadas se utilizavam cuidadosamente como prancha de saltos? Se calhar foi no poço do bezerrinho, 5 metros de fundo, poucos eram capazes de lá ir buscar uma mão cheia de lodo para exibir triunfalmente aos outros! Ou então terá sido na “barragem” da brigadeira? ou na de medelim? Que importa? A esta distância, só consigo concluir que eram locais perigosos, absolutamente desaconselhados.

O método de aprendizagem era cientificamente básico, resumido à repetição exaustiva, por tentativa e erro, por imitação, raramente por orientação, a verdade é que lá conquistei o truque de contrariar a gravidade dentro de água.

Mas estes "campos de férias" numa aldeia do rural profundo eram igualmente importantes para a aquisição de muitas outras competências, utilíssimas para o quotidiano de uma época em que a informação tinha de ser buscada na realidade e não no google. Vejamos por exemplo algumas das que podiam ser apreendidas por mor da irrestível atracção que os garotos tinham pela água.

- Competências para lidar com a autoridade materna: nenhuma mãe sabia por onde andavam aqueles garotos durante toda a tarde, se calhar por isso é que quase todos eram recebidos com uma pequena sova de chinelo (correctivo que se revelava manifestamente insuficiente para impedir a repetição do ritual vezes sem conta ao longo do Verão);
- Competências para a maximização da eficiência na utilização de recursos escassos: nas viagens eram utilizadas pasteleiras que chegavam a aguentar 4 garotos, sentados no volante, no quadro, no assento e no suporte atrás;
- Competências para a inovação: em corajosa antecipação às praias de nudistas, a moda ditava nadar incouro (era raro o que usava calções de banho,logo estigmatizado como betinho, banidas as toalhas, chinelos, protector solar, barrinhas de cereais para o lanche, pacotinhos de sumo);
- Competências para a improvisação na adversidade - havia sempre a marouva da época numa figueira, pereira ou “maçãzeira” para assaltar na viagem de regresso a casa;
- Competências para a criatividade e adaptabilidade: a sede podia facilmente ser saciada em qualquer poço que apresentasse água clara (não confundir com transparente) a atirar para o esbranquiçado, água de sabão mesmo, e que passasse no teste do cuspo: bebível se a saliva se dispersava, não potável em caso contrário.

À excepção da charca das Taliscas pode ainda listar-se uma outra competência absolutamente decisiva neste contexto:
- Competência para responder com rapidez e eficiência a situações inesperadas: era preciso botar a fugir quando o dono aparecia a vociferar imprecações e impropérios contra a canalha, invasora da sua propriedade privada. Vista de cima, a debandada aparentemente caótica de meia dúzia de garotos a correr encouros no meio do restolho, era cena para marcar o filme tuga que se fizesse sobre o “Verão de 69”. É que às vezes não havia tempo de agarrar todas as peças…

Foi o que aconteceu ao ZéChquim espanta mulas. No caminho para o Ferrador, foi assaltado por uma repentina cólica que não lhe deu o tempo necessário para se baixar e aviar a vida comédado junto do eucalipto jovem que escolhera para dele usar as cheirosas folhas. Chegado ao poço, apressou-se a fazer chegar o balde de esmalte na ponta da picota / burra / cegonha e a passar por água as suas cuecas novas que a mãe tinha comprado no último mercado como prenda por ter passado para a 4ª classe, estendendo-as de seguida cuidadosamente ao sol numa das bordas da pia de pedra. Quando o ti Bezerrinho se aproximou sorrateiro e brandiu o seu cajado, furioso, o espanta mulas apenas conseguiu agarrar os ténis rotos e a camisa.

Já à sombra da grande figueira pchichota na horta do Ti Guilherme chornico, o espanta mulas reparou que as cuecas do João parretcho eram iguais às que ele tinha deixado na pia a secar: branquinhas e com abertura à frente. Com a autoridade que lhe inspirava o dobro do tamanho, decretou:
- Ó parretcho, dá cá as tuas cuecas.
- Isso é qu’era doce! – atreveu-se o outro.
- Se não m’as dás levas já aqui uma malha.
Apercebendo-se da determinação do espanta mulas, o pequeno João tentou escapar mas rapidamente foi agarrado, e a sua resistência foi inútil perante a força bruta do matulão que o desnudou por completo para lhe arrancar as cobiçadas cuecas. Cego de raiva pela humilhação, o parretcho agarrava em tudo a que deitava mão para atirar ao espanta mulas que se pôs a cabanir e nem pensou no que estava a fazer quando, à falta de mais pedras e torrões, arrancou 2 figos de palma da figueira do inferno que havia junto ao barroco do chornico e os lançou na direcção do gatuno. Os outros garotos assistiam divertidos na plateia da sombra pchichota. Foram eles que valeram aos protagonistas principais, ajudando-os pacientemente a arrancar os dolorosos carapetos, da palma da mão do parretcho, da nalga esquerda do espanta mulas.


Seria interessante reunir Watson e Skinner com Vigotsky, Piaget e Bandura e ouvir as suas palestras neste campo de observação, relativamente aos processos de aprendizagem daquelas variadíssimas competências técnicas e emocionais.