terça-feira, julho 21, 2009

A NOSSA FALADURA - CXXXVII - PI(E)RRÓNI(E)CO

Ora digam lá que o povo não é erudito! Quando ouvi pela vez primeira a velha Libra a chamar isto ao seu neto Farnando, ali mesmo em frente da casa do Pirolas , fiquei assim como os tarantas que ouvem mas não entendem.
Só muito mais tarde, já com algumas letras aprendidas é que vim a saber quem fora Pirro de Élis, fundador da escola céptica, defensor acérrimo da tese que propugnava que a verdade nunca seria atingível e que o homem nunca dela teria consciência. A razão para a assumpção de tal posição radicava na constatação de que não havia um critério único de verdade e que só um relativismo seria aconselhável. Ora, tal posição inviabiliza uma verdade universal e assim nunca se podem formular leis. Era aquilo que os gregos chamavam a acatalepsia (impossibilidade de se conhecer a natureza própria das coisas) pelo que o melhor era um certo desprendimento da própria realidade e não nos preocuparmos muito (ataraxia).
Contemporaneamente podemos sentir influências desta forma de pensar em Karl Popper, o homem do falsificacionismo que propõe o inverso do normalmente crido: as teorias científicas só o são se puderem ser empiricamente falsificadas. O que há, são doutrinas aceites como verdadeiras, mas que o não são. Basta que ver que caminhamos sempre para novas formas de abordagem da realidade e que aquilo que hoje é a verdade é amanhã duvidoso e para a semana já é historicamente falso. É isto que justifica o progresso e que, consequentemente nos contentemos com probabilidades que se aproximam da verdade mas que a não têm, sob pena de liquidarmos a evolução do conhecimento humano.
É por causa disto que nunca se conclui grande coisa de um debate sobre um qualquer assunto: cada um dos participantes agarra-se com unhas e dentes aos seus pontos de vista, que considera os melhores, e fecha a porta a qualquer outro ponto de vista diferente porque será sempre inferior ao seu e assim não vale a pena ligar-lhe. É o que se chama o mito do contexto, que se pode expressar na afirmação popular de que " nunca há só um teimoso". Podeis chamar-lhe o que quiserdes: arrogância, pedantismo, mania, surdez, casmurrice, autoritarismo, sobranceria, narcisismo, umbilicalismo, ensimesmamento, misantropia, Socretinismo, ... o que quiserdes, mas vai sempre dar ao mesmo: eu é que sei e o outro é uma besta. Mainada.
O Farnando da Libra também assim era: teimosinho que nem galinha a tentar bicar o grão de milho pelo buraco da rede, quando lhe bastavam quatro passadas para o engolir se passasse pela porta ali ao lado. Pior ainda se o pombo por ali passasse e o engolisse...
Vamos lá então à estória: A velha Libra tinha um chão para o caminho das águas. Semeava milho para a burra e fazia uma horta pequena onde colhia no cedo alguns tomatitos e pepinos juntos com uns gatchos de Santa Maria numas videiras que tinha junto à parede do caminho e que « eram mai doces có mel». Tinha era um problema grave: o poço, a meio do Verão secava e podiam assar-se sardinhas lá no fundo. O remédio era acartar água em bidons que o Farnando tinha que encher no poço novo e levar na carroça para o chão. O Farnando era Perrónico mas não era parvo de todo: andava sempre à coca a ver quando é que alguém com motor ia ao poço a fazer o mesmo e pedia que lhe enchessem os bidons, que encher aquilo ao caldeirinho matava o corpo.
Além disso, o Farnando, se visse uma bola, esquecia-se do mais e era sempre o último a abandonar o jogo. A velha Libra rançava-o mas ele não ligava.
Quando apanhava os bidons cheios tocava a burra e lá ia direitinho ao chão e para não perder tempo despejava os bidons para o poço para poder vir jogar a bola outra vez. Quando a velha Libra ia para regar a hortinha, a água tinha-se sumido. O Zé Chornico que pegava com ela no chão:" diz ao teu cachopo que continue a acartar água que o meu poço agradece..." A Libra ficava preada e vinha sempre com alma para arrear nas fúcias ao Farnando: rais todos ta partam, garoto dum raio. Tou farta de te dizer que num botes a água dos bidons para o poço do chão. Vale mai lá deixares a carroça e trazeres a burranca, mê teimoso!
Farnando praguejava de igual modo - a falta que um pai faz na primeira infância!- ( os pais eram emigrantes em França e a Libra estava viúva)" velha dum corno não me desampara a braguilha...» Perdoe-se-me esta descida de nível mas o vernáculo assim o exige...
A questão era grave: Farnando dava-se mal com a besta e só a controlava entre os varais da carroça. Se a soltasse e a montasse para chegar à aldeia era certo e sabido que malharia com os costelados no chão que a burra não esquecia quem lhe punha carapetos de silva por debaixo da albarda... Cá se fazem cá se pagam... Depois chamem-lhe burra!... Antes JUSTICEIRA!
Aí está a razão por que Farnado despejava a água por gravidade e vinha com burra e carroça até à Lameira e ao poço novo... «Vai lá vai» dizia, «a puta da burra malhava comigo no chão e assim vem mansa que as patas batem-lhe nas guardas da carroça e só consegue trote, nunca galope.»
A pobre da Libra bem tentava domesticar aquele potro mas ele chegou a entrar pelo telhado às tantas da noite e a pobre desistiu de lhe trancar a porta.
Foi para a Alemanha como padeiro, tornou-se pasteleiro, comprou um ford capri, andei nele, uma bomba.
Também era perrónico: de vez em quando não obedecia ao dono e dava de rabo. Ainda lá apanhei uns cagaços...
XXXXXXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII GGGRRRRRRRRRAAAAANNDDDDEE

quarta-feira, julho 01, 2009

GRAMATIQUÊS

Cibernauta amigo fez-me chegar o texto que se transcreve. Pese embora seja muito seguro prever que ele vá circular na net e cair em milhares de caixas de correio electrónico, a sua criatividade e qualidade justificam plenamente que seja destacado aqui no Baságueda, com a devida vénia à autora.

Supostamente, trata-se de um texto apresentado por uma aluna de Letras, que obteve a vitória num concurso interno promovido pelo professor da cadeira de Gramática Portuguesa. Justíssima vitória. Ora leiam:

Era a terceira vez que aquele substantivo e aquele artigo se encontravam no elevador.
Um substantivo masculino, com aspecto plural e alguns anos bem vividos pelas preposições da vida. O artigo, era bem definido, feminino, singular. Ela era ainda novinha, mas com um maravilhoso predicado nominal. Era ingénua, silábica, um pouco átona, um pouco ao contrário dele, que era um sujeito oculto, com todos os vícios de linguagem, fanático por leituras e filmes ortográficos.
O substantivo até gostou daquela situação; os dois, sozinhos, naquele lugar sem ninguém a ver nem ouvir. E sem perder a oportunidade, começou a insinuar-se, a perguntar, conversar. O artigo feminino deixou as reticências de lado e permitiu-lhe esse pequeno índice.
De repente, o elevador pára, só com os dois lá dentro.
Óptimo, pensou o substantivo; mais um bom motivo para provocar alguns sinónimos. Pouco tempo depois, já estavam bem entre parênteses, quando o elevador recomeçou a movimentar-se. Só que em vez de descer, sobe e pára exactamente no andar do substantivo. Ele usou de toda a sua flexão verbal, e entrou com ela no seu aposento.Ligou o fonema e ficaram alguns instantes em silêncio, ouvindo uma fonética clássica, suave e relaxante. Prepararam uma sintaxe dupla para ele e um hiato com gelo para ela.
Ficaram a conversar, sentados num vocativo, quando ele recomeçou a insinuar-se. Ela foi deixando, ele foi usando o seu forte adjunto adverbial, e rapidamente chegaram a um imperativo.
Todos os vocábulos diziam que iriam terminar num transitivo directo.
Começaram a aproximar-se, ela tremendo de vocabulário e ele sentindo o seu ditongo crescente. Abraçaram-se, numa pontuação tão minúscula, que nem um período simples, passaria entre os dois.
Estavam nessa ênclise quando ela confessou que ainda era vírgula.
Ele não perdeu o ritmo e sugeriu-lhe que ela lhe soletrasse no seu apóstrofo. É claro que ela se deixou levar por essas palavras, pois estava totalmente oxítona às vontades dele e foram para o comum de dois géneros.
Ela, totalmente voz passiva. Ele, completamente voz activa. Entre beijos, carícias, parónimos e substantivos, ele foi avançando cada vez mais.
Ficaram uns minutos nessa próclise e ele, com todo o seu predicativo do objecto, tomava a iniciativa. Estavam assim, na posição de primeira e segunda pessoas do singular.
Ela era um perfeito agente da passiva; ele todo paroxítono, sentindo o pronome do seu grande travessão forçando aquele hífen ainda singular.
Nisto a porta abriu-se repentinamente.
Era o verbo auxiliar do edifício. Ele tinha percebido tudo e entrou logo a dar conjunções e adjectivos aos dois, os quais se encolheram gramaticalmente, cheios de preposições, locuções e exclamativas.
Mas, ao ver aquele corpo jovem, numa acentuação tónica, ou melhor, subtónica, o verbo auxiliar logo diminuiu os seus advérbios e declarou a sua vontade de se tornar particípio na história. Os dois olharam-se; e viram que isso era preferível, a uma metáfora por todo o edifício.
Que loucura, meu Deus!
Aquilo não era nem comparativo. Era um superlativo absoluto. Foi-se aproximando dos dois, com aquela coisa maiúscula, com aquele predicativo do sujeito apontado aos seus objectos. Foi-se chegando cada vez mais perto, comparando o ditongo do substantivo ao seu tritongo e propondo claramente uma mesóclise-a-trois.
Só que, as condições eram estas:
Enquanto abusava de um ditongo nasal, penetraria no gerúndio do substantivo e culminaria com um complemento verbal no artigo feminino.O substantivo, vendo que poderia transformar-se num artigo indefinido depois dessa situação e pensando no seu infinitivo, resolveu colocar um ponto final na história. Agarrou o verbo auxiliar pelo seu conectivo, atirou-o pela janela e voltou ao seu trema, cada vez mais fiel à língua portuguesa, com o artigo feminino colocado em conjunção coordenativa conclusiva.


Fernanda Braga da Cruz