terça-feira, agosto 22, 2006

A NOSSA FALA - LXV - CACHEIRA

Quando, ainda não há muito tempo, - de facto os eventos hoje por hoje são tão efémeros que apenas lhes damos importância instantânea e já não guardamos respeito ao tempo - bom, não há mesmo muito tempo, publicava-se em Portugal um jornal matutino diário, de enorme expansão - O SÉCULO - , de boa memória, diga-se, que na sua sua última página, na última coluna, ao cimo, à direita, tinha sempre por título: "há sempre uma história para contar".
A estória que hoje eu vos trago, também não tem muitos anos - afinal eu ainda não penso sequer que já estou entradote, quanto mais que já sou velho - ( bem, COTA, no dizer da rapaziada mais nova, se calhar, já sou) e por isso não se pode chamar história a um facto tão recente quanto esta estória que agora aqui trago. (Estais a ver o jogo das palavras?!) - já pareço o Fernão Lopes naquele seu famoso visualismo.
Não sei mesmo se já vos contei aquela do «pássaro para o primeiro» , mas estou em crer que sim, aquela em que quem primeiro fizesse, todas certas, as contas que o senhor professor ditava, levava para casa o pardal que ele matava com a sua pressão de ar - ao tempo chamava- se (veja-se já o pedantismo ) FLOBÉR (correspondente a FLAUBERT), mas não é essa a que vos quero contar, embora o professor fosse o mesmo da história anterior.
Antes mesmo da tal estória reparai como se vilipendia o português - honra seja feita ao Baságueda e outros, como o Arcaz , que regeneram o verdadeiro linguajar e lhe dão o lugar que, com o tempo, justamente conquistou, só que, como atrás disse, já poucos respeitam o tempo. Razão tinha o velho Comandante: AH! TEMPO!:
Qualquer borra botas diz baby-sitter em vez de ama, diz abat-jour em vez de quebra- - luz, enche a boca a dizer coffee break por intervalo para café, chaise longue por espreguiçadeira, T-shirt por camisola de manga curta, algibeiras por bolsos, lanche por merenda, check up por actualizar, cachecol por abafo, e-mail por correio electrónico, barbecue por assador, blazer por casaco, para além dos famosos bué por muito, e DÁAA por ceguinho. Já não há respeito pelo genuíno Camões... também já são poucos os que sabem alguma coisa de latim... Daqui a cinquenta anos já poucos saberão que o Português é novilatina e que 60% do Inglês também.
Verdade seja dita que, às vezes, me faltam palavras para expressar o que quero. Mas isso não é incompetência da língua. A incompetência é toda minha. MAINADA.
Dessa incompetência faz parte o nome científico duma erva que nesta época do ano está já em fase de deixar cair a semente e que cria uma cacheira no topo de uma haste, assim parecida com a do alho porro ou da cebola quando espigam. Não é mesmo, com certeza, por acaso, que o cheiro que exala é semelhante ao do alho e a forma esférica e repartida por pequenos filamentos é também igual aos destes bolbos. Não sei o nome científico, mas não digo, como um amigo meu, borrocu quando pretensamente de forma erudita quer dizer o tal barbecue e que eu chamo de assador e mainada. Não sei, dizia, o nome científico, mas sei o popular: erva caralheira. Assim mesmo. A forma arredondada ligeiramente mais estreita no cimo e o facto de estar na ponta de um longo pescoço devem ter sugerido à populaça a semelhança evidente com o pai da humanidade.
Vai daí, e porque o povo não é de modas - quando não tem, cria - sai espontaneamente o nome: erva caralheira e ponto final.
Críamos também nós, imberbes fedelhos em idade escolar, que se conseguíssemos que uma garota da escola ao lado comesse uma baga que fosse da cacheira da erva caralheira, os seus apetites sexuais relativamente a quem lhe tivesse dado o fruto ou o pão com a tal baga seriam tais, que se entregaria desalmadamente a um esfreganço de crica que nos transportaria até ao oitavo céu. ... Aí mesmo: aquele acima do Olimpo. Então, era vê-los junto àquele famoso muro, de que já vos falei, onde estava o fontanário com que XARINGÁVAMOS as cachopas, a tentar conseguir que elas dessem uma dentada na maçã de BRAVO MOFO ou no paposseco, daqueles com maminha e tudo - lembrais-vos deles? - onde disfarçadamente se tinha introduzido uma baga da cacheira da erva caralheira.
Não consta na história da aldeia que alguma donzela, alguma vez, se tivesse entregue a um mancebo por motivos da ingestão de uma baga da cacheira da erva caralheira.
O facto é que ainda hoje essa ideia perdura. E o que nunca pode morrer é a ideia, mesmo que já não se consiga fazer nada. É a vida!
Há coisa bem feitas , não há?!
Ide dando algumas inculcas para sabermos se ainda vos cativamos com as nossas estórias.
Um XXXXIII dosGGGGGGGGGGGRRRRRRRRAAAADDDDDDDDDDDDDEEEEEES!

segunda-feira, agosto 07, 2006

A NOSSA FALA - LXIV - ALDEAGAR

Sempre as aldeias tiveram e têm um tontinho, ou mais, e espalha brasas que, em menos que leva a apagar um fósforo em dia de vendaval, difundem uma qualquer notícia, não raro, distorcida.
Mesmo que não sejam tontos (tarantas), algumas mulheres há que, em menos de uma ave-maria põem uma notícia do beco da ribeira ao cimo do ribeiro cimeiro e do bairro da padaria ao alto da lagariça. Exemplos mores dessa arte de espaventosa capacidade de comunicação foram Tecla e Pieres, por exemplo, ou Paca, velha Raposa ou Ilda do Vinagre. Eram bichas de rabiar em fogueira de S. João. O comandante bem dizia: " isto é má gado: às mulheres inda que lhe cortem metade da língua falam o dobro... deus deu-nos uma língua e duas orelhas, é para ouvir o dobro e falar metade". Filosofia de trazer por casa, mas funcional. Exemplos de tarantas lá temos o inefável Tonho, entretanto desaparecido, o Tramoço, Fainica, Feijão que não sendo espalha-brasas também aldeagavam quanto bastasse. Rosnavam ameaças, inventavam atoardas, ameaçavam-se fazendo o gesto mais revelador de pré-início de luta a sério: punho fechado por debaixo do queixo, ao mesmo tempo que, depois de traçarem um risco no chão:" se pisas o risco arrebento-te a alma!".
A Vontade de Poder, essa força que nos move a partir do mais básico de nós mesmos, em que o cérebro reptiliano avassala e subjuga todas as aprendizagens, sejam elas tradicionais ou pessoais, permitindo acções que até nos fazem, por vezes, gritar: "esta nem parece minha", a Vontade de Poder, queria eu dizer, impõe que fiquemos sempre por cima, que sejamos os vencedores, que ninguém nos ponha os pés no pescoço. Muito simples, como dizia um dos maiores vultos do pensamento ocidental, castrado na sua mensagem, só porque ousou ser diferente e não alinhar na NOMENKLATUR e no STABLISMENT, Nietzsche de seu apelido, é tempo, dizia ele, de sermos heróis e não humildes a ponto de nos confundirmos com cobardes. A moral tem que mudar, e essa, de aceitar, resignado, que o que se sofre neste mundo será corrigido no outro, é balela "com que o povo néscio se engana" no dizer do nosso inimitável zarolho.
A figura que hoje aqui vos trago era também zarolha, mas não por ter sido atingido por bala traiçoeira, antes porque um horrível cancro lhe foi comendo aos poucos o olho direito que ele trazia sempre tapado com uma lata. Por isso lhe chamavam o "olho de lata". Era o Mnel, da família dos alfáceas. Bom trabalhador com uma pronúncia muito "sui generis". Dele se conta que duma vez foi a Lisboa ao hospital de Oncologia, ali pertinho de Sete Rios a dar para Palhavã, a fim de fazer umas análises circuntanciais e relativas à sua moléstia: era triste e arrepiante ver a carne a desfazer-se, o que mais não seria sentir como Mnel sentia!!!; quando chega a sua vez de ser atendido as coisas passam-se mais ou menos assim:
- Onde foste ,Mnel?
-Fui às Lisboas, catapum, catapum, catapum, rio abaixo, ao hospital.
- O que foste fazer?
- Lá no Hospital disseram para eu mijar para um garrafo, mas eu enchi três, três garrafos; havia lá umas enfermeiras muita boas, tinham as mamas como as ratas pecarrichas, eram muita boas, anda cá ela!
enquanto foi e veio, logo as pombas correio da aldeia fizeram correr a notícia de que o Mnel se tinha apagado. E pior: inventaram a herança que ele havia de deixar.
A sobrinha que sempre o tratara e, por direito próprio, se tornaria a única herdeira é que não gostou da conversa e faz valer a sua Vontade de Poder:
-Ò varinas dum corno, o que andandendes praí a aldeagar? Invejosas de merda! se vós passásseis o que eu passo a tirar aquela trampa do olho do homem todos os dias até as tripas vos saíam por essa boca! Putas! Metei-vos na vossa vida! Se tivésseis tanto que fazer como eu, não andáveis para aí a dar ao lambarão, feitas bácoras dum corno. Sempre a aldeagar, sempre a aldeagar!O dia que mordêreis a língua haveis de morrer com o vosso próprio veneno!
Linguinha de trapos é que a alfácea não era. O certo é que o Mnel voltou e ainda durou um bom par de anos até que o mal lhe apanhou partes vitais do cérebro e acabou por o levar. Dores que o homem passou não se desejam nem ao pior dos inimigos.
O tempo é como a água: aquele tudo apaga e esta tudo lava, (menos a má língua), ambos correm, fluem e, embora fisicamente, ao contrário do que o velho SKOTEINÒS, Heraclito de Éfeso, dizia - que tu não te podes banhar duas vezes na mesma água dum rio - ou o que dá na mesma, - a história não se repete - verdade é que o eterno retorno anda aí e que que cada ano há uma Primavera, nova e diferente da anterior, é verdade, mas sempre Primavera, a deixar compreender Chatelêt:" em tudo o que permanece, algo está em mudança, e em tudo o que se altera algo há que sempre fica" Eu sou sempre eu mas sempre diferente de mim "- basta ver as fotos do B.I. .
Mas agora reparo eu!, Que diabo estou eu para aqui a aldeagar!?
Ficai-vos com um
XI GGGGGRRRRRRRRAAAAAAANNNNNNNNNNDDDDDDDDDDDDEEEEEEEEE!

terça-feira, agosto 01, 2006

A NOSSA FALA - LXIII - FIGOS MARANHÕES

Em todas as sociedades há elementos que gostam que as coisas não mudem e há outros que se esforçam para que a mudança aconteça. Os primeiros aceitam as estruturas tradicionais e tudo fazem para a manutenção da ordem e da disciplina vigentes; defendem a estabilidade e a harmonia do seu mundo sustentadas nas normas tradicionais; recebem com hostilidade as novidades que as podem comprometer; a modernização causa-lhes augústia. Os segundos, pelo contrário, entendem a mudança como necessária e desenvolvem uma forte propensão para contrariarem e subverterem as estruturas e a ordem estabelecidas, por as considerarem factores de estagnação e inibidoras da inevitável modernização.

Digamos, com Khun, que estamos perante dois paradigmas antagónicos, em que o anterior entrou em crise e surge um novo que pressupõe a aniquilição do outro. A transformação do velho para o novo é sentida como uma desorganização social, um caminho para a anomia, como diria Durkheim, pelo menos enquanto o sistema normativo antigo não é substituído pelo novo que emerge. Ainda com Khun, e utilizando o exemplo mais conhecido, pense-se nos efeitos da substituição do paradigma geocêntrico pelo que já apontava, certeiramente - eppur si muove -, para a nossa mesquinhez no contexto do universo, e os efeitos que tal provocou na visão do homem, do mundo, e… de Deus. Neste sentido, a modernização constitui um processo criativo e destrutivo da ordem anterior. Será? Ou será que a mudança é um processo primário, inexorável, e a estabilidade é apenas um afrouxamento da mudança?

Noutro quadro, recorramos a Bourdieu para pedir emprestado, o conceito de “campo”, aqui tomado, abusivamente, generalizado à escala societal. As posições relativas dos que são pró e contra a mudança leva-os a lutarem pela subversão ou pela conservação das estruturas, entendidas sobretudo no sentido da doxa, ou seja do senso comum, das “certezas” do velho paradigma, e do nomos, isto é das leis gerais, tendencialmente invariantes, que regem o seu funcionamento.

Esta conversa densa só para dizer que Ti Julho Ramelica era um fundamentalista do velho paradigma, um lutador tenaz do campo conservador.

O que se passava, em termos simples é que Ti Julho Ramelica não gostava da modernidade. Ele era um apreciador da ordem e do costume, avesso ao novo, hostilizava o desvio. Tirando a enfardadeira, que lhe dava jeito, por via da artrose, desconfiava de tudo o que era tecnologia. Entrava o velho sec XX na última década quando, a muito custo, lá concordou finalmente com a mulher em comprar o frigorífico, e em aceitar a televisão que a filha, emigrante na capital da Nação, lhe ofereceu, mas ninguém teve manhas para o convencer das virtualidades do micro-ondas. Mesmo no Verão, a mulher tinha de fazer o caldo na panela de ferro, ao lume. Doutra maneira, dizia, não lhe sabia bem. Incomodavam-no outras modernices como o telemóvel - proibiu a filha de oferecer um à patroa -, as saias curtas - umas desavergonhadas, é o que elas são -, as barulhentas motas de 4 rodas - espantam-me as pitas, haviam de marrar c'os cornos numa sobreira-, a música rock - eu sou capaz de bater os testos melhor do que eles - e, claro os piercings - atão mas qu'arraio de coisa é aquela?. Não seria admiração nenhuma que, se para tal tivesse preparação, discordasse em absoluto com o Vaticano II e com a missa noutra língua que não o latim.

Naturalmente, não apreciava futebol. A bem dizer, não achava qualquer utilidade a nenhum desporto, porque, no seu paradigma, o esforço tinha de ser produtivo. Daí que, não se inibia de, alto e bom som, invectivar aqueles “parvos que andam todos a correr atrás de uma bola, a cansarem-se que nem malucos, se querem suar, que me vão lá a arrancar as batatas”. Cada vez que passava junto ao polidesportivo a caminho da horta no serralheiro, arranjava sempre maneira de comentar com alguém “rais os palirem, andam eles ali a cansarem-se atrás do rai da bola, p’ra quêi? Se querem suar, ê tenho lá muntas inchadas e uma vinha para escavachar…”. O Mundial fora uma ralação para ele: “ na tilvisão é todo o santo dia naquilo, arre porra!”

A sua aversão ao futebol aumentou naquele dia em que regressava da horta com um caldeiro de lata de cogulo com figos maranhões, pendurado no cabo do sacho que equilibrava no ombro direito. Tinha acabado de repetir à Ti Ressureição Bandolas a sua teoria da improdutividade da actividade futebolística, quando uma bola chutada com força a mais galgou a rede do polidesportivo e veio embater em cheio no caldeiro dos figos.

Conjugada a raiva da situação com a maldade própria que lhe era (re)conhecida, Ti Julho atirou com o sacho para o lado, agarrou na bola e sacou do bolso a sua inseparável navalha de tachas pretas e folha já gasta de mais de 20 anos de uso, e põs-se a tentar espetá-la no esférico. Ou porque a raiva lhe reduziu o discernimento e a habilidade no manuseamento da navalha, ou porque o “cautchu” era duro, o certo é que a arma se lhe fechou apanhando-lhe o indicador, provocando-lhe um talho dos grandes e abundante soltura de sangue. A situação fê-lo atingir as raias da exasperação absoluta. Cego de dor e de humilhação, agarrou no sacho e começou a bater na bola que saltitava caprichosa como que a fugir das investidas do Ti Julho. Os jovens futebolistas assistiam agarrados à rede, comungando da opinião: “o velho passou-se…” O espectáculo só terminou quando o Ti Julho Ramelica desnocou o cabo do sacho numa pedra, quando falhou a fugidia bola redonda, e ele abalou com passo apressado berrando as mais ordinárias imprecações e os mais inconvenientes impropérios.
Juro que ele ia visivelmente consternado quando passou por mim. Quinze dias passados fui levar-lhe o caldeiro a casa e consolei-o, informando-o que, ao menos, os figos maranhões não se estragaram: papei-os eu.