sábado, dezembro 22, 2007

PRENDA PARA O MENINO JESUS

Antigamente era o Menino Jesus que trazia as prendas. A canalha deixava o sapatinho estrategicamente junto da lareira na esperança que para além do habitual par de meias embrulhado numa folha da lista telefónica, ele lá deixasse também um chocolate. Raramente tal acontecia, naquele tempo. O Menino Jesus, se calhar, era a Eterna Criança Pessoana: um pobretanas como todos os outros meninos da aldeia, que limpava o nariz com o braço, que atirava pedras aos burros e que até gostava de ir à marouva.

Agora, é o Pai Natal, velhote moderno, endinheirado e mãos largas que fez uma reengenharia no sistema de entregas de prendas - e também no armazém, substituindo o stock de meias e chocolates por telemóveis, gameboy's ou PSP's - e que, apesar de continuar a descer pela chaminé, passou a deixar as prendinhas devidamente embrulhadas em papel colorido e fitinha a condizer, junto a um piscante(!) pinheiro artificial com uma estrela no cruito.

Apesar das sessões de esclarecimento que o Karraiozito tem vindo, provocadoramente, a fazer junto da Karraiazinha, ela mantém-se inabalável na sua crença no velhinho das barbas brancas e fato vermelho. De tal modo que até manifestou uma sincera vontade de lhe oferecer uma prenda, por achar injusto que ele venha de tão longe encher os sapatinhos de todos os meninos e que nenhum menino lhe retribua a simpatia.
Nunca me tinha lembrado desta!
Comprometi-me a tratar do assunto e, como o que conta é a intenção, escolhi oferecer-lhe uma música. De Natal, claro, seguramente, uma das mais bonitas músicas de Natal que já se escreveram:

domingo, dezembro 09, 2007

A NOSSA FALA - CII - PIORNO OU PIORNEIRA

A mobília das tradicionais casas de aldeia resumia-se a pouco: três ou quatro tropessos de cortiça, umas trempes, umas cadeias suspensas do tecto, na qual se pendurava, tanto o caldeiro para a vianda do porco, como a indispensável panela de ferro, quando o lume com ala a fazia ferver mais depressa, já que lhe apanhava o fundo do bojo na totalidade e que ,depois de estar a ferver, era posta dum dos lados do lume na pedra do lar para manter a fervura; do outro lado, estava sempre outra panela- esta podia já não ser de ferro - onde havia sempre água quente que tanto dava para botar no caldo se estivesse basto, como no caldeiro da vianda, como no alguidar para lavar o barranhão e o talher usado ; ainda uma mesinha baixa, com uma gavetinha, onde se guardava o conduto para o pão, geralmente pendurado numa bolsa de pano cru dum prego da tabique (taipas) de ripa, forrado a papel de jornal, colado com massa de farinha ou farelo e, claro, o cântaro de barro - o asado - com a sua tampinha e o copo de alumínio, de borco na pia da tampa; algumas casas tinham um fogão a petróleo e muito poucas apresentavam um fogão eléctrico ou a gás de dois bicos sem forno. Raríssimas as que tinham fogão a lenha, em ferro fundido, e ainda menos as que dispunham de fogão alto de quatro bocas e forno. Na parede lateral à pedra do lar, num suporte de madeira com uma "étagère", uma candeia a petróleo- poucas vi já a azeite - com um registo que deixava sempre a torcida rente ao bocal e, claro, o canto da lenha -a PIORNEIRA - e a pieira para deitar a cinza e os dentes de leite dos garotos quando caíam, que, para além de manter ambiente quente, depois do lume apagado, era fertilizante indispensável nas leiras dos alhos e das favas. Era também da cozinha que, não raro, começavam as escadas que davam acesso ao forro onde se conservavam as batatas, as restes das cebolas, os cabos dos alhos, alguma bolsa com feijão grande e pequeno e mais uns alguidares de barro ou esmalte só usados em dia de matança e pouco mais. Era por baixo destas escadas que estava a cantareira com os pratos de alumínio ou esmalte e alguns tachos e panelas, pouco usados, uns e outras, já que o prato era colectivo - o barranhão.
O quarto tinha uma camita, quase sempre estreita para dois, com uma enxerga de palha de colmo ou milho. Lençóis eram pouco usados: antes se usavam uns cobertores finos que, depois eram completados por cobertores de papa e encimados por manta de ourelos ou de trapos ou de fita como também eram chamadas. No inverno, cama que se prezasse, havia de ter para aí uns cinco Kilos de roupa nas frias invernadas em que o vento perpassava a telha vã e encarquilhava as orelhas a descoberto fora das mantas.
A sala, quando existia, limitava-se a uma mesa e seis cadeiras a condizer, um aparador com cristaleira, onde estava a loiça dos dias de festa, chegando-se a passar anos sem ser usada. Nas paredes, uns quadros do Sagrado Coração de Jesus e/ou de Maria, a última ceia e o orago ou outro santo ou santa, trazido de alguma excursão. E assim se vivia. Lá se nascia e morria.
No pós guerra civil de Espanha -1936/39- o contrabando teve um incremento incrível e havia quem vivesse dessa economia paralela. Não era raro que os contrabandistas de aldeia fossem convidados a ir a Espanha à festa do S. Brás, padroeiro de Valverde del Fresno, e que os compradores e vendedores espanhóis, de alpergatas, meias grossas, gorras, pana, isqueiros, colchas e camillas,..., viessem também à aldeia quer pelas matanças, nesta altura do ano, quer no sr. S. Bartlameu , a 24 de Agosto...
Ora aconteceu que um espanhol veio para uma matança no Zé Aranhiço, ali ao cimo da lagariça e chegou no dia anterior, que a matança é cedo e a meloreja é coisa que não se pode perder. Dormiria na loja numa tarimba arranjada ad hoc mas já jantou com a família à roda da lareira a comer do barranhão como se impunha. Calhou a ficar do lado da lenha que era também o lado do cântaro da água - o asado -. Na casa do Aranhiço já havia petromax - luxo raro - mas a noite estava fria e o lume precisava de lenha para atear o toco que estava de cabeceira e servia de encosto aos paus mais pequenos que aqueciam o ambiente com a labareda: "mete lenha, espanhol dum corno", dizia o Aranhiço, "mete lenha, corno negro, tu num vês o lume a apagar-se"?... o espanhol tardou a entender que era a ele, que estava mais perto da lenha, que competia manter o ambiente quente e, as vezes que lhe chamaram de CORNO, passaram sem conto. Para cúmulo, a ti Alice tinha cozido feijão grande para a ceia, por mor de fazer o caldo da matança no outro dia de manhã com umas folhas de couve esfarrapadas, uns bagotes de massa manga de capote da grossa, onde, para adubo, se cozeriam também, a bexiga do porco do ano anterior e mais uns nacos de toucinho do alto. Os feijões estavam a saber a sal e a carne que os acompanhava tinha o mesmo forro de sal, pelo que o espanhol teve sede.
Acresce que os tintos na taberna do Cavalheiro e do Zé Rolo já tinham também feito securas.
Levantou-se então o espanhol para beber e:"oh, filho dum corno, dá-me água tamém a mim", "eu tamém quero" «e eu»... entretanto, os feijões iam descendo no barranhão enquanto o espanhol enchia o copo e servia a família de água... Quando se sentou, apanhou já o fundo alguidar e contentou-se com a cebola picada.
Quando regressou a Espanha, depois, aí sim, de ter comido à tromba estendida na matança, dizia para os de Valverde e de Eljas:« Mira! se fores a Portugal, nunca te pongas del lado del agua ni del piorno, sino te llamaran hijo dum corno».
Nunca o espanhol também tinha comido broa e dessa gostou: «pero se te deren broa, prueva-la que es boa.»
Outro tipo de contrabando este, da comezaina e da cultura típicas portuguesas.
Ficai-vos com um XXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIII
P.S. - Se por aí houver alguma matança, deixai recado.