quarta-feira, março 22, 2017

A NOSSA FALADURA - CCL - ESPARNICAR / ESPERNICAR


Até parece que foi há muito tempo... Mas não foi há tanto assim. A não ser que eu também já tenha muito tempo e isso eu não quero crer. Afinal ainda não entrei na chamada terceira idade, ainda pago bilhete inteiro em transportes públicos e não tenho qualquer documento vitalício e renovo a carta só daqui a seis anos...
A velocidade a que hoje as novidades acontecem é tal que o que agora é moda, amanhã é já pré-história. Alguns chamar-lhe-ão sociedade da informação, mas eu acho que mais importante será uma sociedade bem IN(Formada).
A prova de que tudo é efémero, ou descartável, se quiserdes, está aqui mesmo no basa. Quantos do que nos lêem seriam conhecedores deste vernaculismo que deixamos aqui registado? Só que eu usei todos estes termos e muitos mais que, aos poucos hão-de aflorar à memória e, claro, aqui projectados.
Para quem conhece a terra xêndrica será difícil corroborar que contíguas à taberna do ti Chico Miguel, havia duas furdas onde ele criava os porcos de matança? Que as galinhas depenicavam na rua e espernicavam restos de algum tanoco de pão que lhes surgisse ao bico? Que uma vez por outra, um carro batia numa delas e era um consolo ver todas aquelas penas a esvoaçar pelo ar? Até recos de médio tamanho patrulhavam as ruas à procura de  restos de comida! Olhai que não foi há tanto assim!
Sou ainda do tempo em que os lagares eram de varas e se usavam ceiras em vez de capachos. Não havia água canalizada e muitas vezes me levantei às cinco para ir dar água ao lagar...
Lembro-me bem de não haver electricidade e de haver uns poucos de candeeiros de bronze, poucas vezes acesos para dar luz à estrada... Um deles estava mesmo no ângulo esquinado da casa onde morei grande parte da minha vida. Vi-o cortar com uma serra  de metal,
O sal, o açúcar, o arroz, a massa, tudo era vendido a retalho e ao peso dentro de uns cartuchos de um papel pardo... os pacotes de manteiga guardavam-se em sal para não se derreterem no verão, o petróleo, o azeite , tudo era vendido à medida e de forma avulsa... 
Sou do tempo do centil, do salamim, da quarta, do quartilho, da panela, da deca, do alqueire, da fanega, do moio, do quartão, do almude, do côvado...
Sou do tempo da infusa, do arrátel, do pucheiro, da cântara, da braçada, da arroba, da grosa, do milheiro...
Sou ainda do tempo do pé, do passo, da passada, da chanca...
Vendia-se a chita da tabela e roupa de marca na ourela, camisas de terylene que era só lavar e secar e ficava pronta para voltar a usar; vestia-se surrobeco, pana=bombazina, popelina, do cotim, tudo enrolado em peças e cortado com arte pelo merceeiro.
Quem se lembra da brocha espanhola e  da carda, para além dos protectores para proteger a sola dos botins vergados à mão, batida em pedra seixo redonda chamada a rebola, depois de bem demolhada em celhas que mais pareciam dornas pequenas ?
Quem conheceu a sola verde, a sola maranhão, a barriga de sola, o corpon, o calfe, a capicua, a borracha de ceilão, a sintelite? Quem se lembra da anilina para fazer graxa para os sapatos?
Quem sabe o que era a semilha, o prego de pregar à forma? quem distingue o prego de ripa, de  fasquia,de meio solho, de solho, de caibro? Quem, ainda, pregou uma cavilha?
Quanta gente há por aí que já nem sabe o que sejam umas ceroulas ou uma simples fita de nastro, sequer uma naveta de tear ou a canela de uma máquina de costura tocada a pedal?
Tanta coisa, tudo há tão pouco tempo e a parecer tanto...
Pois é, meus caros: assim se passa com os valores.
Se hoje perguntarmos a um dos nossos jovens o que mais gostava de ter na vida lá vem um carro potente, uma vivenda luxuosa, o desejo de conhecer meio mundo e o resto da outra metade em viagem, e serão poucos os que falam de saúde, paz, amizade, família, trabalho,...Vai lá vai...
Até parece que vos estou a dar um bailinho... Nunca foi minha intenção e confesso que quando comecei a escrever esta crónica não tinha minimamente na cabeça derivar para estes campos.
Mas lá está: a nossa mente não é linear e, porque é contínua e não contígua, nunca se sabe para onde o pensamento nos pode conduzir e damos por nós em imprevisíveis situações. Dito assim de repente: a nossa mente também espernica, isto é, nunca se sabe onde vai parar a ideia inicial...Tal como não sabemos para onde vai parar a migalha de pão que a galinha da ti Surreição, que teimava em continuar a usar pedras como  pesos, iria parar quando ela abanava o pescoço. 
Poi é! Também não sabeis quem é a ti Surreição (Maria da Ressurreição). Mas eu digo-vos: morava na primeira casa da rua do Outeiro, mesmo antes da barreira e confrontava atrás com o quintal dos Póvoa, à esquerda com o largo do batoco e á direita com O Chquim Calça-Defuntos, à frente, está claro, com a via pública. A casa tinha uma loja onde ela guardava o que colhia da horta e outros produtos para consumo ao longo do ano: cebolas, alhos,piri-piri, batatas, azeite, azeitonas, a salgadeira, feijão, grão, queijo, sei lá ...e as pedras. Era mais surda que um calhau  e desconfiada até mais não...
Muitas vezes a atendi na pequena loja de meus pais e quando queria qualquer coisa a peso teimava que o que valia era a sua pedra e não o peso aferido pelo aferidor camarário. Além disso levava sempre uns cambos para servirem de balança pois não confiava nas balanças do comerciante. O problema não era quando comprava pois as pedras iam sempre perdendo um bocado, mas quando queria vender. Aí, tinha que por sempre mais peso do que o real. Era precisa muita arte e paciência para a convencer da sua ilusão.
Só para imaginardes quão desconfiada era só vos digo que contava sempre os fósforos de cada caixa quando tinha que comprar alguma. Tinha mesmo que ter quarenta...
O acesso à casa propriamente dita fazia-se através de uma escadaria exterior que dava para um pequeno patamar sem qualquer guarda. No vão das escadas estava um buraco que servia de capoeira às três galinhas que criva com esmero. De manhã colocava uma escada feita ad hoc em que umas velhas ripas eram pregadas em dois pequenos varais mais parecidos com empas de feijoeiro. As galinhas andavam todo o dia na rua, esparnicavam o que encontravam e à tardinha Ti Surreição chamava-as, tomava-lhes o ovo, subiam as escadinhas, entravam para o buraco até ao outro dia. Ficavam baratas estas galinhas que em dia de festa lá provavam uns farelos mexidos com couve galega !
E por hoje chega.
XXXXXXXXXXXIIIIIIIGGGGGGGGGGRRRRRRRRRAAAAAAAAAANNNNNNNNNDDDDEEE

Desenho de Carlos Matos