terça-feira, agosto 26, 2008

A NOSSA FALA - CXII - MISSEGRA, MISSAGRA, MISSÁGORA

Lembro-me bem: a Melhinha (degenerativo diminutivo de Amélia) do Mnel Penajóia tinha vindo a encomendar uma bilha de gás, mas "que fosse depressinha que o Mnel já tinha ficado a aparelhar a mula para a pôr à carroça e iam para as portelas a cortar as trepolas das oliveiras"...
Lá arranquei no famoso carro quadrado, lagariça acima, ainda com calçada gaga, aqui tinha pedra ali não, e o carrinho a subir custava a empurrar... Não era para todos.!
Tão depressa fui que a Melhinha "inda no tinha aparecido" - tinha ficado na Troa a comprar uma lata de salsichas para o almoço - soubemos depois - e, claro, a conversa pega-se e Melhinha esqueceu-se das portelas e das trepolas...
Foi a minha sorte: o Mnel era forreta, segurava azeite nas mãos, e dar não era muito com ele... Bom, mas àquela hora já pronto e a suar à espera da Melhinha sempre se descaiu : «anda cá que vais a provar o meu». De caminho pegou na malga das azeitonas, e lá vamos... afasta a cortina de chita da tabela que a Melhinha tinha feito e que dependia do tabuado por um baraço com uns camarões e tapava a visão da cozinha para a adega.
Era das poucas adegas onde havia mais do que um copo e sempre uma cântara com água e uma bacia de 'resmalde' para lavar ao fim de cada uso. Colhia obra de um kilolitro e a pipa estava sempre impecável e o tampo tinha uma farrapinho onde se deborcavam os copos sempre prontos para nova utilização. Era escurinha a adega, mas limpinha. À ponta tinha mesmo um lajedo com um pequeno picado onde até se podia comer. Melhinha era um asseio.
Mnel faz chiar a torneira de madeira sempre no sentido dos ponteiros « nunca se volta atrás com a torneira cossenão cria calo e fica a pingar e no é o vinho que se perdia , era o filho de puta do mosquito, esse bêbado dum cabrão, que mal a gente se precata já está aí e a minha ralha como um corno se os cá sente...»
Oferece-me o copo, tiro umas azeitonas , chia outra vez a torneira, enche o dele " isto no é vinho, isto é néctar divino", achei piada, levo o copo aos beiços e aquele travo dos rufetes castelões inebria a pituitária e mais ainda cola-se ao palato e dá mesmo para fazer um AH! « Porra, ó ti Mnel isto é pinga de estalo! cum filha da puta, grande pinga!No vende disto?» "Lá mais pra diente sou capaz, vamos a ver como elas arrebentam e depois logo te digo".
Entretanto chega Melhinha e na sua voz de falsete lá arranja uma desculpa esfarrapada e começa logo com «toca a andar que se faz tarde, no te esqueças de levar a missegra para a porta do palheiro cossenão inda lá vai a raposa a fazer o ninho com a porta assim escancarada»; Mnel nem ouve: "arrefinfa-lhe com outro que disto no apanhas por i".
Lá papei mais dois e pronto: vim que nem um relógio de sala a repetir as horas, todo contente, lagariça abaixo. O carrinho até deslizava... Deslizava o carrinho e a minha cabeça vadiava a ver se descobria o significado de MISSEGRA .
Vinha o velho Marrafa àquilo do Isidoro ali já a meio donde era o olival do Ferreira e "Ó Marrafa, Karraio é uma missegra?" «é um gonzo»; "homessa, atão uma missegra é uma dobradiça?" «atão tu andas a estudar e num sabes o que é uma missegra! No sei karraio aprendendens!» O remédio era engolir e mainada.
Já ao fim da calçada gaga da lagariça, à porta da tasca do Cartola estava o velho Prim, sentado no baturel com a camisa toda aberta e a arrancar escamas de uma queimadela que tinha na barriga... Achei estranho o formato e meti-me: " ó ti joão, atão ali o ti David (era o ferreiro) marcou-o com uma ferradura em brasa como se faz ao gado?!" «tem tento na língua no te caia algum pontapé nas nalgas» "Atão o que foi?" «Isto é a marca de uma farinheira».
Quem acabou de contar a história foi nosso Farnando: O Prim tinha ido a Espanha a buscar um carrego e, fora parte, tinha trazido umas alpergatas e pana para umas calças que o velho Marciano havia de talhar para o Tonho Curto das Águas. Quando o Prim lá foi a levar o material só estava a mulher e o dinheirinho não veio com o Prim naquele dia. Num Domingo à tarde o Prim mete-se a caminho para ir ver do dinheiro e encontra o homem em casa. Lá se cumprimentam, o dinheirinho passa para o Prim e o Tonho: "Vou ali à loja por um pichorro de vinho". O Prim vê a farinheira na panelinha de ferro, agarra num gravato tira a farinheira da panela e já o Curto assomava à porta. O remédio foi meter rapidamente a farinheira fervente debaixo da camisa, beber o copo à pressa e desandar para conseguir aliviar a dor da queimadura. Depois todos brincavam com o Prim: "querias uma farinheira mas ficaste com duas."
Prim pagou uma rodada mas mamou a farinheira sozinho.
O Curto ainda hoje está para saber como é que a farinheira saltou da panela ao lume.

segunda-feira, agosto 04, 2008

A NOSSA FALA - CXI - COSSENÃO

Resolvi trazer-vos hoje uma novidade. Espero que gosteis. Às vezes a gente põe-se a escrever e as palavras vêm sem pedir ordem e as ideias juntam-se e formam um cozinhado que, ora sai apetitoso, ora arisco. Ao fim de ter escrito isto disse: não está mau. Só por isso vo-lo deixo. faz lembrar o início da Casa Grande de Romarigães, do não menos grande Aquilino: quis fazer um gamelo para o cão e saíu-me um tropesso. Quando comecei não sabia onde ia parar. Deixei-me ir. Se quiserdes fazer a viagem comigo acompanhai o trajecto.

Chamei-lhe o REINO DO COSSENÃO

Nunca estamos sós cossenão não tínhamos para quem escrever e assim era tempo baldado este que aqui agora despendo. Um homem casa-se para não ficar sozinho e ter quem lhe coce as costas cossenão tinha que alisar as esquinas das paredes. É neste reino do cóssenão que vive o Calado que diz tudo cossenão "arrebentava" e um Calado se "arrebenta" fala. Foi por isso que um dia me disse o Calado: Dizem que disse ou tenho dito é o que se diz quando já se disse o que se tinha para dizer; ora como eu ainda não disse o que tinha para dizer não posso dizer que já disse; por isso digo e torno a dizer que tenho que dizer o que tenho para dizer cossenão este reino do cossenão não diz o que tem para dizer e deve ser dito e isso não fica bem ao Calado que tudo diz. Há outros que eu conheço que pertencem a um outro reino que é o dos Cus Aqui Estão que falam com o dito e por isso valia mais que estivessem Calados mesmo não se chamando Calados como eu que calado tenho que falar. A mim nada me acontece quando digo o que tenho para dizer porque sou Calado e assim posso dizer que disse quando já tiver dito o que tinha para dizer. Portanto aqui fica dito que disse o que era para ser dito; portanto disse ou tenho dito que é como quem diz que já disse o que disse. Disse.

Aqui ficam as regras para aqueles que quiserem pertencer a este reino do cóssenão:

1- Escrever a preto em papel branco

2- Contar contos sem os contar

3- Dizer coisas sérias a rir

4- Ser do contra quando se está a favor, só se fazer cada vez melhor

5- Ser lógico até no absurdo

6- Ter sempre à mão o que está ao pé

7-Ter sempre ao pé o que está à mão

8-Cortar no cortado

9-Bufar sem cheirar

10- Falar calado

11- Ouvir o barulho do silêncio

12- Fazer festas à bruta

13- Ser pai e filho

14- Comer sem abrir a boca

15- Fechar os olhos para ver melhor

16- Dar um passo atrás antes de avançar

17- Confessar os segredos

18- Ver o belo no horrível

19- Sentir a vida na morte

20- Ter a certeza da dúvida


Tendes que cumprir esta regras cossenão nunca entrareis neste reino do cossenão.

Pela vossa paciência vos ofereço uma poesia em prosa:

É parados que viajamos

é empinados que nos sentamos

é sem pensar que julgamos

é sem pesar que avaliamos

é a dormir que acordamos

é sem falar que escutamos

é sem ralhar que vingamos

é sem andar que vamos

é sem querer que amamos

é sem luz que apalpamos

é calçados que nos descalçamos

é a sós que nos damos

é por nada que nos entregamos

é por pouco que lutamos

é pelos outros que nos preocupamos

é pela diferença que nos igualamos

é pelo desafio que paramos

é pelo descanso que trabalhamos

é por cair que nos levantamos

é por saber que erramos

é a brincar que poetamos



Deixo-vos um Xi. Hoje não houve xendros. Logo voltam.

sábado, agosto 02, 2008

POR MOR DOS ANOS DA MINHA

A raça humana já produziu muitos génios. Também já produziu muitas bestas. Se calhar, o mais certo é que, em número, os primeiros sejam batidos pelos segundos. Daí que a probabilidade de fazermos anos no mesmo dia que um génio é inferior à probabilidade de os festejarmos com uma besta.

Acontece que a minha Patroa nasceu no mesmo dia que um desses génios. Por mor disso, aqui vos fica o ZECA .

(é só escolher e ficar a ouvir)