Agora namora-se às claras. Dantes, nem pensar! O arrastamento da asa era coisa, não raro, tumultuosa: ele era o recado ao ouvido no baile da garagem do Cavalheiro, o encontro furtivo no chafariz, a piscadela de olho à saída da missa do dia, aos domingos, as combinações em carta metida no meio de livros de uma amiga confidente e concordante, um piropo recatado, mas com alguma provocação, o fazer parte do mesmo rancho no tempo da colheita da azeitona, alguns bailes particulares na garagem ou loja de uma que tivesse os pais em França e assim não haver empanques, algum magusto na encosta da serra ali para os lados do João Ratão e da Carochinha, enfim...que sei eu?
A oficialização do namoro ocorria quando o senhor prior lia os banhos do alto do altar: " D. Maria Cândida Peixota, filha de uma burra e neta de uma porca, quer contrair matrimónio com o senhor João Feijão, filho dum burro e neto dum cão. Se alguém souber de algum impedimento contra este dois animais, um leva a albarda outro leva os atafais, e é para esses que eu falo, deve declará-lo com juramento" .
Os menos atingidos pela pobreza compravam os banhos (ou pregões) e esses só tinham os editais colados com farinha amassada na porta da igreja, antes do guarda-vento. Tempos!
As primeiras amostras públicas do par de namorados, ele com uma camisa branca TV, com os punhos virados e colarinho de palmo, em bico pronunciado, um colete justo onde brilhava uma corrente que segurava no bolso pequenino um relógio marca Comboio e ela de casaco e saia beges, camisa de lantejoulas, meias de vidro cor creme e sapato também ele pardo, só depois da benção paterna. Era vê-los - estrada abaixo, estrada acima, ela com os braços cruzados, um olhar de soslaio de vez em quando e ele, corta unhas marca Trim, made in USA, girando freneticamente em torno do indicador, preso como estava a uma pequenina corrente de bolinhas e a outra mão no bolso. O sapato reluzia - . De mão dada só quando iam a casa dos padrinhos a levar o arroz doce e uma bandeja com bolos de leite, esquecidos, borrachões e uns cascuréis (=coscorões), para além de umas cavacas e um bolo de buraco, de noz ou amêndoa, não raro ainda quentinho,já quase em vésperas de casamento. Nessa altura já iam ao lusco fusco sem guarda nupcial (irmã ou irmão mais novo da noiva) e, claro, ao virar da esquina ele puxava-a e, PIMBA! espetava-lhe uma beijoca na cara. «Vê se tens modos», dizia ela.
Antes deste ponto, porém, tinha havido o clássico pedido: "ao que venho, venho, oh! que digo, digo, venho dizer à menina, se quer casar comigo". Era assim. A mãe dela era a primeira a saber das intenções do magarefe e preparava o pai: "Ó Chico, olha ca nossa Rosa quer cá trazer o Tonho da sarmaga; parece que o cachopo lhe falou bem e ela não está fora. Vê lá tu quando é que ela to pode cá trazer". E o pai «já tiraste inculcas do moço? Ele não é filho além do Faz Nada?» E a mãe: "Faz nada, não, que tem oito filhos!" E o pai: «A modos que ainda comem lá em casa em mesa de engonço e se alumeiam a candeeiro de sessenta luzes! A ti Catrina, a mãe, coitada, nunca tem nada para pôr na mesa que o Faz Nada não lhe dá troco. Tira lá isso a limpo e depois diz que pode cá vir aí no sábado à noite.» (Esclareça-se desde já: a mesa de engonço eram os joelhos e o candeeiro de sessenta luzes era uma pinha acesa).
Lá apareceu o Tonho. Bateu à porta. "Entre quem é". Descobriu-se o Tonho,subiu para a soleira da porta, uma mão no peito e a outra a segurar o chapéu: «Vossemocê dá-me licença, ti Chico? Boa Noite nos dê Deus! « "Entra lá Tonho. Podes pôr o chapéu na cabeça que o telhado não tem cocas» "Com sua licença. " «Senta-te aí nesse trapesso enquanto eu vou por uma pchorra de vinho. Não me demoro nada»
Entretanto Ti Deolinda e a Rosa chegaram. 'Boa noite' ! disseram quase em uníssono.
Tonho olhava de soslaio a Rosa, a mãe interpôs-se entre ambos, o silêncio era cemiterial.
Ti Chico surge da loja com o vinho: «Parece que meto medo! Tudo tão calado. Eh! cachopa, chega aqui dois copos e põe aí uma azeitonas, ao menos.»
A Rosa adiantou-se: "sabe, pai eu e o Tonho"...; «És tu que o pedes a ele ou é ele a ti?» Aí o Tonho afoitou-se: «Pois é, ti Chico, eu gosto da sua Rosa e, a meu ver , ela gosta de mim. Se Vossemocê não vê mal nisso eu queria-a namorar!» " Toma tento no que te digo: só tenho esta filha. Quando ela nasceu eu já sabia que não podia ficar com ela. Se ela quer ir contigo que vá, mas se algum dia a tratares mal ou a enganares e eu souber, é melhor desapareceres pra sítio onde nem o diabo te encontre. Entendeste? " «Sim senhor, ti Chico. Fique vossemocê descansado. !» "Bom: namoras às quartas e aos sábados, aqui em casa, à noite, até serem horas de cama e aos Domingos podeis passear por sítios onde toda a gente vos veja, que eu não quero cá maledicências." « Sim senhor ti Chico!»
"Bebe o copo, anda! " Tonho tremia... deu um golo no copo.
«Eu sei que sou mais pobre, já acabei a tropa e vou outra vez pra marcenaria a ver se arranjo uns patacos...»
«Isso é bom! Com o tempo logo se vê. Eu ódepoi logo vejo se merece a pena ajudar-te. Primeiro tens que saber o que custa a vida. Eu vou-me à cama. A Deolinda quando entender que vá lá a ter!»
E foi assim.
A casa da Rosa já tinha luz eléctrica. Estavam a pensar comprar uma televisão. O Tonho já a tinha visto na tropa. A Rosa fora um dia à casa do Chico Sarapião, regedor ao tempo, e toda a noite sonhou com aquilo: os retratos mexiam-se, iam e vinham, falavam como as pessoas, até parecia que era verdade!
Aquilo sim , ruminava o Tonho! não há cinza e não é preciso estar sempre a mudar de pinha como lá na casa da mãe. Não era preciso atear a ala nem acender pavio com palito feito de esteva seca, quando, às vezes, se acendia a candeia de petróleo. E a mais, não cheirava! Dizia de si para si : «ele há coisas dum filho da puta!»
Mais espantado ficou ainda quando a Rosa se levantou e foi buscar um gravador de fita: um FIDELITY, rebobinou a fita com a patilha, pressionou a alavanca de início, e, baixinho, que o ti Chico já ressonava, começaram a ouvir Joselito em : el pequeño roxinol. O Tonho não queria crer! Levantou-se a remirar.
«Ó Rosa vê lá se o teu pai ao Domingo precisar de ajuda lá na fazenda, eu não sei muito, mas vou-o a ajudar.» " Eu precuro-lhe," disse a Rosa.
Pouco mais disseram. Ali estavam a ouvir a música, a ver o lume, essa companhia muda, a olharem-se, lá sorriam um para o outro, estalava-lhes o coração, a ti Deolinda escabeceava, mas um estalo da lenha de pinho acordou-a e pronto!
«Vá, por hoje chega! vamos à deita.»
O Tonho deu as boas noites, uma manzada à Rosa e aí vem: 'Até têm uma mesa de vidro com um pé ao meio! E cadeiras de encosto! Assim não é preciso a gente estar curvada de cabeça para baixo para levar a comida da mesa de engonço até à boca. Se calhar também não comem só caldo de couves como lá na casa da minha mãe. Bem se lembrava ele da história que o abrutalhado do pai quase sempre contava: "Ó Arnaldo, queres caldo? Não que me escaldo! Eu antes queria pão, mas como o como se não mo dão?"
Eu não sabia que era assim a casa da Rosa!
O amor não aumentou, porque já não podia ser mais.
Nessa noite o Tonho, quando se espojou na enxerga de palha de milho, jurou:' Quando eu me casar com a Rosa já hei-de ter uma mesa de castanho com quatro patas e seis cadeiras de encosto e um espelho para pôr na parede! Rais ma partam se não hei-de. Não hadem fazer mangação de mim. E a canalha que eu tiver nunca há-de comer só caldo e menos ainda na mesa de engonço. Se não tiver luz eléctrica hei-de arranjar um petromax que até de noite se hadem ver as espinhas ao peixe miúdo. Olarila!
Dormiu-se assim !