segunda-feira, setembro 26, 2011

SYMPOSIUM ET CONVIVIA MMXI



Idos septembrini MMXI

MATINAS / PRIMA

v    Passas de quem passou por ninguém ter passado coadjuvadas por imo de duplo encascamento
v    Abafado misto rememorante do ano transacto

LAUDES
 
v    Lascas de entripado porcino seco em fumo de azinho
v    Abanos tapadores de olhos para não poder ver a porca da sua mãe, em salsa coentrina, acetizados, miscegenizados com bolbo choroso e dentado
v    Misto de leguminosa de cara verde garantia de aerofagia com lombo de bonito levemente picante e bem regado com sumo de oliva de baixa acidez
v    Frisante gelado arrotante e descomplexado
v    Amostras de transmontana iguaria em várias modalidades

NOAS
 
v    Caldo entulhado de leguminosa amarela com verdura quanto baste, sampaio, tubérculos vários, mantraste manso, bem adubado com naco traseiro bem curtido
v    Nacos de glândula de função glicogénica ao braseiro e sertã sempre bem alhado
v    Oriental cereal, levemente aguado e tostado em abóbada embranquecida e intestinado com chicha marrecal, criação da quinta do lírio como se impunha
v    Acompanhantes diversos em várias cores
v    Báquicos odores e sabores
v    Casqueiro genuíno
v    Bifes de caroço à moda antiga
v    Coalho fermentado de diferentes proveniências
v    Pentix agronómico à moda do manteigas
v    Negro fumegante e aromático
v    Destilados simples e triplos

VÉSPERAS

v    Continuação de báquicos, destilados e fermentada de cevada em recipiente orvalhado
changoto dixit

 

Alambasação de MMVIII
Embandulhamento de MMIX
Entulhamento de MMX



quinta-feira, setembro 01, 2011

A NOSSA FALADURA - CLXX - ARRONDEAR



Aqui no Baságueda temos a balda de recorrermos à Filosofia, à Sociologia, à Física, sei lá, até a Astronomia e a Culinária já cá foram convocadas, para enquadrar as histórias que se contam à pála da nossa faladura. Ficamos bem, digo eu, no daguerreotipo, quando fazemos a pose de intelectuais, ainda que os raciocínios sejam apertados com algum arrotcho. Creio que ainda não tinhamos lançado a linha à Antropologia. Calha hoje.

Guardo duas imagens da Ti Eugénia Barrocas, ambas com couves: ela com um enorme braçado de couves equilibrado na molídia e um caldeirinho de lata numa das mãos; ela a empurrar um carro de mão carregadinho de couves. Ambas no mesmo cenário: a subir os 300 metros de estrada entre o aidro e a sua casa.  Mas a faceta mais marcante que dela igualmente guardo tem a ver com o ritual algo original que ela realizava com uma simples nota de vinte escudos – uma espécie de KULA à moda xêndrica como adiante se explicitará.

Ainda as 8 não tinham batido na torre saía ela de casa com uma nota de vinte escudos cuidadosamente dobrada e acondicionada num lenço de mão lavado, e ia descendo a estrada no intervalo das muitas paragens para dar ao lambarão, a melhor forma de actualização informativa naquele tempo. Uma hora depois já estava a entrar na primeira loja, do Senhor João Robalo:

- Eh! Senhor João, faça-me lá um favorzinho, destroque-me lá esta nota de vinte mil réis, ande qu’ê qando vier pra xima já lhe trago umas couvinhas.

No interior já estavam algumas donas de casa a ver se o pouco dinheiro chegava para o meio quilo de açucar amarelo e para o pacote do arroz, com quem a Ti Eugénia prosseguia a quotidiana troca de informação sobre a vida da aldeia.
Do mesmo lado da rua, duas casas abaixo, visitava de seguida a loja da Rosa do Cunha (exacto, essa mesma):

- Eh! Rosa, atão tu precisas de trocos? Ê trago-te aqui vinte mil réis destrocadinhos para ficares mai arrondeada.


Claro que os trocos davam sempre jeito, sobretudo para quem aparecia a comprar 2 escudos de fermento, 5 tostões de brochos, um envelope de quarenta centavos e pedia à Ti Rosa que telefonasse para a filha em Lisboa, e lhe perguntasse se sempre vinha ao Senhor S. Bartlameu. Ti Eugénia ia destrocando e trocando informação.
Com a nova nota na mão, descia mais um pouco à loja do Tó Robalinho:

- Eh! Senhor Antónho, faça-me lá um favorzinho, destroque-me lá esta nota de vinte mil réis, ande qu’ê qando vier pra xima já lhe trago umas couvinhas.

A partilha de informação estabelecia-se agora com quem andava a precisar de fazenda para fazer uma saia ou linhas para coser as meias rotas.
A paragem seguinte era na taberna do Xico Miguel:

- Eh! Senhor Xico M’guel, atão vomecêi precisa de trocos? Ê trago-lhe aqui vinte mil réis destrocadinhos para ficar mai arrondeado.

Ao contrário dos anteriores, o espaço era agora dominado por homens, mas a informação continuava a circular e era complementada no mesmo registo na paragem que se seguia, outra taberna, a do Fatela:

- Eh! Compadre, faça-me lá um favorzinho, destroque-me lá esta nota de vinte mil réis, ande qu’ê qando vier pra xima já lhe trago umas couvinhas.

Regressava às interlocutoras fémeas na loja do Joaquim Argentino, dedicada também às fazendas e ao alimentar:

- Eh! Senhor Joquim, atão vomecêi precisa de trocos? Ê trago-lhe aqui vinte mil réis destrocadinhos para ficar mai arrondeado.

Por volta das 11 da manhã já só lhe faltava trocar e destrocar a nota de vinte mil réis  - bem como o bloco informativo - nas tabernas do Zé Rolo, do Zé Julho, do Zé Cavalheiro e na drogaria do Xquim Fástino.
Noutro dia, haveria de oferecer os trocos onde antes os tinha pedido.

Mais ou menos sem querer reencontrei há dias um antigo trabalho feito no âmbito de uma das cadeiras que mais me agradaram nos tempos em que era estudante profissional, Antropologia (introdução à, claro), baseado num livro policopiado de um dos pais da Antropologia Social, Bronislaw Malinowski, intitulado “Los Argonautas del Pacífico Occidental” assim mesmo em espanhol porque não havia em português, no qual o autor descreve o trabalho de campo que realizou no início do século passado no seio da tribo Kiriwina, nas longínquas ilhas Trobriand, Polinésia, perto das nossas antípodas. Na obra, o autor dá-nos conta do extraordinário fenómeno que ele aí encontrou e acompanhou, designado KULA, um sistema de trocas simbólicas praticado pelos nativos trobriandeses. O livro é riquíssimo em variados aspectos, mesmo para a própria ciência antropológica, mas o que interessa realçar aqui são aqueles que nos ajudam a compreender o ritual da Ti Eugénia.

Muito telegraficamente, o KULA configura uma troca de objectos entre as comunidades, cujo valor era simbólico, essencialmente de utilidade estética; era efectuado num circuito determinado pelas dezenas de ilhas que compõem o arquipélago, em que os colares de concha vermelha circulavam no sentido dos ponteiros do relógio e as braceletes de conchas brancas no sentido inverso; o momento culminante acontecia quando se trocavam, cerimonialmente, colares por braceletes, prosseguindo-se para a próxima destroca de braceletes por colares. No ritual não havia qualquer noção de posse permanente dos objectos, logo, estava expurgado todo e qualquer resquício de intenção de obter lucro – uma “coisa” inventada pelo capitalismo no mundo ocidental – mas tão só a oportunidade para se estabelecerem relações sociais, fortalecerem alianças e mesmo conquistar prestígio social, conseguindo assim garantir a protecção mútua e a proscrição de conflitos entre as comunidades.

No KULA da Ti Eugénia Barrocas estava lá o valor simbólico da nota, o circuito, os colares e as braceletes, ela não visava o lucro, “apenas” pretendia alimentar as relações sociais e a sua integração na comunidade. As couves aparecem como elemento estranho, para arrondear, só compreensível no quadro do incentivo capitalista para o lucro associado ao “favor”, ainda assim, manifestamente insuficiente para justificar a intromissão de uma qualquer agência de rating ou de uma qualquer troika.