terça-feira, outubro 11, 2005

A NOSSA FALA XXXI - CABANIR

Se nalguma afirmação Sto Agostinho tinha razão era no que ao tempo diz respeito: " se não me perguntam o que é o tempo, eu sei o que é o tempo, mas se me perguntam o que é o tempo ,eu já não sei o que o tempo é." Afinal é assim mesmo. O que é, está sempre a deixar de ser e o que ainda está para ser, ainda não é, pelo que, o que é, é a efemeridade. Tudo é efémero. Por isso mesmo tudo é eterno. É neste sortilégio daquilo que o velho Heraclito deixou lapidarmente escrito no seu mais que famoso: «PANTA REI», (tudo flui) que se se busca o instante do que é, e que o não menos velho Parménides deixou para a posteridade :« o ser é e o não ser não é e é necessário que não seja». Platão tentou a conciliação destas antinomias aporéticas introduzindo a verdadeira noção do relativo: o que é , é, enquanto é o que é, e o que não é não é enquanto não é o que os outros são. F. Chatelêt, mais perto, sumarizou: em tudo o que muda algo permanece, e, em tudo o que permanece, algo se altera.O tempo é mesmo assim : está sempre a mudar e nós com ele, mas cada uma das nossas fotografias seguram o tempo reduzindo-o ao instante: este sou eu. Afinal certo seria: este era eu.Verdade é que tendo-me eu alterado, nunca deixei de ser eu: sempre o mesmo e a cada instante sempre diferente.
O mesmo se pode dizer da arte: ela é sempre contemporânea do seu criador que por longa vida que viva é sempre efémero, mas a sua perenidade eterniza o autor fazendo ecoar o seu nome por todo o sempre.
Pensáveis vós que o blogue era só bizantinice chocarreira? Tirai daí o sentido e ide já roendo esta como aperitivo, que mais se avizinham para vos acordar da letargia hibernal a que vos projectais. ARRIBA!
Talvez não seja falso asseverar que aqui há trinta anos atrás cerca de 40% da população portuguesa era maioritariamente agrícola. Bem me lembro eu das searas que ondulavam ao vento até à marvana e serra da raposa e tudo à volta da aldeia era semeado.Ranchos formavam-se e tomavam hectares de quinto, ceifando tudo à mão ou mesmo já com ceifeiras debulhadoras . A verdade é que se cultivava. Os beirões, e não é por acaso que a canção da Eugénia Lima os eternizou como rijos e morenos como o granito, se bem que pequenos, não se confinavam à sua região. Trabalhadores como eram , partiam em demanda do Sul e por lá andavam, na peneplanície alentejana ceifando e malhando o grão. Eram os RATINHOS.
Miguel Arcanjo, de todos conhecido por CAIXA,- vá-se lá a saber porquê -tinha acabado de casar com a Miquelina do Pão Finto. Era esta uma cachopa com tudo no sítio. Faltava-lhe talvez um pouco mais de altura, mas isso era consequência das cântaras de leite que todos os dias acarrejava à cabeça, do Prado até à Aldeia em cima de molídia bordada. Algum desse leite ainda eu bebi e foi ela que me ofereceu o leite para o arroz doce do meu casamento.Tal pequeno atamancamento era compensado por umas mamas a quererem espreita da blusa justa, redondinhas, de encher o olho e a mão - não a minha, é claro - e por um traseiro que se arredondava por debaixo de uma cintura quase de vespa. A carinha era uma maça camoesa: sempre coradinha, cheia ser ser lorpa.Um encanto! O Caixa teve olho!.
De ofertas de casamento tinham tido 10 notas de 100 mil réis, 21 de 50 e uma boa mão cheia das de cinte escudos. Tudo somado pouco mais de dez contos. Coisa nenhuma a bem dizer.Mas se havia gente a quem o trabalho não metia medo era ao Caixa e à Miquelina.Lá conseguiram dois dias de descanso por mor de se aquecerem um ao outro e se avezarem a dormir juntos na mesma cama.Mas...« Este encanto de alma ledo e cego» nunca « a fortuna deixa durar muito».
A Miquelina estava habituada às panelas de ferro e às trempes. O Caixa também. Só que o Caixa disse à Miquelina: amanhã à noite, aí por essas onze, vamos estar atentos.Quando alguém tossir vamos abrir a porta que te comprei uma prenda.O homem vem cá a trazê-la de noite por causa das coscuvilhices.» Miquelina bem quis tirar os nabos da púcara, mas Caixa fechou-se. à hora tratada alguém tosse, Caixa até tinha oleado a fechadura por via do barulho da chave, e aí entramos como sombras eu e o meu pai: eu com a bilha do gás ao ombro e meu pai com um fogão Leão de três bocas, forno e prateleira para a Miquelina. As explicações de funcionamento foram rápidas e não tardou, eu e meu pai pusemo-nos a CABANIR. Ainda retenho os olhos incrédulos e o esgar de boca de espantada da Miquelina. O Caixa traçava-a pela cintura e ela: está quieto, tu não vês as pessoas? O que é que hão-de dizer? O Caixa mais apertou. Tenho a firme certeza que nessa noite houve fogo na cama de ferro de Caixa e Miquelina.
O que é bom dura pouco e, naturalmente , forçoso era que um e outro voltassem ao trabalho que quando se tira e não se mete depressa se acaba. Assim, muito a custo, Caixa propõe à Miquelina: eh! cachopa eu vou até lá abaixo ao alentejo, faço um mês de ceifa de ajuste e arranjo por lá uns trocos . De dia, ceifo à linha e, à noite, corto-lhes o cabelo ( o Caixa tinha jeito para a arte da tonsura) . Ganho duas vezes. Miquelina, a princípio, não queria, mas lá aceitou. O fogão adiantou as primeiras refeições do Caixa, Miquelina foi-se à casa da mãe e pediu-lhe uns chouriços, um bom naco de presunto e uma valente tora de toucinho, trouxe ainda três pães caseiros, uma bolsa de feijão grande seco, uma lata de feijão malhinho e umas boas mão-cheias de grão. Foi-se ao Trem e comprou uma valente peixota de bacalhau, encheu-lhe a infusa de azeite e botou-lhe umas pedras de sal num trapo para as primeiras impressões. Embrulhou-lhe as trempes numa saca se sarapilheira e recomendou-lhe cuidado com a sertã de esmalte . Manhã cedo meteram tudo numa espécie de alforges e aí vai o Caixa ver dos alentejanos.
Foi limpinho: a aparência saudável do Caixa, associada à sua característica humildade, de imediato lhe possibilitaram trabalho. À noite faltava-lhe o calor companheiro da Miquelina, mas a lembrança dela, à luz de uma pinha rabiscou umas linhas apaixonadas que me dispenso de reproduzir e pediu ao manageiro que lha metesse no correio.
Quando o Cartas deixou a carta por debaixo da porta da Miquelina não sabia que tinha despoletado a mais feroz paixão de mulher por homem, ultrapassando mesmo a de Inês por Pedro. Quando Miquelina vê aquele envelope e reconhece a letra do Caixa, com a pressa até rasgou o papel. Leu e releu. Chorou. Nem jantou. Procurou e não achou a caneta de aparo para responder. Dormiu mal. Encarregou a vizinha de lhe mercar uma carta e uma caneta nova. Esqueceu-se mesmo do vivo. Quando ouviu o galo é que lhe veio à mente que as galinhas e o porco não tinham ceado.
Durante o dia de quintos foi escrevendo a carta na cabeça. Quando chegou a casa foi só traduzir em letra as suas amarguras e desejos. Acabava assim: "Olha Miguel! ou tu te pões a cabanir daí para fora depressa ou eu não respondo por mim. Dou-me a outro". Caixa não queria acreditar no que lia. Respondeu na volta do correio. Que esperasse mais um pouco, que o dinheiro daria para comprarem um aparador para a loiça, uma quadro da última ceia e até para meterem a luz eléctrica no princípio do Outono. Miquelina leu, via a razoabilidade do Caixa, mas a natureza tem muita força e logo exige: "Se da próxima vez me aparecer uma carta em vez de ti, não estranhes o que te pode aparecer na testa".
Com filha da puta! berrou o Caixa. Foi-se ao manageiro, pediu as contas e ainda nessa noite pôs-se a cabanir para apanhar o combóio. Chegou a casa da sogra, que morava mais perto da estação, começava o dia a clarear. "Karraio! atão já voltaste?" "A culpa foi da Miquelina" -"O quê, está doente?" - "Não" - "São cá umas coisas".
Olhe lá, empreste-me aí o seu burro que ir com esta tralha às costas trava-me a marcha.
Caixa carregou o burro e pôs-se a caminho. O burro nunca tinha dado tão depressa à nalga. Caixa meteu-lhe uma silva debaixo da albarda e o pobre do Ruço quase voava e o Caixa atrás dele.
Já perto de casa reparou que o burro tinha o bastão esticado e que mostrava os dentes arreganhando o lábio superior: " ouve lá ó meu filho de puta: a carta era pra ti ou pra mim"?
Apanhou Miquelina ainda ao fogão a meter o caldo na merendeira para o almoço nos quintos.
Quando irrompe pela casa dentro colaram-se. Foi um cabo dos trabalhos para se separarem.
Miquelina mandou recado que não ia ao quinto e Caixa foi-se a ela como gato a bofe.
O amor é mesmo um animal de duas costas.
Percebestes agora porque é que eu vos deu cabo da mona com o tempo do Sto Agostinho!?
O tempo é longo ou curto conforme se goste ou não do que se faz e com quem se faz. O Santo é que nunca conheceu uma Miquelina!

13 comentários:

Anónimo disse...

Senhor Changoto, o que Vossa Excelência almeja já eu descortinei!

Anónimo disse...

Karraio almeja o changoto, ó anónimo. Não descortino o que tu almejas.

Anónimo disse...

E eu não almejo o que o anónimo descortinou.

Anónimo disse...

Ao anónimo, se é que ainda anda por aí: identifica-te e explica-te.

Anónimo disse...

Já agora vou também cabanir daqui para fora......

Anónimo disse...

Antes que se ponham todos a cabanir (parece que alguns já o fizeram), vou dizer qualquer coisinha:

Confesso que no início fiquei confusa e tive de ler a primeira parte do texto muito pausadamente. Por fim lá prossegui e às tantas dei por mim a ler a uma velocidade tal, ansiosa por conhecer toda a história, que até me atrapalhava na leitura, e por mais de uma vez tive de voltar atrás. Ao longo da minha vida de leitora alguns livros e textos houve que tiveram a virtualidade de produzir em mim efeito semelhante. Tanto quero absorver o texto que os olhos são mais rápidos que o pensamento e vejo-me obrigada a reler frases e parágrafos. Neste espaço Baságueda isso tem-me acontecido com alguma frequência. E gosto.

Anónimo disse...

Vou guardar a leitura deste Post, como faço com aquilo que mais gosto, preparar a minha felicidade, para viver o momento como sendo o melhor, vivido até hoje.

Anónimo disse...

Lembro-me da minha namorada amália de penamacor, que hoje mais alarido faria, não tivesse ela pele cor de rosa escuro/boa como o milho que não nasce cá. Ninguem, traria hoje como ontem vontade de falar sobre. Mas a minha viagem e o destino dela, transformaram essas cartas recebidas na tropa, no segundo e último acto. Só mais um episódio sentido particularmente. Não sei qual é o Satélite que usas, mas deve ser o de quando respiras o ar da Aldeia, é um ar denso ás vezes, mas certamente o ar mais respirável do Mundo. È duro ver a realidade resumida á nossa interpretação "in loco", mas a alma jamais se pode resumir aos presentes, cuja alma é mais tendênciosa, quase sempre mais passiva, salvo se fores o Prior. Digo eu. Certo é que o jornal o Xendro (algumas saudades) não tinha a amplitude Galáctica deste Blog.

Anónimo disse...

Pensei vir a este Post, outro dia. Mas e a vontade, era suposto falar sobre o Meio Pau, e a alma que tem, para o negócio que desenvolve, fico ás vezes preocupado onde anda? a alma do bacano, não pode ser só pelo reconhecimento "pessoal"? dá-lhe gozo! Será que eles subiam se ele supostamente, não tivesse controlo.

CanisLupusSignatus disse...

sábiamente, vou optar por me reduzir à minha insignificância... há neste espaço saber demais para conseguir absorver... são anos de traquejo, de vivência, de sapiência, de talento, de alegria, de sofrimento, de sapos engolidos e de coelhitos vomitados... MAGNÍFICO, SOBERBO, BESTIAL, FANTÁSTICO, VERDADEIRAMENTE ÍMPAR...,MAGNÂNIMO, TITÂNICO...

Anónimo disse...

Ò lobo bom, como todos esses, em via de nunca mais fazer oooiii. Tu és um puto fixe, ouvi isso muitas vezes com revolta relativa, sempre controlado também,. Com calma relativa, soriso, sem esse r que ás vezes estraga tudo, porque até tem piada, mas somos putos, e o assunto já vai longe "noutro" sentido. E quem ouve é sempre quem não quer, ouvir, outra vez, de um puto, era só o que faltava, já me aconteceu, mas depois deixei de ser puto, eu não queria, mas não me deixaram, fui obrigado, È terrivel, Muito duro.

Anónimo disse...

aáaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaas vezes, não é facil ter coragem, para te reler. Descobrimos sempre, qualquer coisa nova. Muito perigoso. Mais grave é conseguires, por agente a escrever, mesmo que nada pareça ter sentido, dentro do nosso mundo e o meu é como sabes bem "desarumado", isto não é uma desculpa é uma defesa, porque será que me apetece ter saudades da Amália. Devo estar como é que é? andro, qualquer coisa, se for o caso os sintomas, começam por ir ao mais puro, ao mais fundo, ao mais ardente da nossa vida, á liberdade total que vive por breves momentos, por ser um conjunto de circunstancias, jamais conjugaveis, por ser o fim da nossa liberdade, como alguns dos classicos gregos onde bebeste diriam, puta que pariu, somos tão breves, que nem tempo temos, para saboriar a felicidade. Apenas podemos dizer arriscando, já ouvi falar.

Pratitamem disse...

Meu Deus, a Amália de que eu falava, ainda é viva, está cheia de filhos, nasceu em Penamacor, tem descendência marcadamente africana, era linda em 1987, não voltei a ver aquela sedutora rapariga de ar africano, sei que se fartou de procriar e ainda bem pro pais, não não consta que canta-se o fado. Pelo menos nunca dei conta, nem dessa vez em que eu, quase perdia perdia os 3!