terça-feira, fevereiro 04, 2014

A NOSSA FALADURA - CCIX - CAÇULHO

É lugar comum que nas aldeias as pessoas sejam mais conhecidas pelas alcunhas do que propriamente pelos nomes ou apelidos. Há mesmo alguns muito engraçados. Por muitos levantamentos que se façam nunca se consegue uma lista exaustiva e, menos ainda, da origem, ou sequer da justificação para essa alcunha.
Dou alguns exemplos: mama na burra, mija a parede, caga e torce, borra botas, papa arroz, alfácea, olho de lata,... Trago-vos hoje duas alcunhas de um casal para as quais não vislumbro a mínima justificação.
Maria TchanTchan Três e Dois são Cinco era casada com Mnel Tendeirinho. A casa onde,  mais ela do que ele, moravam ficava no alto da lagariça, ali no beco do Belorico, quando se vira no gaveto do Balão. Casa térrea de uma única divisão onde tudo se fazia: lareira, comida, dormida..., tudo. Tinham uma filha. Tendeirinho passava a maior parte do tempo em Lisboa. Vivia em Campolide no Bairro da Serafina, num tugúrio miserável, trabalhava como servente de pedreiro. Ganhava pouco e pouco mandava para Maria TchanTchan. Ambos analfabetos, nem por carta comunicavam. Tendeirinho vinha uma vez ou duas por ano à terra xêndrica e por pouco tempo. Nunca gozou férias. Tchan Tchan ia fazendo uns jornais na sacha do milho, na sementeira da batata, na plantação do eucalipto, na apanha da azeitona. A filha ia sempre com ela para todo o lado. O dinheiro não o conhecia. Viviam uma vida miserável. Pouco sociáveis, passavam a maior parte dos dias no casebre e era muito raro vê-las naquilo a que se chama O POVO. Tinham uma pequena horta, à renda, ali para os lados da quelha funda, onde cultivavam o pouco que comiam. Tendeirinho quando vinha, levava o que podia e que não podia ser muito, porque tinha que carregar com tudo às costas desde a estação de Campolide e era sempre a subir até à sua palhota. Tal como Tchan Tchan, também era muito reservado e mesmo os xendros que viviam perto dele chegavam a não o ver durante meses. Quando queria que Tchan Tchan lhe enviasse algum cesto com batata, cebola, alho, feijão e o mais que a terra dava, Tendeirinho dirigia-se à estação dos correios e fazia aquilo que se chamava, à época, (e não há assim tanto tempo como pode parecer) uma chamada de aviso. Consistia esta via de comunicação em o requerente pagar para que o titular do posto de telefone de destino fosse avisar o destinatário da chamada no prazo máximo de duas horas. À hora aprazada chegava, então, a ligação da estação de origem e a pessoa podia falar com quem desejava, num qualquer posto público. Estes postos públicos tinham uma cabina para a qual havia uma extensão telefónica a partir da qual os clientes falavam. A privacidade era nula, porque, em regra, essas cabinas estavam tão empenadas que as portas, quando as tinham, nunca fechavam. Era na loja dos meus pais que estava o posto público. Lembro-me uma vez ter recebido uma chamada de aviso para senhora Maria de Oliveira Martins, moradora na rua da Lagariça. Começo a indagar quem seria e nem mesmo o carteiro sabia quem era. Por exclusão de partes lá cheguei à conclusão de que seria a Maria Tchan Tchan Três e Dois são Cinco, tanto mais que a estação de proveniência era a de Campolide. Tchan Tchan estava na horta e lá fui eu de bicicleta a avisá-la. Chegou à hora e quando lhe digo para se dirigir à cabina, Maria nem sequer levanta o auscultador e começa ainda   distante «Quem é que quer falar comigo? És tu Mnel? Diz lá o que queres...» Bem, a cena dispensa comentários...Tive que a meter dentro da cabina, pôr-lhe o auscultador nos ouvidos, mas mesmo assim falava tão alto que era fácil perceber a conversa. O Tendeirinho pedia-que lhe mandasse cebolas e couves e alguma farinheira fresca que ela conseguisse arranjar. Maria sai-se então com esta: «Num te posso mandar as couves porque inda estão verdes como um caçulho»
Foi risada geral entre todos quantos estavam na loja. Já não se sabe o mais que Tendeirinho lhe pediu mas ela lá foi no dia seguinte a despachar o cesto com o pedido. Fui eu que lhe escrevi a tabuleta.
Esclareça-se, uma vez sem exemplo, que o caçulho popular é o carçulo, planta herbácea que cresce nas paredes e que tem uma folha carnuda, muito igual na forma à do nenúfar e que independentemente da chuva cair ou não se mantém permanentemente verde. A flor surge na ponta de um caule também muito semelhante ao da floração do cacto AloéVera. Só que em ponto muito mais pequeno, é claro.

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