Quase me nasceram lá os dentes: se não os de leite, pelo menos os definitivos. Com toda a certeza.
Aquele lagar de três varas era um dos três que moíam na aldeia. Para além desse havia o da D.Carminda, ali mesmo onde hoje é a casa do Roupinha Afinéda, acima da casa dos Soalheiros, frente com a casa do professor Marcelo e da ti Catrina Casaca, velhaca como as cobras. Nosso Fernando trabalhou lá um bom par de anos. Havia ainda a FÁBRICA do professor Leitão, a única já electrificada com moinhos de pedra a rodarem sobre superfície metálica e prensas para a espremedura. O lagar da lameira e o da D. Carminda eram integralmente manuais ( se bem que este trabalhasse às vezes com motor Diesel) e a moagem era feita por juntas de bois.
Dediquemo-nos ao da Lameira, que foi aí que eu privei com os lagareiros. Ainda recordo alguns: os velhos Menas, uma família inteira, o velho Manuel, o Chico de andar apressado. Moravam ali a meio da lagariça, paredes meias com a minha bisavó paterna, Isabel, perenamente descalça, pisava silvas como nós andamos em cima de azulejos. Era a mãe do meu avô que dizia que nunca tinha conhecido o pai. Por causa disso não vamos culpar a minha "DESAVÓ". Ensinou-me ainda muita coisa, sobretudo em matéria de ervas de campo e outras que tais: sabeis o que é o LENTICÃO? e o MIJACÃO? sequer ouvistes falar no CU DE GALO, fruto comestível, agre e doce, que ainda hoje "rabusco" por essas baixas vinhateiras? sabeis? Eu sei. A minha DESAVÓ ensinou-me e eu aprendi. Não sou como aquele velho professor que se queixava do ensino ministrado nas faculdades... Instado sobre que dizer da sua aprendizagem nessas mesmas escolas sai-se airosamente com esta: "eles ensinaram-me mal, mas eu aprendi bem". MAINADA!
Assim se passou comigo.
Outros mais recentes que felizmente ainda pisam as ruas de Aldeia- O Zé Lopes, rapaz do dia de Karraio, o Tonho Mota, que já abalou para a Tapada dos calados, o Tonho Lopes, irmão de Zéi, e claro, o inefável Alberto, senhor do Galante, boi de cobrição, que entrou no enredo do desacorçoado.
Voltemos ao lagar senão ainda me dais alguma CARCHANTADA porque escrevi um título e vadio por outras paragens.
O edifício, na sua estrutura base, pelo menos visto de fora ainda está em condições razoáveis e quase um quadrado perfeito. Entrava-se nele por um portão de lata pintado com um preto que mais parecia alcatrão, e dum lado e doutro havia um telheiro coberto, sendo que o da direita servia para armazenar a lenha que o CHAMIÇO garantia quase todos os anos, e só depois, mesmo ao lado do pocinho da água é que se entrava no lagar propriamente dito, por uma porta robusta de duas folhas. Estava sempre acessível durante a safra. Lá dentro havia dois compartimentos: o da direita tinha o pio onde os bois de Alberto moíam os "bifinhos de caroço", a manjedoira e mais ainda uma tarimba onde Beto dormia e ressonava; o lado esquerdo tinha um desnivelado onde os grandes trabalhos eram feitos: enchimento e escaldamento das ceiras; a massa era trazida do pio em gamelas de lata com duas asas que se enchiam à pazada, e onde se situava também a caldeira. A massa era espremida por sistema de varas: enormes troncos de sobreiro que acabavam num fuso com chave, tudo em madeira, dos quais se suspendiam enormes pedras que se levantavvam por meio de uma tranca que fazia rodar o fuso na chave e, assim, permitia maior aperto. O azeite corria directamente para as tarefas (enormes potes de barro) encastradas no granito. A técnica de depuração era o decante, pelo que a TAREFA que ficava mais acima tinha uma torneira de descarga que o lagareiro abria e o azinagre, às vezes com algum azeite envolvido, corria para o INFERNO, ao canto, o qual era periodicamente aliviado para a ribeira que passa mesmo ao lado. Ao canto esquerdo mais perto da porta ficava o canto do bagaço, que o velho Alcides barrigudo ia a buscar para depois ainda ser mais espremido na fábrica de S. Miguel d'Acha.Era assim o lagar.
O ZÉI do CAFÉI comprou-o, em tempos aos três sócios que nunca se entenderam muito bem, Casa Campos, Zé Manel Landeiro e Zé Carreiras...
Era assim a medidura e a respectiva poia: a casa tinha duas panelas à cabeça, e mais uma por cada nove, o lagar (melhor os lagareiros, tinham uma panela (dois litros) por cada dez, a lenha tinha litro e meio por moedura, e a água tinha meio litro por moedura. A média era de três moeduras. O restante ia para o dono da moedura que, ao tempo era de 600Kg.
Não percebestes nada já sei! Aí vai a explicação: os lagareiros eram em número de três e ainda o ganhão que tratava das juntas de vacas que moíam a azeitona no pio. Quando da medidura do azeite, o lagareiro chefe, depois de o decante ter sido bem feito de uma tarefa que recebia tudo para a segunda que só recebia o azeite decantado, media o azeite para o pote do dono da azeitona, sendo que a poia era sempre paga à cabeça.
O trabalho começava por volta das cinco da matina, o que no Inverno não era lá muito agradável. A essa hora lá ia eu a dar água para a caldeira. Era eu, a mulher do Tonho Mota e a mulher do Chquim Lavra-Miúdo. O sistema era rotativo: um tirava a água do pocinho que estava à entrada da porta maior do lagar, outro acarrejava e o terceiro despejava para a caldeira. Não havia luz cá fora (mais tarde lá apareceu) pelo que quem tirava a água do pocinho tinha que"tentear" a superfície da água e fazer o deborco do caldeiro e puxar pela corda. Acabei por combinar com as mulheres: eu ficava sempre a tirar e elas entre si acertavam quem ficava na acarreja e no despejo. Assim foi. Era um prazer acertar à primeira sem tentear a água e o caldeiro entrava deborcado no líquido. Um autêntico motor era o que eu era!
Acabada esta tarefa sentava-me à lareira da caldeira a olhar a ala ou o borralho, e, não raro, dava com cada cabeçada no ar que até parecia que me tinham dado uma carchantada na nuca.
As mais das vezes havia petisco. Aí por essas seis era o desjejum: uma lata de atum sangacho em molho de tomate, meia dúzia de batatas cozidas e sobrantes do jantar do dia anterior, uma cebola das grandes, pão caseiro em fatia de ganhão e azeite, muito azeite. Comia-se sempre à colher e o copo era só um e de lata zincada, suspenso sempre no gargalo do garrafão. Comia-se do barranhão, também ele de lata. Nunca precisava de ser lavado porque ficava sempre bem limpinho com as voltas finais que se davam com o naco do pão. Passava-se pela água a ferver da caldeira e deborcava-se ao lado da pedra até à próxima.
Às vezes havia pândega de mais requinte: bacalhau desfiado, enchido, entremeada e até caça: lebres e coelhos, que ao tempo abundavam...Pudera! Era tudo semeado, desde a lagariça e taliscas até à serra da Raposa e da Marvana, já a dar vistas para a serra de Malcata. Nada do que se passa agora: estevas, giestas e eucaliptos.