domingo, março 26, 2006

A NOSSA FALA - LI - CANCHAL

Hoje apetece-me falar convosco de valores. A afirmação dos valores foi desde sempre questão polémica. Sem grande detenção no assunto inclinemo-nos já para uns contornos bem definidos: os pais tendem naturalmente a pensar que os valores em que gravitam são também o Sol em torno do qual os seus descendentes devem orbitar. Esquecem-se que os valores transitam, que os novos têm outras apetências, que os tempos se alteram, que o mundo oferece opções, situações e problemas que não páram, que as idades são diferentes, enfim, que sei eu?... Veja-se só a título de exemplo que os nossos avós e até os pais de grande parte dos que nos lêem viviam com a prática da poupança. A ordem era gastar o menos possível e amealhar o máximo. Confundiam poupança com economia, diremos nós, mas o que é facto é que essas poupanças permitiram aguentar o país e autorizar o António que morreu, Oliveira que secou, Sal que se derreteu e Azar que acabou (?!) a dizer: orgulhosamente sós. Essa é que é essa !
Nessa altura o país não importa e agora nem se importa.
A malta hoje vive numa ambiência de consumismo desenfreado em que se disputa o mais moderno e passageiro, a marca mais na voga e se deita para o lixo o ainda recuperável.
Já ninguém passaja meias, nem bota remendo em calça, mete palha em enxerga, aproveita resto para vianda de porco, nada, vá!.. Os lixos estão permanentemente atestados de coisas ainda valiosas.
Não há dúvida os valores mudaram.
Em tempos tive conhecimento de um trabalho de campo de investigadores, que perguntavam a crianças entre os 11 e os 13 anos, o que é que elas mais queriam. Invariavelmente as respostas cairam sobre vivendas com piscina, dois ou três carros topo de gama, viagens em volta do mundo, dinheiro com fartura, isto é, tudo o que levasse à boa vida. Nem um considerou o trabalho como um valor, tão pouco a saúde ou a família, mesmo a solidariedade e a paz! Incrível! Mas foi assim mesmo. O mundo virou-se: já nada é como dantes!
NÃO! não sou saudosista do passado. Escrevo com Sophia:"saudades, tenho-as do futuro"!.
Vem tudo isto a propósito de uns valores de que, calhando bem, grande parte de vós nunca ouvistes falar e muito menos tivestes o ensejo de viver ou compartilhar.
Era eu moço, havia algumas rádios piratas, algumas mesmo esporádicas e que emitiam de sítios imprevisíveis e alterados para não serem apanhados nas malhas dos esbirros guardadores da República. Havia sobretudo a Rádio Moscovo e a rádio Argel. Ouviam-se muito mal nos rádios caixote e mesmo nos de FM. Eu ia ouvi-los para o CANCHAL do alto da estrada, ali, paredes meias com o depósito da água a meio caminho para Aldeia de João Pires. O silêncio era religioso. apenas o Nosso Sargento - amigo que há muitos anos não vislumbro - um abraço para ele - tirava fotografias, em pose, à lua... fotos fantásticas, que depois passava a slide e que encantava na sua sucessão. Um espectáculo!
Não era este todavia o CANCHAL mais famoso ali da área. Esse lugar era ocupado pelo canchal da nora, lá para os lados da serra a dar vistas para a Bemposta, por detrás e à esquerda da Carochinha e do João Ratão. Famoso ainda o Canchal da serra Pedreira e, claro, o do Chico Sarapião no batcharel perto da fazenda que o Zé Ferrenho fazia. Um viva a este grande compincha que a gadanha da morte ceifou bem cedo!
De todos, porém, o mais famoso Canchal é o penhasco de MONSANTO, o penico do mundo como lhe chamava o velho Pote, pescador emérito com fémur de platina e sempre de chapéu, mesmo na missa. - Que se sentia encouro sem a cobertura, dizia. O chapéu era para ele um valor! e que valor! Como para mim era escutar os rádios Moscovo e Argel, lá no alto, noite fechada, às escondidas, ouvido colado ao aparelho.
Para o Canchal da Nora, fui eu aos tordos e pombos bravos e o que mais aparecesse, uma noite, mais o Nosso Sargento, o Manel Celestino, o grande, Quinzinho das Águas, os quatro na Zundapp, e noutra mota, Zé Pcanino, o ronquinha, Riconho e Marocas. Tinha eu palmado oito pilhas das grandes da caixa e um punhado de chumbo.
Por volta das 23 , eles aí vão. As viaturas ficam na serra junto ao Barata e o resto do caminho é feito a pé, às escuras.
Marejava um poucachinho, a lua estava tapada pelas núvens, mas o astro ainda assim não era dos piores e a malta aguentava bem o frescor. Era enorme a vantagem desta meteorologia: se pisávamos galho, não se ouvia, se partíamos ramo o pássaro não se mexia, se déssemos com a canela em calhau desalinhado, a dor era abafada pelo musgo que a cobria e servia de amortecedor... Breu como estava, a luz dos Foxes atravessava o éter húmido, o alvo era isolado, o tiro partia, o apanhador arrecadava, tornava-se a carregar, apontava-se a outro e, pronto! era assim. Tudo caladinhamente! Mainada.
Nessa noite vieram para a caçolada 16 pombos bravos, duas rolas, 20 tordos e 56 pardais. Um monte de carne.
Nas voltas e revoltas e até reviravoltas, a gente, sempre a olhar para o ar, perde o tino e logo, a orientação. Foi assim que Riconho, naquela sua inconfudível voz roufenha se sai com esta - estávamos nós já de regresso e tínhamos chegado ao cimo do Canchal donde, ainda que mal, se entreviam as luzes de Penamacor que acompanham a subida desde o actual posto de abastecimento até ao cimo de vila e castelo -: "Ina cum filha da puta! Já chegamos a Castelo Branco! Quando é que agora hamos de chegar às motas! Salta Ronquinha:" Vocêi, Vocêi, está marado, ó quêi? num vê qué a vila, seu babanca!? Nosso sargento, naquela sua calma característica, ria. Eu meti ferro" è Castelo Branco, poi! aquilo ali é a Marechal Carmona (agora Humberto delgado), Riconho tem razão. Temos que caminhar toda a noite para apanharmos as motas. Nosso Mário:«hein,hein! deste volta à cabeça! aquilo é a rua das tílias! e Riconho: «Estamos enganados. Penamacor é para o outro lado! estamos chapados. Se a água começa a cair comédado apanhamos um pneumonia . O melhor é ficarmos aqui debaixo dum barroco acendemos uma ala e esperamos que o sol nasça. » Ataca Celestino: «é, poi! acendes o lume e no tarda nada tens a Guarda Republicana a ver o que se passa. Ficas cá sozinho! Riconho ponderou e atira!: «esperar lá aí um pouco que vou além ao cimo do canchal a ver se vejo a nossa Aldeia. Ele viu luzes, viu, só que, desorientado como estava, apontava teimosamente para a Bemposta e que a Aldeia ' num era para onde nós dizíamos'. Vínhamos caminhando, rindo e mandando calar Riconho e a sua teimosia até que chegamos às motas. Aí, Riconho nem queria crer que estava em casa.
A Rosa estava a fechar e Riconho foi ali envergonhado até aos limites do possível . Ameaçou que ia buscar a caçadeira e que nos vindimava ali mesmo. Valeu a ponderação de Nosso Sargento. Pagou uma rodada e a história só hoje foi ressuscitada!
Outros tempos, outra gente, outra linguagem, outras aventuras, outros amigos, outros valores.
O que vos digo é que se me enagalhou o cachaço de tanto andar a olhar para o ar, que andei 15 dias que mal me podia revirar. Vi-me nas horas del conho para fazer o petisco.
Um dia que calhe dou-vos a receita. XXXXXIIIIIIIIIIIIGGGRRRRRAAAAAAANNNNNNNDDDDEEEEEE!

domingo, março 19, 2006

A NOSSA COMEDURA - VI - BACALHAU ALAGADO

Como os nossos amigos leitores não nos têm dado o prazer dos seus comentários, nem mesmo com a ameaça simpática de lapaxeiro a exigir a presença do Fadista, - (ele só não os encorre porque já morreu) , resolvi contribuir para lhes trazer algumas forças com esta excepcional receita de bacalhau.
São precisos apenas quatro ingredientes comestíveis: azeite, cebolas, batatas e, bien sur, bacalhau.
Outros ingredientes: muita paciência, amigos assim comédado, tinto do legítimo, ali mesmo dos lados da Raivosa, Ferrador, Lameira da Pinta, Batcharel, Pinheiros, Serra, Quelha Funda, Saramaga, Moinhos de Vento,(...) o que é preciso é que tenha cinco ingredientes: uvas maduras, fermentação lenta, trabalho com fartura, higiene e água. Mainada! Depois é só esperar lá pelos fins de Janeiro - nunca antes - para provar a pomada. Qualquer violação desta regra só pode ocorrer em vasilhas pequenas, deixadas propositadamente para os efeitos pretendidos: prova no S. Martinho, matança do cerdo, visita dum compincha, baptizado dum neto, participação nalguma festividade pública e pouco mais. O vinho precisa de arreganhos para aclarar à maneira e quer repouso. Além disso, seja em que circunstância for, quer moderação. É proibido encharcamento. Nem mesmo Baco consta que se embebedasse. Apenas que gostava de bom vinho e de mulheres. Eu também. Só que não sou deus. Melhor para mim.
Pronto! já sei.... trata-se de uma receita de bacalhau! já lá vamos...
Primeiro é decisivo que cozinheis bacalhau e não um parente qualquer. Para quem não seja expert nestas coisa pode - e deve - partir desta simples observação: o bom bacalhau seco raramente é branquinho - antes é, ligeiramente amarelado - depois a barbatana dorsal deve estar virada para cima, senão as duas, pelo menos uma, a escama deve estar toda no mesmo sentido e o rabo há-de parecer uma espécie de V invertido. Nunca comprar bacalhau do Pacífico. Só da Islândia e Noruega. Excepcional é o de seca amarela, que já aparece muito pouco.
O tipo é variável com as preferências pessoais: pode ser Corrente, Graúdo, Especial,... não importa. A demolha deve ser sempre em água o mais fria possível sem ser gelo, com a pele sempre virada para cima. O tempo varia em função da quantidade, da espessura do peixe e da vasilha onde se dessalga. Aconselho um mínimo de 48 horas com pelo menos duas mudanças de água. O arrefecimento da água é facilmente obtido, mesmo no Verão através da congelação de duas ou três garrafas de água previamente e que se introduzem no recipiente de dessalga. Assim fica a água sempre fresquinha e o bacalhau extraordinariamente mais saboroso. Pormenor não menos interessante é ainda a forma de o cortar: pedi que vo-lo cortem primeiro separando as abas na vertical e depois os lombos na horizontal. Deve depois ser escamado e limpo das barabatanas para além de ser exigido que se lhe retire a membrana negra que lhe percorre a parte ventral. Depois disto, aí vai a receita:
1 - Variando de acordo com o número e pessoas e consequentemente postas de bacalhau e mais ainda com o tipo de bacalhau e, claro, com a voracidade dos comensais, o importante é que o azeite tem que ser mesmo BOM e BASTANTE. Para quatro pessoas e bacalhau corrente, confeccionando só os lombos exige-se obra de um quartilho de azeite, tudo para mais que nunca menos.
2- Muita cebola cortada em rodelas inteiras medianamente cortadas. A cebola começa-se a cortar sempre pelo lado da raíz e nunca pelo lado do talo. Quando digo muita é também em função do tamanho, do recipiente - bom é o ferro - e da quantidade de bacalhau. Para o mesmo número de pessoas umas valentes cinco cebolas.
3. Bacalhau - as postas consideradas necessárias - e sempre com a pele para cima.
4 - O mesmo para as batatas: quantidade considerada satisfatória para os comensais.
NB. - Quanto mais largo for o recipiente, tanto melhor. Tem que ficar sempre tapado e é OBRIGATÓRIO que seja confeccionado em lume brando.
Então é assim:
Cortam-se as cebolas às rodelas, alagam-se com o azeite, sobrepõem-se as postas de bacalhau, e depois coroa-se com as batatas também elas cortadas às rodelas bem grossas. Tapa-se, pode ser lume vivo até levantar fervura, mas depois ,lume brandinho. Evitar abrir. Não precisa água. O bacalhau e as batatas cozem na sua própria essência , misturados com o azeite e a cebola.
Sirva-se bem quentinho e, se possível, acompanhai com uma fatia de pão caseiro,uns pozinhos de salsa e umas azeitonas retalhadas das verdadeiras.
Ide desempapando com o vernáculo tinto e dai-me inculcas desta maravilha. Bom apetite!

segunda-feira, março 13, 2006

A NOSSA FALA - L - ENCRIR OU INCRIR

A Lameira não foi como agora está. Com início no chão do ti Zé Latas, havia um "alcaduque" (espécie de alvanel coberto, formando um túnel) que a canalha atravessava de gatas à luz de bocados de borracha ateada numa pinha. Muitas vezes o atravessei... Claro que esta aventura só era possível durante o Verão , pois, de Inverno esse "alcaduque" ficava cheio de água por mor de uma ribeira que passava junto às figueiras do Zé Maroco , por debaixo do pontão que dava para o beco da Ribeira e desaguava por detrás do lagar na "nossa ribeira", depois de ter passado por debaixo do caminho do cemitério. As mulheres lavavam a roupa nesta ribeira e punham a roupa a corar estendida num banco de relva que sempre por ali havia. Não vos falo das oliveiras e das amoreiras que nós tínhamos que fintar quando jogávamos a bola... Não falo nem é preciso...
Tal como agora também então a Lameira servia de campo dos mercados aos segundos Sábados de cada mês. O que já não era igual era a mercadoria que ali se trocava ou vendia: porcos, burros, vacas, cabras e ovelhas, fora as tendas. As brincadeiras dos velhotes tinham piada e se algum garoto por ali aparecia,logo um provocava: "ó catraio, sabes qual o animal que dá o fruto antes da flor? No sabes? É o burro, é o burro; espera aí sentado até que bote cá fora os cagalhões e verás que o cu dele depois se abre como uma camélia encarnada!" E riam-se a bom rir... E outro: "gostas de castanhas? olha: o burro as caga e tu as apanhas" Mais uma risada. O tempo nem custava a passar e se o negócio se fechava lá estava o alboroque à espera naquilo do Cavalheiro. Era sempre assim.
Três foram, pelo menos, os burros ou burras mais famosos de aldeia: a burra do velho Freitas, inteligentíssima, até sabia escrever e sabia sempre o tempo que fazia. Se chovesse ninguém a arrancava do palheiro e para se desaparelhar bastava que o velho lhe desapertasse a cilha e lhe sacasse o rabo do atafal que ela dava um safanão e deixava tudo direitinho no balcão da parede junto à manjedoura...Outro que não lhe ficava atrás era o ESTUDANTE, burro mais que famoso do Zé Luís Barata, que lavrava sozinho, fazia a torna na perfeição. Zé Luís ficava dum lado e seus filhos Zé ou João ficavam em cada extrema da leiva e apenas viravam a aiveca. O ESTUDANTE fazia o resto. Inultrapassável era também o jerico inteiro do João Rela: pequenino, mas verguio como a puta que o pariu. Em Março - por este tempo que agora corre - mal via uma burra aventava com cinco escritos ao ar, atirava com os aparelhos, arreganhava as beiças, alevantava o cachaço, zurrava e espirrava, chegava às burras e nem que o desancassem com porrada nunca desistia enquanto não farejasse o cu da fêmea. Era mau filho de puta este burrico. Fora isso era manso como a Terra.
Deixava-se montar pela ti Conceição e ajeitava-se ao batorel. Aguentava teso quando estava à carga. Mal via as cordas de ENCRIR - estas cordas serviam para segurar a carga ajustada à albarda do burro e que tinham uma forma própria de se colocarem, por forma a permitir que as duas sacas ficassem uma de cada lado e até pudessem sustentar mais uma ou até duas de sobrecarga, em média media cinco braças (ou braçadas), cerca de metro e meio cada uma e que se obtêm esticando os braços ao máximo da sua extensão - , o burro ajeitava-se logo e nunca se mexia, nem que a mosca o arreliasse. O mesmo com o ESTUDANTE, só que este era muito mais valente e as cordas de INCRIR tinham mais uma braça, dada a altura do animal. Mais parecia um cavalo. Era mesmo um animal nobre. Um cigano ouvi eu oferecer cinquenta notas batidas pelo ESTUDANTE ao Zé Luís. Ele é que não esteve pelos ajustes :"Desaparece-me da vista senão apicho-te aqui o fadista que te encorre até Medelim. "
Admirais-vos agora de a nossa aldeia ser a terra dos doutores e engenheiros? Dizia o senhor Arnaldo, que em tempos trabalhou nas Finanças de Penamacor, que Aldeia do Bispo tinha mais pessoas formadas em cursos superiores do que o concelho todo.
Olha a admiração! Aldeia que tinha burros destes, pouco espanta que tivesse tanta gente formada. E em forma. MAINADA!

sexta-feira, março 03, 2006

A NOSSA FALA - XLIX - OGAR

Indagações empíricas e circunstanciais nunca foram nem são premissas justificativas de uma asserção. Facto é que tendo eu utilizado este nosso vernáculo OGAR em vários sítios, conferi que ninguém o conhecia. Este termo é deturpado na zona do pinhal e vem duma espécie de onomatopeia de AGUAR. O povo pouco diz aguar e diz mais AUGAR. Daqui até OGAR é um passo. Nas outras localidades portanto este termo é utilizado para significar REGAR, verter água com um regador ou mesmo com um tubo, ou não importa o quê, sobre as novidades evitando assim que a geada as queime. Não é esse o valor da palavra para os xendros.
Ah! pois! há sempre uma estória... Podia começar assim:
Velhaco, velhaco era o meu avô, comandante do Inferno : os filhos tinham que se despir para ele lhes bater e berrava:" a roupa não tem culpa nenhuma das vossas asneiras... "E mais ainda... gabava-se de nunca ter posto as mãos num filho para lhe chegar a roupa ao pêlo... E, por incrível que vos pareça, o velho comandante, figura do mais honesto que me foi dado conhecer, falava verdade... Efectivamente sempre lhes bateu, mas com uma verdasca, uma corda, um changoto,..., que sei eu?.... Nunca lhes punha a mão em cima o malandro do velhote!
Todos sabemos que, por via de regra, as famílias mais antigas dos que ainda povoam transitoriamente este terceiro planeta do sistema solar, eram numerosas de filhos. Cedo ajudavam na luta pela sobrevivência e não consta que alguém alguma vez se tivesse preocupado com o trabalho infantil... Outros tempos!
Se havia trabalho que a mim que custava fazer era - e ainda é - ceifar. Embora o instrumento de trabalho seja dos mais leves - a foice - ou o foição - aquela posição de costas sempre viradas para a torreira do sol era coisa que não me quadrava. Nem a mim, nem aos meus quadris (ou cruzes).
Muitas vezes negoceava com o meu pai: eu tirava o estrume aos porcos - coisa que ele também detestava - e ele ceifava. Assim fomos resolvendo a questão da repartição de tarefas.
Só que às vezes não me podia safar e, quem está por baixo obedece porque quem está por cima manda:" Vais à vinha dos pinheiros e ceifas a erva que lá há; começas por baixo das oliveiras; oga-me bem os molhos não se escarapucem quando os for carregar. Faz o nagalho curto. Aí quatro braçadas por ogadela chegam."
Tinha que ser. A princípio, ogar uns molhitos de erva - paveia - não era, ainda assim, tarefa das piores, mas quando a erva crescia e a erva secava e dava colmo, (ou colmeiro) aí o caso era outro...
Ora eu que sempre fui "encalorado", de pouca roupa, abraçar a palha com pragana no braço nu e ajeitá-la por forma a constituir uma paveia que depois juntava outra e mais outra para dar o molho de semente, sempre bem ogado, caladinho, protestava do mais fundo do meu imo!
Aquilo sim! eram umas férias estudantis assim mesmo comédado!
À noite, por este tempo, luminho aceso, panelinha de ferro suspensa das cadeias, lenha concentrada que era preciso poupar, coziam-se umas espigas de couve com uma buchanha, uma farinheira ou uma daquelas deliciosas morcelas batateiras que não há em mais lugar nenhum do mundo, senão na aldeia dos xendros, juntas com umas batatas e, na mesa de engonço, a mor parte das vezes, lá se metiam debaixo da camisa, acompanhadas com um naco de pão, valente, e um pucheirinho de vinho. A água da cozedura não se deitava fora: estava ali o caldeiro da vianda e uma pouca ia para o alguidar da lavagem da loiça. Não era preciso esfregar muito que aquilo ia tudo bem lambido com o último naco do casqueiro.
Como era cedo ainda para se dormir, ali se ficava a ver extinguirem-se as brasas, mirando, de quando em vez uns espanhóis que se desprendiam e logo se transformavam em fonas: «Bem feita espanhol dum corno! quem te mandou meteres-te com os portugueses? Já te esqueceste de Aljubarrota?» A canalha ficava toda contente com a morte dos espanhóis quando deixavam o brilho da incandescência e tombavam lentamente. A mãe passava a vida a varrer fonas para a pedra do lar...
Duas estórias, dessas que se ouviam aos serões, ali, entre a parede da casa e as taipas do quarto, forradas a papel de jornal e coladas com farinha amassada, ao calor e luz titubeante do borralho:
Um espanhol veio a Portugal e empontaram-no para o canto do lume, onde estava o cântaro da água (asado) e o montinho da lenha que mantinha reguladamente o lume aceso. Coitado!
Dizia um: "alimente a fogueira quem está do lado da piorneira!" O espanhol não entendia e foi obrigado a aprender... já que logo lhe chamavam filho dum corno! "quem está do lado do asado, dê uma volta ao sobrado!" Outra vez o pobre do espanhol a ser chamado filho dum corno até que dava a volta com o copo de água, tirada do cântaro, a todos os circunstantes... Não admira que quando voltou a Espanha dissesse para os seus compatriotas:" mira! se fores a Portugal, no te pongas ni do lado da água nem do lado del piorno,sinon te lhamam hijo dum corno!"
Ou esta:
Um homem andava com ganas de bater na mulher e procurava motivos para a arreliar. Era sabido que se ela lhe alevantasse a voz, ele tinha, por assim dizer, o direito de lhe chegar a roupa ao pêlo «Ó mulher, hoje trago a lenha torta» e ela: "o lume logo a corta! "No dia seguinte:«Ó mulher, hoje trago lenha direita!» e ela nas calmas:" O lume logo a ajeita"
É melhor ficarmos por aqui hoje , senão ogo o molho muito grande e depois ninguém pode com ele, o que vale por dizer, que se o texto é grande ninguém o lê!
Ogo-vos a todos num XXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIIII CCCCOOOOORRRRRRRRAÇÃAO

CHANESCO

Daqui se saúda o CHANESCO , um vizinho que vem no mesmo espírito aqui do Baságueda.

Diz ele que Chanesco (tchanesco) não tem significado definido. Não significa nem parvo nem esperto e significa os dois em simultâneo. O seu significado tem de ser entendido de acordo com o humor de quem utiliza a palavra e com a entoação que lhe imprime.

Força aí ó Chanesco!

sábado, fevereiro 25, 2006

A NOSSA FALA - XLVIII - AMAGAR

Diz o povo, quem sabe se com ou sem razão, que a verdade é como o azeite e vem sempre ao de cima. Virá(?)
Se a verdade fosse só uma ainda se aceitaria, mas o que nós constatamos cada dia é que os mesmos assuntos são lidos diferentemente por diferentes intérpretes. Para uns o Orçamento de Estado é um freio às despesas públicas, para outros o mesmo orçamento é um desperdício de dinheiro em obras que em nada contribuem para a melhoria do país, isto só para servir de exemplo.
Se a minha verdade é verdade e a de outro, podendo mesmo ser a oposta da minha, também é verdade, então a verdade e a falsidade são irmãs gémeas e indistintas. Se tudo é verdadeiro, então, tudo é falso. A verdade acaba sempre por ser discutível. Se se discute é porque tem ponta por onde se lhe pegue e portanto à partida já não é verdade porque senão era tempo perdido andar à procura de outra diferente daquela que é o nosso ponto de partida. Quando eu discuto o que alguém afirma como verdade é porque já implícita e explícitamente estou a partir do princípio que a afirmação do outro é falsa. Ou não será assim? A própria Terra só começou a andar à volta do Sol quando a ciência começou a defender esta tese. Até aí estava parada e houve até quem tivesse sido assassinado por defender tal heresia. Será preciso morrer para defender a verdade? Vivamos então na mentira. Galileu estaria de acordo: mais vale um cobarde vivo do que um herói morto.
Já vos estou a ouvir: «Afinal o que este gajo quer? Para que são estas milongas todas?». Olhai para o povo: "saber esperar é uma virtude" e "quem espera sempre alcança," mas logo a seguir: «quem espera desespera».
Continuamos sem saber onde está aquilo que procuramos, mas o facto paradoxal é que continuamos permanentemente em busca dela. Parece uma insensatez. Será este um dos sortilégios do homem? Neste vórtice de correrias para toda a parte sem se saber ao certo para onde se vai, o homem sai de si e vai apresentando resultados das suas viagens deixando-nos pasmados com as suas progressivas descobertas, pelo que o progresso é desde logo a inequívoca demonstração que a verdade se nos escapa quanto mais a tentamos agarrar. Se calhar a verdade é o que está oculto como já queria Freud e o que é preciso entender não é o que se diz mas o que não se diz. Que grande barafunda!
Vamos lá a ver se me faço entender e se esta minha deambulação tem ou não razão de ser e pode ser justificado que a verdade em vez se ser arquitectónica é, ao contrário, polémica.
Quem de vós já se encontrou num rancho de caçadores, à noite , ao fim do primeiro dia de caça?
Será que o que ouvis é o retrato fiel do que se passou? Ou antes, é a "conveniente" leitura do relator do evento?
Vede só quem estava no grupo: chquim pardalim, coiote pete, toco jabão, riconho, ronquinha, jbão pitincouro, bertcho albardinhas, nosso cabo, para além dos inefáveis batedores,Domingos Molhano, o patanisca, e eu, pois claro.
A caçada até que não fora famosa mas o tacho estava cheinho do que é bom. Cozinheiros não faltavam, vinho ainda menos e, claro, com dois padeiros, o pão sobejava.
Enquanto o lume se avivava e as trempes se aconchegavam por forma a que a ala fosse mais ou menos homogénea a incidir no fundo da sertã, reviviam-se momentos inolvidáveis desse dia de caça. (Deve dizer-se que chamar àquele recipiente uma sertã é o mesmo que chamar cagalhão a um marmelo, com licença da mesa e passe a expressão...). Aquilo era, para todos os efeitos um caldeiro de vianda do porco do Tonho Nunes, que o foi sacar da trave escura onde a mãe cozia as batatas para o bácoro. Bem areado - chovia naquela noite - esfregado comédado, eu e coiote pete, pusemos o caldeiro a reluzir ...
Quando as primeiras gotas de azeite para o esturgido cairam no fundo do caldeirão e o braseiro aqueceu a gordura, confirmou-se que podia nele ser confeccionada a tachada. E foi.
Uma caldeirada de carne brava: duas lebres, três coelhos, um pirolis, duas perdizes e um naco de teixugo porco, para dar unto. Na panela de ferro coziam-se batatas com casca que seriam descascadas na hora do manjar para o qual tinham sido convidados mais uns quantos que depois poderão aparecer...
Arranca o nosso caboó Domingos com aquela é tu me chapaste- punhas-te a gritar : aí vai, aí vai, aí vai - eu fitava o espaço com a arma pronta e nada... Uma vez e mais outra e outra ainda e... porra! isto não pode ser, vou-me a ver o que se passava e o Domingos sentado ao toro dum sobreiro a mamar na borracha espanhola e a mastigar um naco de pão com chouriço... Atalhou o patanisca: cui..da..do, comcom o queque dididizes, quando eu grigritavavva que ia, ia mesmo. não ia era para ti... Pitincouro, logo: "ele já fez isso mais vezes..." Domingos levanta-se e agarra pitincoiro pelo bibe: "ó meu sasaccana,vê lá se se te esfofolo o coicoirate!pá!
Grande Celestino, ourives, que chegava naquele momento, abre os braços como Cristo na cruz e lá acalmou aquele início de convívio com uma rodada de tinto. Nosso cabo e riconho altercavam por causa de um coelho que saía dum roto sacado pela Loc, cadelinha mais que adorada por toco jabão e que riconho deixou fugir e nosso cabo ardulhara logo ao primeiro tiro: Você, baforava riconho, você num viu que a cachorra ia a queimar o cu ao coelho e que se eu disparasse podia virar a cadela!,que se chape o coelho, agora aquela cachorra se eu a atingisse o toco mandava-me um foguete nas nalgas que nunca mais me podia sentar...você apanhou o coelho em terreno limpo... Ronquinha atesta:« era perigoso era...mas pior foi ali o pardalim que viu aquela lebre, que agora ali está no caldeiro, a dormir na cama e armado em otário a enxota com o cano da espingarda, grita:oi! oi! e erra os dois tiros. Se eu lá no estivesse agora não a mamáveis...Pardalim logo: «e tu,minha merda, a perdiz passou a cagar-te na cabeça, avias-lhe dois tiros e nada. Quem foi que a pôs à cinta? vá, diz lá quem foi... Mania pá!
As coisas iam neste enredo qual" encanto de alma ledo e cego" quando entro eu depois de uma prova ao molho: «Tiro assim mesmo com se impunha foi aqui o do toco jabão. Disse-lhe eu depois de o encontrar ao fim da batida: chega cá.Toco veio a correr... O que que está ali amagado? Toco afina o olho...É uma puta duma raposa! Só ouvi:Pum! virou-a logo...estava longe como um corno.Aquilo é que foi um tiro...o barulho alevantou uma lebre que também estava amagada e Pum, valente toco ! virou-a de pantanas. Assim está bem: um tiro,uma peça. Coiote Pete, que tinha morto o pirolis, troféu raro de carne branquinha e paladar esquisito, quase tão bom como a galinhola que também se amaga junto aos choupos das ribeiras e nem os cães dão com elas, via que estava a ficar para trás e avança: «Vós é que não vistens a distância a que eu virei o pirolis..., Aqui a minha boneca afitou-o, dá-me sinal e mal pergunto: o que é boneca? o cabrão, sai do amago e começa a querer levantar, nem a meio metro do chão chegou. Já há muito que não mandava um foguete assim...
Entretanto o caldeiro da vianda, a poder de mais uns bons tocos e mais molho de vinho lá cumpriu a missão e, sem nada ter ficado esturrado, lá se verte para uns quatro barranhões de barro espaçados pela mesa da padaria do albardinhas onde se punham os tabuleiros do pão antes de enfornar, cada um pega na sua arma e, depois de toda a gente já ter um copo dos grandes bem servido, quem tinha posto os moços (um bocado de pão espetado num garfo, que proibia que alguém começasse a comer, sob pena de pagar a despesa) retirou-os e foi um ataque que só visto!
As travessas das batatas com casca assistiam e questionavam-se então e a nós, ninguém nos quer, para que nos cozeram se não nos pelam e papam...?
À medida que a carne foi desaparecendo e o molho crescendo, entram então as batatas. E se elas eram boas naquele molho bem avinhado,! Não se amagavam à carne...
Foi mesmo um regalo ao fim ver como coiote pete, sozinho, devorou uma travessa inteirinha de batatas com o molho de dois barranhões.Toco jabão: «Vá a comer batatas para a raíz da grande pata que o pôs!»
Risada geral e mais uma rodada que paguei eu, pois então!
Se tiverdes razão não vos amagueis, mas se virdes que a verdade está do outro lado agachai- -vos e pagai uma rodada. Mainada!
Se encontrardes por aí alguma verdade que valha a pena, deixai-a registada. XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII!

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

A NOSSA FALA XLVII - CÓDÃO

- Tá cá um CÓDÃO, oh!

No Inverno, as noites estreladas anunciam manhãs geadas. Os campos apresentam-se cobertos com aquela camada esbranquiçada, entre o gelo e a neve. É a geada, a russa, a barbeira, o CÓDÃO.

- Tá cá um códão, oh! – é uma bonita expressão que soi ouvir-se nestas manhãs de Inverno que se seguem a noites estreladas.

Numa destas noites, aparelhei-me com casaco felpudo, cachecol, gorro e botas da tropa e aproximei-me do céu o mais que pude. Também me muni de uma pequena lanterna, binóculos, e do mapa do céu de Fevereiro do Máximo Ferreira – a minha fonte habitual em matéria de astronomia. Desta vez, ia em busca da cabeleira de Berenice. Conta o Máximo que a detentora de tal tufo de invejável beleza no efeito e na cor, era rainha no Egipto lá atrás no século menos 3, e que os deuses, eles próprios extasiados, deliberaram (por unanimidade?) colocá-la no céu para contemplação geral. Seguindo as instruções, procurei a constelação do Leão e, à esquerda da cauda, lá estava ela.

Berenice. Imaginei-a a passear na longa varanda do seu sumptuoso palácio de Tebas, contemplando a água prateada do Nilo, em noite de Lua Cheia. Estou a ver o seu perfil ondulado, como o cabelo, em contraluz, vestida apenas com uma túnica de linho quase transparente. A cabeleira cai até ao fundo das costas. Que linda cabeleira tem Berenice. Chamei-a baixinho. Ela virou-se, sorriu para mim e apontou para o céu, para a constelação de Leão.

Observei atentamente aquele ténue aglomerado de estrelas, não muito nítido, mas belo, para quem aprecia o cosmos, mesmo os mais pequenos pormenores, porque sabe que os pequenos pormenores, são na verdade gigantescos. Aproveitei para apreciar o esplendor daquele céu estrelado de Fevereiro. Aquele infinito esmagava-me, induzia-me uma forte sensação de nulidade cósmica. Para norte, lá estavam as Ursas, a Cassiopeia, Pégaso. A sul, o espaço sideral era claramente dominado pela imponência de Orion, o guerreiro de cinturão de estrelas, seguido do Cão Maior onde se destaca a nossa mais brilhante estrela nocturna: Sírio. Os cornos do Touro ameaçavam o guerreiro e, por cima, as Plêiades, um aglomerado de estrelas muito interessante, as sete filhas de Atlas e da ninfa Plêione, que Zeus transformou em estrelas. O povo chama-lhe sete-estrelo ou sete irmãs, e eu concentrei-me a contá-las. São mais, muitas mais. Estava na disposição de fazer a contabilidade mas lembrei-me do dito do povo que quem conta as estrelas lhe nascem "berrumas" nas mãos. Ora, "berrumas" nas mãos, não!

7 da manhã. Estremunhado, a bocejar como se fosse abocanhar uma abóbora menina, cheguei-me à janela que dava para a estrada. Céu limpinho, o dia começava já a azular, ainda a desfazer-se das últimas estrelas. Contemplo demoradamente a mancha esbranquiçada que cobre o campo. Ouvi-me o inevitável “tá cá um CÓDÃO!”

Sem me dar conta, deixo-me ficar a contemplar aquele momento de Inverno.

Começo a ouvir o trabalhar mortiço do motor de uma mota em 4ª velocidade que devia vir em 3ª e imediatamente identifico: “olha! lá vem o Mnel Azenagre”. Fiquei atento, muito atento, porque sabia que, a meio da pequena subida mesmo em frente à minha janela, ele havia de meter a 3ª. Fixei-me na sua boca, no momento da mudança da mudança (não, não é redundância nem pleonasmo, é mesmo assim). Em 4ª, ele trazia a boca meia aberta (ou meio fechada, como quiserem, não é o momento, nem o local para dissertar sobre tal problemática), no momento em que apertava a embraiagem com a mão esquerda e, com o pé, esquerdo, pisava para entrar a 3ª, nesse pequeno lapso de tempo, o Azenagre fechava completamente a boca. Depois, enquanto largava lentamente a embraiagem, ele voltava a abri-la ligeiramente, quase timidamente, aumentando gradualmente a abertura (da boca) na mesma medida em que acelerava a 3ª mudança. Faria o mesmo um pouco mais à frente, já em estrada plana, boca fechada na passagem para 4ª e boca a abrir acompanhando o barulho do desenvolvimento da 4ª. Desconheço, e tenho quase a certeza que nunca saberei porque nunca lhe perguntarei, e ainda que o fizesse ele não me responderia, ou melhor seria bem capaz de me responder algo sem qualquer relação com a pergunta e que era: “o senhor, quando abre a boca à medida que acelera, fá-lo mudo, ou imita com a voz o som do desenvolvimento da mudança?” Ou seja, a mímica era muda ou sonora? Ficarei na ignorância no que toca a tal matéria.

A propósito de motas, lembrei-me da história do Mário Ái que toda a sua vida andou em máquinas de 2 rodas, primeiro uma pasteleira marca Súria e depois uma Zundapp X3. Há pouco tempo, comprou uma daquela carripanas de reformado, aquelas que não precisam de carta de condução para serem conduzidas. Na primeira viagem que fez à vila espetou-se logo ali na curva antes da ponte das taliscas porque, tão habituado que estava à mota que, distraído, inclinou-se para a esquerda para fazer a curva, em vez de rodar o volante.

Lá em baixo, na estrada, surge a Alice Gonita que ganha balanço para ir ao povo e, quando passa deixa escapar:

- Bom dia, está cá um CÒDÃO, ó Nazaréi!

domingo, fevereiro 12, 2006

A NOSSA FALA - XLVI - ABEQUILHA OU ABOQUILHA

O meu amigo, grande amigo, Ti Cá, que não é de aldeia - mas é de outra aldeia - , diz-me frequentemente:" às vezes a mimória drome". Figura de raríssima qualidade - é um poço de saber empírico - tem um modo de contar estórias que só Marceau (cá volto eu a Marceau) seria capaz de igualar: para cada palavra um gesto e, as mais das vezes, nem usa palavras: apenas reproduz mimeticamente o que quer dizer.
E O MAIS DECISIVO É QUE QUEM O RODEIA SABE DO QUE SE TRATA SEM SER PROFERIDO UM ÚNICO SOM. Verdadeiramente raro este castiço de 87 anos. (Com bem faça os 88 para o mês que vem!)
Ele, mais a ti Lianor, mulher desempenada, que corrige muitas vezes o nas suas deambulações pelas estórias das suas vivências, é outro poço de energia e , se bem que procure pronunciar assim comédado alguma palavras, acaba sempre por denunciar a linguística de orelha: um BARBECUE é um bórrocu, uma tupperweare é um tapué, um bacorinho é um bacrim e por aí fora...
Mas isto tudo vinha a propósito de a MIMÓRIA DRU(O)MIR... Pois. ..
Se calhar, a maior parte dos que me lêem, não sabe nem nunca ouviu falar da GRÁFICA DO OUTEIRO, onde os manos João e Domingos Alguitarra eram os tipógrafos e o inolvidável Padre Zé Pedro o mentor e tutor; se calhar, poucos se lembram de um rancho folclórico, capitaneado pelo excelente bailarino e cantor, apesar de coxo, que era o ti Zé Soalheiro, alguns, porventura, ainda se lembrarão das festas das bonecas em que a estrada com alferes Rei, a lagariça com os Menas, o oiteiro com o já referido Zé Soalheiro e mais o sr. Joaquim Vicente, barbeiro e médico artesanal, o cavacal com Machos, Pitincouros e Freitas e o bairro novo com Albardinhas, Chquim modas e Ave de Rapina, disputavam entre si a glória da melhor boneca e dos rosmanos mais cheirosos. Aquilo é que eram noites assim comédado!
O maralhal corria as festas todas e o comum entre elas eram sempre as borracheiras, que os cântaros do vinho não faltavam nessa noite.!Outros tempos.
Afinal, contrariando o meu querido ti Cá "a mimória no drome!"
Quando eu andava com aquele mais que famoso e conhecido carrinho quadrado a transportar bilhas de gás, sacas de ração, milho e o que mais fosse, logo por essas seis da manhã (ainda hoje, a essas horas ou até antes, quem for de fora e se aproximar de aldeia, se observar com atenção, há-de reparar numa espécie de névoa que cobre os telhados, por esta época do ano e até aí fins de Abril, conferirá a verdade inabalável do ti Cá: "é o povo a fazer a miguinha da batata...") E era!
Quando abria o trinco da porta - àquela hora já o gado estava acomodado e as portas já não estavam fechadas à chave - chamava: «Ó CHQUIM!» " Quem vem lá?- entra homem: Teu pai é chapado, põe-te a cabanir da cama logo cedo: Já comeste alguma coisa? " «papei dois figos secos e um bolo de leite,» dizia eu. "Assim no vais lá...um home quer-se com génio...e virava-se: eh! cachopa! traz aí uma planganita com uns feijõezitos e um naco bom de pão mais uma çabola! "«ó tchquim inda é cedo!». "A gente pra beber um copo tem sempre que meter uma abequilha, cassenão no se aguenta: metes três colheradas de feijão e bebes uma lata ficas pronto pra malha! " A lata era realmente uma lata. Tinha uma asa também de lata, normalmente obra de Zé Pantelhão e levava 4/4 de litro. Era obrigatório emborcá-la de uma vez...
Pelo menos na casa do Chquim Modas...
Prendia-se-lhe um pouco a língua, mas andava ligeiro e era sempre o primeiro a despejar a litrada: "Viste? é assim. Podes beber as que quiseres mas sempre inteiras e sem parar. A isto é que eu chamo uma directa."
UM LITRO DE VINHO ÀS SEIS DA MANHÃ COM UMA MALGA DE FEIJÃO GRANDE ENCARNADO UMA FATIA DE PÃO E MUITA AZEITONA.Um veneno era o que era.
Dizia o Chquim Modas que na aldeia eram poucos os que eram capazes. Ainda o acompanhei uma boa meia dúzia de vezes. E ele:" és valente catano. És dos bons. A gente nunca se agacha. Se os outros são capazes, nós tamém."
Era uma filosofia bruta, de difícil concordância, mas, documentada ao vivo, não dava hipótese:" a gente com uma aboquilha bebe até cinco litros!". E eu : «Ó Tchquim, pior ca nós só o Zé Moreira, ali dos cucos, que com uma azeitona bebe um almude!» E ele: "eu a raspar um caroço de azeitona despejei cinco litros." Rematou com esta:
"Ficas a saber: a gente para se aguentar a trabalhar, a beber, a comer, a fazer o que quer que seja, precisa sempre da aboquilha! A mim sem abequilha nunca me vês beber. E mais:não bebas nas tascas; bebe sempre do nosso. O vinho é medicinal: de verão refresca o corpo e de inverno aquece a alma!"
Que havia eu, cachopo ainda de voz em falsete, contrariar, face a uma argumentação destas? O importante é a abequilha.
Ainda hoje tenho este hábito, mas não com o alcatruz do Chquim Modas: quando se bebe um copito de prova, pincha-se sempre algo. É a aboquilha. Podeis chamar-lhe mata-borrão, tapa, pincho, acompanhamento, côdea, entretem, raspa, calço, é tudo o mesmo: o que é preciso é fazer a boquinha para o sangue de Cristo. Mainada.
Logo vos voltarei a falar da gráfica, dos Alguitarras e do Zé Soalheiro.
Com uma abequilha e um copito do bom, depois de uma sesta assim comédado, pode ser que a memória no druma e a estória surja!
Ide aboquilhando enquanto esperais...
Deixo-vos outro XXXXXXXXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIII.

quinta-feira, fevereiro 09, 2006

A NOSSA COMEDURA - V - DO LEITÃO COMÉDADO AO ESPARREGADO DE COUVE À BRUTA

O homem e a arte sempre estiveram perto. Foram muitas as discussões sobre o juízo do BELO. A Estética - preocupação, por excelência, do estudo do belo - acaba por se emaranhar já que tão fácil é (?) defender que o gosto depende dos sentidos, que (in)(en)formam a razão humana em função do que lhe é dado a contactar pela via dos sentidos, como se pode defender que o juízo estético é, por natureza, reflectinte, desinteressado, puro, "a priori", garantindo assim uma universalidade e uma objectividade que, aliadas à necessidade, quase permitem afirmar que o que é BELO para um , em princípio, devia ser belo para todos, porque quando eu emito um juízo de gosto de forma desinteresada, parto, A PRIORI, do princípio que qualquer pessoa que estivese na minha posição, diria da obra de arte (ou dum leitão bem tostado e pronto a ser degustado) o mesmo que eu digo. Exijo a adesão dos outros ao meu juízo. Neste sentido, como eu igualo o subjectivo ao objectivo e a liberdade à necessidade, o juízo estético seria universal e o mesmo para todos. MAINADA!
Daqui se infere: " os gostos não se discutem... O que se passa, todavia, é completamente diferente e como diz bem Henrique CAYATTE, excelente designer português," se há coisas que devem ser discutidas, o gosto ocupa o lugar cimeiro."- EU ASSINO POR BAIXO!
A esta hora já estais vós a barafustar:"com filha da puta! Um gajo vem à espera de saber como se confecciona COMÈDADO um reco e apanha com uma meditação lúgubre(!?) sobre problemas de estética a nível hiperurânio. Este Blogue é assim mesmo: quando lhe dá para jogar ao sério ninguém o faz rir. (Apenas MARCEAU e a sua inigualável arte de mimar.) Atendendo a isso, vou dar-vos um MIMO: REVELAR-VOS OS SEGREDOS ESCONDIDOS DA ASSADURA DE UM RECO ATÉ AÍ OBRA DE UNS DOZE QUILOS EM FORNO A LENHA E EM SUSPENSÃO.
TOMAI LÁ A RECEITA E EXPERIMENTAI :
(APROVEITO PARA DIZER QUE AS RECEITAS QUE AQUI SE APRESENTAM SÃO, FORAM E SERÃO, RESULTADO DE provas reais, LOGO, DIGNAS DE TODO O CRÉDITO.
O que precisamos:
1 - um(a) reco(a) aí até 12 Kg de máximo
2 - um forno a lenha com 55 cm de raio, pelo menos. Equivale a 1,10 m de diâmetro
3 - evidentemente, lenha para atear e aquecer o forno até à têmpera adequada.
4 - um tabuleiro que entre na boca do forno e com duas hastes ao centro nas paredes mais curtas do rectângulo com a altura bastante para suportar o bácoro no ar sem bater no chão. Se for necessário prendem-se as patas ao corpo do cochino com um arame.
5 - Exige-se que, ao matar do cerdo, apenas se abra um rasgo no pescoço para tirar a gola e outra ferida no ventre por onde se tiram as tripas.
6 - um pau de loureiro (de preferência) ou outro, ou até mesmo um espeto, suficientemente comprido.
7 - Uma agulha de albardeiro e respectiva guita (barbante) para coser o porco.
8 - É conveniente que o animal seja temperado de véspera.
9 - Para o tempero:
- mais ou menos 20 gramas de sal por Kg de leitão
- 250 gramas de banha de porco
- pimenta branca e preta moídas
- alho com fartura
10- confecção:
- esmagam-se os alhos (20 a trinta dentes abertos, escarchados e sem grelo) com o sal, num almofariz; quando já estiver tudo numa pasta envolver bem a banha; em caso necessário adicionar um chirrichichi de azeite para permitir melhor ligação; juntar as duas pimentas (meio pacote de cada) e continuar a envolver.
11 - a pasta deve estar homogénea, a ligação corredia, mas espessa; pica-se o interior do bacorinho por dentro com faca aguçada, tipo matadeira, mas de modo a que a pele não seja furada.
12 - Pelas aberturas (gola e ventre) barra-se o cochino muito bem.
13 - cose-se com o barbante, fechando COMÈDADO os orifícios; unta-se por fora com a pasta restante .
14 - Mete-se o pau de loureiro pelas traseiras do tó, até às dianteiras e suspende-se o porco no tabuleiro .
15 - Prepara-se o forno, tendo o cuidado de deixar algumas brasas nas laterais e de cobrir o roncador com papel alumínio.O LEITÃO DEVE ENTRAR SEMPRE COM O DORSO PARA CIMA (não esquecer que deve ir tapado com papel alumínio).
16 - se se tiver tido o cuidado de ter preparado umas batatinhas em forma de meia lua, temperadas à maneira: com azeite, vinho branco, água, pimentada caseira, uns nacos de cebola à alma do diabo e uns cheiros de toucinho de presunto, uns raminhos de salsa e pimentada caseira para dar o sal, metem-se os tabuleiros e encostam-se às paredes do forno tendo o cuidado de os cobrir com papel alumínio.
17 - introduz-se o animal com a cabeça virada para dentro e espera-se aí obra de 15 minutos e veda-se a porta do forno
18 - abre-se o forno, destapa-se o porco do papel de alumínio que o cobria, despeja-se um bom meio litro de vinho branco para o tabuleiro e volta-se a fechar bem o forno.
19 - esperam-se mais 10 minutos até que a pele do dorso toste bem, retita-se o tabuleiro para o porco "constipar", tapa-se bem o forno para não perder têmpera, barra-se com o próprio molho, entretanto caído para o tabuleiro misturado com o vinho branco, e introduz-se de imediato no forno, que volta a ser bem fechado.
20 - Meia hora depois, torna-se a vazar vinho branco no tabuleiro e veda-se o forno.
21 - Ao fim de mais ou menos duas horas o animal deve estar pronto a partir para os comensais.
...
Enquanto todas estas fases ocorrem, vai-se à horta, cortam-se umas couves de variadas espécies: lombarda, bacalan, coração de boi, penca, valhascos,... , cortam-se grosseiramente, enquanto uma panela grande aquece no fogão a água para as cozer, lavam-se bem, deixam-se ferver até cozer sem amolecer, escoam-se da água e reservam-se.
Descascam-se uns 20 a trinta dentes de alho, espalmam-se, TIRA-SE O GRELO, e esturgem-se numa caçarola onde caibam as couves escorridas.
Quando estiverem a amarelecer, despejam-se as couves e, com colher de pau, envolvem-se bem no AZEITE onde se esturgiram os alhos.
Quando estiverem bem untadas, já embebidas do gosto alhado, salpicam-se com vinagre de vinho tinto a gosto, envolvem-se em farinha sem fermento e abafam-se.
Da parte da água onde se cozeram as couves pode fazer-se um arrozinho malandro.
Vai tudo para mesa em simultâneo: leitão partido, acompanhado com gamelas do molho que se retirou do seu próprio interior, batatinhas forneiras, arroz em água de couve e o esparregado feito à bruta.
Degusta-se, acompanha-se com tinto bom de uva (que ainda o há) e enfeita-se com os mais variados comentários. Convive-se.
Nos finalmentes, pode servir marmelada caseira com queijo amanteigado, ou requeijão, simplesmente queijo curado vazante, uma boa ginja de dois anos, um café travado, e um Jameson para arrebater.

CUIDADO COM AS VIATURAS E COM QUEM VAI NELAS.
...
podeis então discorrer sobre quem tem mais razão: se quem defende que o prazer e o gosto (a AITSESSIS) são de cariz subjectivo e derivados das informações sensoriais, ou, qualquer gosto é uma aparência da realidade longínqua da perfeição gustativa única de que este gostoso prato apenas participa...
Um bom apetite e melhor proveito são os desejos dos tutores do blogue. UM XXXXXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIII
Sempre é melhor tema que futebol ou gajas (déjà vu).

quinta-feira, fevereiro 02, 2006

A NOSSA FALA -XLV - TRAMONCO OU MATRONCO

Vedetas da nossa xendrice são, sem dúvida, Chquim e Jó Camião. Que me lembre, em matéria de cortar língua, só Zé Melgo, o partenair de Tonho Feduchas, serradores que eram no tempo do caibramento em madeira, poderia rivalizar com eles. Com os copos havia outros: o mais famoso será, sem dúvida, Agostinho Cagarela, também conhecido por Cabo Vermelho, que, como morasse para os lados da quinta do Ramalhão e tinha que passar as poldras, ali onde agora está a ponte, a seguir à casa Queimada, ele ia pela água enquanto o garrafão, esse ia pelas poldras, não caísse e fosse perder-se o precioso líquido. Era um espectáculo ver o equilíbrio de Agostinho a salvar o tintol, semelhantemente a Camões a salvar "Os Lusíadas". Só que esta épica façanha nunca fora antes contada. Se não chegou à Taprobana, não há dúvidas que muito se exigiu também à força humana . Fica agora o registo e mais ainda: «cale-se tudo o que a musa antiga canta/que outro valor mais alto se alevanta» e «Cantando espalharei por toda a parte/Se a tanto me ajudar o engenho e a arte.»
Em tempos, a avó de Jó e mãe de Chquim, a mais que famosa e inultrapassável velha Pieres, limpava tudo quanto era valeta e caminho apanhando todo e qualquer gravato. Era com eles e com a silvas que ia catando das divisórias limítrofes das parcelas dos chões, que, dia a dia, acendia o luminho que a aquecia a ela e ao Chquim e fazia a comida, numa panelita de ferro que poucas vezes era lavada, guardando sempre o unto de umas refeições para as outras. Muitas vezes a vi eu com um molho à cabeça, sem molídia, mais parecendo um ninho de cegonha a andar, rasteirinho.
Diziam as más línguas que o pai de Cquim Camião era outro Chquim, o ti Chquim Cavalo, homem espadaúdo, mais alto ainda que o chquim Camião e da largura de Jó e meio. Calçava 47. Mandei-lhe virar ainda algumas botas na torcedeira ou vergadeira e o Manuel Vinagre dizia sempre que demorava o dobro do tempo a palmilhar umas botas daquelas e que assim não lhe interessava ter fregueses daqueles.Era o que se podia chamar um HOMENZARRÃO. Vinagre era mais para o lado do tamanco e dizia que aquilo não era um homem, mas um matronco. A Mari Varónica, que morava em frente, corrigia: « não é matronco, é tramonco ».O ralho começava ali. Ilda aparecia também e o Cavacal, ali para os lados da rua das Aranhas animava, já que vinham logo Bandeira de Guerra, mãe de Ilda, um pote de veneno, a avó de Amílcar Faiçal, mulher de Estica, G. N.R., reformado, e que tinha uma cabrita que mais parecia um cachorro, cantora esganiçada, sempre na igreja, junta com Albertina Molhana e Rosa Rei. Dos assistentes faziam ainda parte, Tonho Félix e sua mãe Velha Lorpa, às vezes, a cunhada velha Nacha, aquela mesmo que Zé Luís tinha enganado dizendo-lhe que iria cantar à Rádio Renascença, ao programa do António Sala e não raro, as manas Rancheiras. Dificilmente se encontraria melhor. Nem com uma candeia, ao meio-dia, se juntaria melhor grupo. Vinagre de sovela na mão e avental de sapateiro, tirava os óculos e virava-se para a Varónica: "onde é que queres a cama?"
A discussão ia acesa, quando eu, carrinho quadrado com rodas maciças, vou a passar, transportando uma bilha de gás e uma saca de 115 para os pitos em crescimento, destinada ao velho Bezerrinho, pai do ' mê filho DOTORRE ADVOGADO '.
O velho Estopa, pata galhana, que morava paredes meias com a Varónica e estava a acender o lume para cozer umas couvitas com um naco de entremeada do porco do Maregas, aparecia à porta e vou eu:«o que que passa, ó ti Mnel?» «E eu que sei, cachopo!? Ouvi para aqui esta balbúrdia e vim ver o que era! Vejo o Vinagre e a Varónica a aldeagarem e o resto do povo, cada um para seu lado a ver se os acalmam, mai no sei!». Parei a viatura, pus-me a ver o que se passava e vou-me ao Vinagre: «Que é lá isso?» Ouvi a estória, levantei os braços e proclamei:
« ambos dois têm razão». Aí calou-se o chavascal... «Isto é segundo e conforme, continuei, se for uma mulher é um MATRONCO, mas se for um homem é um TRAMONCO».
Perante uma sentença Salomónica destas, não havia mais razão para ralhos. Mnel Coveiro, companheiro de Varónica, que entretanto tinha ido por um enxada a fim de abrir a cabeça ao Vinagre e não perder a embalagem para lhe abrir a cova no cemitério, voltou à loja e pendurou-a no arame, Bandeira de Guerra, não sem cuspir, quando passou por Varónica,«puta, que és uma puta», recolheu a casa, Vinagre chamou-me de parte e mais ao velho Estopa, foi por um pucheiro de vinho novo e solta: «ó rapa a unha, (era assim que me chamava), tu és chapado! atão mas é verdade que os homens são de uma maneira e as mulheres doutra?». E vou eu: «é, poi; ainda há outro género no latim que é o neutro e mais um no grego que é o dual. Isto é assim: há coisas que só têm duas hipóteses, por exemplo, ou pegas com a mão direita ou com a canha, ou sobes ou desces, ou és gordo ou és magro, ou é de noite ou de dia, quer dizer, ou é uma coisa ou outra, não há meio termo. Aqui é igual, ou é homem e é Tramonco ou então é mulher e é Matronco.» Estopa sai-se: "ele há coisas dum filha da puta! já aos anos que ando no mundo e nunca tinha arreparado nisto. Ó Vinagre, rica pinga, bota aqui mai uma cochada!».
Estávamos nós nesta aula de perfeccionismo linguístico quando pai e filho Camião passam em frente da loja de Vinagre:« Olha, ali vão dois Tramoncos!»
Chquim ouviu e vira-se: "Tramonco era teu pai quando te fez as orelhas"
«Já está aqui o fado armado outra vez» diz o Estopa!
Voltei à carga, empurrei o Vinagre que já se ia ao Camião com a pedra de bater a sola:
« Calma, porra! Ó Chquim, segura aí no coucho que hás-de provar se aqui só há Vinagre ou também há vinho!» Jó começou-se a rir:« esta fô boa, fô, fô! bem fêta,Vinegre, bem fêta!»
Camião emborcou o coucho, e o Vinagre:« tu és chapado, ó rapa a unha, és chapado »!
Bebemos mais um copo e lá me fui com o carrinho quadrado de rodas maciças a levar a bilha do gás e a farinha 115 prós pitos em crescimento ao Bezerrinho, pai do DÓTORRE ADVOGADO.
É a vida.

quinta-feira, janeiro 26, 2006

A NOSSA FALA - XLIV - A MANDINGA

Zé Borges ( o prometido é devido) era mais aldrabão que os políticos em campanha eleitoral (façanha julgada impossível). Era uma bomba de palavreado! Sempre bem arreado, bota reluzente que de vez em quando era reforçada no brilho com tinta coureina e cuspo do Zé guerrilhas, onde Borges se dirigia para quase nelas se ver ao espelho... de andar meio gingão, frequentemente metia as mãos nos bolsos e, ao mesmo tempo, puxava as calças para cima, deixando ver o cano da bota e mais ainda umas meias alvas, bordadas pela D. Lurdes com cinco agulhas - um esmero -; ficava nessa altura com a aparência de ser um pouco mais alto do que realmente era - era uma das mandingas que utilizava para provocar ilusões; entrava nas tascas mas não bebia nem pagava; o interesse era sempre meter conversa e achar campo para enfiar mais umas boas galguérias. Não raro, aqueles que o conheciam de gingeira, serviam-se da mesma mandinga e puxavam as calças para cima ou subiam para cima dum qualquer banco que estivesse à mão e cantavam o "arregaça, arregaça a calça, que se soltou da alsa"...Aí Zé Borges via que o peixe já não rendia, servia-se de uma tosse gutural, embolsava uma escarreta e atirava-a para o centro da estrada, dizendo invariavelmente: "ah! puta! com um tremoço no meio parecias um ovo estrelado"; o cabelo estava sempre nos trincos e de tamanho curto, próximo do rente: é que Zé Borges fora marinheiro, dizia ele, CAPITÃO DE FRAGATA, e dispunha-se a mostrar a jaqueta com os galões a quem o quisesse comprovar - mais uma mandinga - .
Contava ele que em África tinha visto uma jibóia com 15 metros e que com um arrocho tinha partido um dente de marfim a um elefante e que duma vez se viu frente a frente com um leão: calmo, como se impunha, agarrou um pequeno estadulho e quando o leão abre a boca para o apertar nos dentes afiados, enfia o estadulho na boca do rei da selva que, ferido no céu da boca, mete o rabo entre as pernas e foge acagaçado com a calma de Borges. Em Lisboa o comboio andava 30 metros debaixo de água e na aldeia tinha ele tido uma ovelha que tinha parido e criado oito gatos.
Um dia, Chquim Mouraria, mais conhecido por Malagoto, genro de padre Zé, mandador nas eiras onde se fazia a malha a mangoal (ainda vos lembrais dele?), velho Prim, aquele mesmo que um dia enquanto o velho Remédios, viúvo já, descia à loja para trazer um pucheirinho de vinho e dar um copo ao Prim, ele, o mal agradecido, com um gravato, saca a farinheira que o velho cozia na panelinha de ferro e, apercebendo-se que ele já subia, enfiou-a na fralda da camisa e, embora a dor da escaldadela fosse enorme, aguentou firme e emborcou o copinho ao velho; quando chegou à tasca do Fatela mostrava a cicatriz da escaldadela: "só queria uma farinheira mas fiquei com duas," dizia o malandro), bom, mas então era o Malagoto, o velho Prim, o Marrafa (que passava os dias sentado no baturel do Fatela ou do Chico - era só atravesar a estrada -, e mais ainda o velho Corlha, Zé Espantado, Zé Ferrenho, Manuel Freitas e Zé Luís - uma equipa de rara envergadura em matéria de artimanha - combinam espetar uma ao Zé Borges. Depois de muitas hipóteses Malagoto decidiu: pagamos um copo ao João Feijão, para o Borges não desconfiar e é o Feijão que lhe vai dizer que a cadela aqui do Ferrenho pariu dois borregos e que os dois tinham uma cabeça para a frente e outra para trás e mamavam à vez com a boca em cada uma das tetas da ovelha. E foi.
O Feijão, ao princípio, ficou relutante mas com mais uns copinhos lá se foi ao Zé Borges e dar a notícia. Não tardou que Borges aparelhasse a burra - animal invejável, sempre bem calçado de ferradura e aparelhado com gosto, albarda sempre coberta por manta de farrapos, arreios reluzentes, e, que eu me lembre, a única burra que tinha estribos - e se pusesse a caminho à casa do Ferrenho que ficava para lá das Portelas, no Batcharel, mesmo em frente ao pinhal do Chico Sarapião, regedor que era, ao tempo.
Ferrenho, bem instruído por aquela equipa de mandingas, fez-se de novas e mais atiçou Zé Borges: « Ó Sr. Zéi, ele verdade, é, sim senhor, mas veio cá o veterinário e levou-os para a Vila. Só se cá vier amanhã!» Volta Zé Borges à aldeia prometendo que voltaria no dia seguinte. E voltou... mas não encontrou o Ferrenho e ficou sem ver nada outra vez. Fez a viagem todos os dias da semana. Esperou o Ferrenho à hora de missa no Domingo e lá combinaram dia e hora.
Ferrenho via-se agora encalacrado porque já não sabia como descalçar a bota. Calhei a passar, passo a mão pela careca do Ferrenho, Mnel Freitas sai-se logo:"oh! tu és cma elas: só gostas dos carecas!",ouvem-se os risos do costume, passa-se por cima e acabo por saber a história contada pelo Malagoto que, proibido como estava dos médicos de tocar em pinga de álcool, se oferecia agora à mulher para ir tratar das pitas à capoeira, onde tinha escondida uma garrafinha com aguardente da rija. A pobre da mulher nunca desconfiou desta mandinga do Malagoto! Abalou cedo, coitado! Bem,... mas adiante
Digo eu ao Malagoto:« Óh Chquim, agora só vos safais se disserdes que, dada a raridade do fenómeno, o Estado vos confiscou os borregos e os levou para o Museu de Arte Natural».
-"Diz lá outra vez!" Eu repeti umas quantas até que o Ferrenho foi capaz de dizer direitinho a tramóia.
Malagoto, que ao tempo, trabalhava em Castelo Branco assujeitou-se a perder meio dia só para ver se o Borges aparelhava a besta e ia ao encontro do Ferrenho a ver dos borregos.
Borges, militar como fora, - tratos são tratos - à hora aprazada lá estava. Ferrenho portou-se à altura.
Nesse dia no adro não se falava de outra coisa.
Borges, só tarde e às más horas é que se apercebeu da mandinga.
Tendeirinho, figura rara na aldeia, pedreiro em Campolide, esposo amado e dedicado de Mari Chã Chã, numa de filósofo da àgora grega, sai-se com uma de se lhe tirar o chapéu:«Bem feita! ia por lã e veio tosquiado!»
Até o Tonho Bondito e o Zé Balão tiraram as mãos dos bolsos e bateram palmas!

quinta-feira, janeiro 19, 2006

A NOSSA FALA XLIII - ENCRENCAR

Em cada aldeia deve haver um homem assim - sim, refiro-me apenas a eles. Um homem sempre pronto a dar à língua, a meter o bedelho em tudo o que não lhe diz respeito, cuscovilheiro (não constava no meu dicionário, não sei se a grafia é esta, mas deve entender-se com o mesmo significado que habitualmente se atribui a certas mulheres e - sinais dos tempos modernos - também a alguns homens), gozão, malino, desconfiado, provocador, convencido, uma espécie de torgalho, mas refinado. Avelino Falabarato era um desses. Um dos melhores sítios para o ver em acção era na sessão de sueca da tarde de domingo. Não importava que estivesse a jogar ou de fora, era certo e sabido que ele encrencava a jogatana e o resultado era sempre o mesmo: valentes discussões que divertiam uns e exasperavam outros. Tudo porque o outro não jogava as cartas que devia ter jogado. Irritante para todos era a sua maldita balda para desconversar e para dar um sentido maldoso às palavras.

Quando um dos seus compinchas se despedia era inevitável ouvi-lo:

- Já vás? Anda vai e vem qu’inda m’aqui agarras.

Havia os que já lhe conheciam a faceta e nem ligavam. A maioria, não apanhava o sentido, e ainda que atento, raramente o visado levava a mal. Uma vez, o Alfredo Mamanaburra levou, e não foi de modas: deitou as mãos à portinhola das calças de fazenda do Falabarato e... apertou com força, como quem espreme os tomates para fazer a tomatada. Avelino teve de aguentar a dor e a galhofa das testemunhas. Quando era ele a despedir-se lá vinha:

- Atão vá! Já me vou qu’hoje vou a dormir com uma mulher casada.

Em situações raras, tinha boas tiradas como aquela no casamento de um sobrinho em que o 4º quente da ementa era cozido à portuguesa e a senhora de decote generoso lhe encheu o prato de cenouras.

- Ó mnha senhora! atão vomecêi cuida que eu não tenho cenoura? Ande tire lá isso que já tenho que chegue.

- Olhe que dizem que faz bem aos olhos…- quis ela ser ingenuamente simpática.

- Pois, está bem! Mas ande que eu vejo bem a carne…

Sempre que apanhava um novato no grupo, desafiava-o para a aposta habitual. Mostrava-lhe a mão fechada, assim como que a jogar à moedinha e atirava:

- Tu queres apostar a todo o dinheiro de nós os dois juntos que eu tenho mais dinheiro aqui na minha mão do que tu?

O outro, se calhava ter a carteira bem recheada, e calculava que seria impossível o Falabarato conseguir guardar numa mão fechada a mesma quantia, atrevia-se:

- Olha que perdes! Vamos lá atão a ver.

Triunfante, o Falabarato exibia uma moeda de 1 euro e perguntava:

- Eu tenho aqui 1 euro. Mas é meu, tu não tens dinheiro nenhum teu aqui na minha mão.

Naturalmente, a aposta considerava-se saldada se o perdedor pagasse uma rodada.

Doutra vez, arranjou um sarilho com a Lurdes Malagota que vinha da horta com um caldeiro cheio de cabeças de nabo na molídia e o Falabarato não resistiu:

- Ó Lurdes, os teus nabos parece que não são lá grande merda. Os meus é que são bons. Olha, eu tenho lá um nabo que tem talo no grelo.

A Lurdes não a apanhou, mas o homem dela sim. Valeu o Feduchas que se pôs no meio e convenceu o ofendido que o Falabarato estava a brincar.

- Ele que vá a mangar c’a puta qu’o pariu, ora o filho dum corno.

Eram conhecidos outros jogos de palavras da mesma laia que o Falabarato gostava muito de usar, provavelmente desde que comprara uma cassete do Leonel Nunes na Senhora do Incenso: ele era “o meu feijão verde tem fio”, “ a minha uva tem cacho”, “a minha couve tem talo no olho”, ou “o bacalhau tem rabo”, etc.. Um malabarista da palavra, o Avelino Falabarato.

Mas aparece sempre um mais esperto. Um dia, ia ele a caminho da vinha armado de tesoura e serrote para a poda, no coldre de cabedal enfiado na correia das calças, passa pelo chão do Moca que estava armado de guilho e marreta a rachar lenha. Vira-se o Falabarato:

- Ó Moca, dou-te 20 euros se me venderes aí o monte da lenha.

O Moca olha para as 3 toneladas de lenha de azinho, sorri para o brincalhão do Falabarato e responde:

- Se me deres os 20 euros, sou capaz de te vender a lenha.

Avelino Falabarato ficou surpreendido com a oferta, mas não podia voltar atrás. Agarrou na nota de 20 e passou-a para as mãos do Moca.

- Pronto! Negócio feito, vou já a buscar o meu ratatau e ainda levo hoje a primeira carrada.

- Levas o quê? Tás parvo ó fazes-te? Eu disse que aceitava os 20 euros para te vender a lenha, não disse quanto é que queria por ela.

- Ai o rai! Já m’encrencaste!

quarta-feira, janeiro 18, 2006

Karraiazinha

MADALENA

(foto retirada devido a processo de desactualização irreversível)



Ano II

Tenha tudo de bom
O que a vida contém
Tenha muita saúde
E amigos também

sexta-feira, janeiro 13, 2006

A NOSSA FALA - XLII - CATREFA E/OU CATREFADA

Isto hoje vai ser mais variado: começamos por uma lição de fonética e acabamos com uma receita de coelho doméstico com couve de repolho.
Então é assim: Catrefa deriva do latim CATERVA. Significa GRANDE QUANTIDADE. Vergílio, na Eneida, e cito de cor que agora não tenho aqui a obra à mão, escreve assim: Et regina, magna cum stipante CATERVA virginum, dum maximus pontifex ad aram ascendebat... Aí vai a tradução: e a rainha, acompanhada por uma grande quantidade de donzelas, ao mesmo tempo que o sumo sacerdote se dirigia para o altar, lá no alto ...
Como é por demais sabido, o povo faz a língua e segue frequentemente a lei do menor esforço. Isto é mais visível quando algumas consoantes são muito próximas em termos de som e pronunciação ou quando a articulação da palavra oferece alguma dificuldade. Nesse caso, dá-se a volta por cima. Foi o que aconteceu com a passagem de caterva a CATREFA: Dá-se uma metátese (reparai que se passa de CATER a CATRE e depois verifica-se um abrandamento do V ao F. Reparai que estas duas consoantes se pronunciam quase da mesma maneira: são labiais, só que o V é sonoro e o F é surdo. Vai daí, o povo não está com meias medidas: fica CATREFA, e não se fala mais nisso. E ficou. Voltaremos a esta temática um dia que calhe!
Era Sexta-Feira à noite.Verão assim quente comédado! Junto ao muro do Marcelo estava eu com Coiote Pete, Jorge Alguitarra, J.J. Cabeças, Barbaças e Abraço de Basuca. A conversa entre cachopada vai sempre a dar ao mesmo: gajas.
Avaliavam-se várias figuras, quando nisto, passa o mardlhequinho (chamavam-no assim porque não era capaz de pronunciar bem os dois RR e como tinha marrecos e estes iam até à ribeira em fila indiana, ele quando os queria de volta à capoeira ia à ponte e punha-se: "mardlheco mardlheco, mardlheco, mardlequinho!...."O facto é que os marrecos acudiam à voz e aí iam perfilados atrás dele como os gansos iam atrás de Konrad Lorenz.
Diz Coiote Pete:« OH! se o mardlheco vem a esta hora, dorme cá. O velho tem uma coelheira dum corno. Fui lá outro dia com o Tero e vi. A porta está fechada com um baraço num prego e o cão é manso como a terra.» E vai o Cabeças:« porra, mas o carregal é longe!» Logo atalha Alguitarra:« vamos de tchasso.»« Só há uma», diz o Barbaças...E eu: «Vou buscar a do meu velho e empresto-a. Eu a roubar os coelhos não vou, mas posso-os cozinhar e emprestar a bicicleta.» Nisto o irmão do Basuca passa na bicicleta e é logo interpelado: «Ó puto, vai a pé para casa e deixa ver a chincha.» O cachopo protestou mas a ameaça do Basuca resolveu tudo num instante. Aí vão eles: Coiote Pete, Cabeças e Basuca. Eu fui pelos garfos, colher de pau, louro e a bifar uma bilha de gás , um redutor com tubo e um fogão Presmalt de dois bicos que a minha mãe levava para as excursões, alguitarra arranca a buscar o vinho e o pão e o barbaças foi-se por um tacho dos grandes, cebolas, azeite e alho. Agarramos no carrinho do gás e ala: toca a andar para a mina de Toco Jabão. Havia lua... E que não houvesse! todos conhecíamos o caminho.
A páginas tantas diz o Barbaças: «Atão e comemos os coelhos com quê?» « Com couves é que era bom,» digo eu. E eles: "Com couves? A Ti purificação tem-nas lá boas debaixo da laranjeira, daquelas do repolho." «Vai lá e traz aí umas quatro ou cinco, enquanto eu e aqui o Alguitarra montamos a bancada». Assim foi.
Pelos atalhos das Taliscas, entretanto, os outros três lá iam em busca dos coelhos do mardlheco. Foram e vieram.Trouxeram só um. Um, pensávamos nós: era uma e prenha!
Coiote Pete, viemos depois a saber, apalpava o lombo (nenhum se lembrou duma pilha nem dum fósforo) e agarrou aquele(a) que lhe pareceu maior, meteu-a para dentro do saco, pôs no suporte da bicicleta e: ala milhano!
Depois de uns quantos praguejos e alguns a dizer que já não comiam e de alguma narrativa lá nos decidimos a esfolar a coelha. Dizia Coiote: «fugiam como os ratos e era uma catrefada deles, no se via nada o que quereis? fosseis lá vós»! Entretanto quando a barriga da coelha é posta à luz da lua vimos que tinha dez caçapos.«Mal empregada.Trazia uma caterva de coelhinhos. Meu amigo, vai mesmo assim»! E foi.
Como só havia um tacho e para adiantarmos tempo eu já tinha as couves cozidas e vá lá que o ti joão caçador tinha um balde perto do poço ali ao lado, senão, não tinhamos onde as deitar.
A coelha era rija, demorava a cozer e para variar a conversa ia a bater sempre ao mesmo: gajas.
Vou eu:«porra! não se fala mais em gajas hoje. Contamos uma história engraçada cada um e pronto, até que a coelha se coza maneirinhas.» e foi assim que o Cabeças arranca com esta: «Atão não querendens lá ver que o padre zé pedro, outro dia, vira-se para o tzé sardones e atira-lhe:-"ó Sardones, olhe que você ainda não pagou a côngrua nem deu a esmola para o santo!" E o Sardones: «Oh senhor prior: eu tenho uma catrefada de filhos, farto-me de trabalhar para ver se não passam fome... Bem, a congra é lá com a minha mulher, mas a esmola ao santo, pago-lha já: o senhor prior empresta-me o santo durante um mês e eu sustento-o junto com os meus filhos. »O pessoal que ouviu pôs-se a rir e o padre desandou.
E nós também rimos e quase em uníssono: bem feita!
Ao fim de um boa hora lá se roeu a coelha!

1 -Alagar bem o tacho; não poupar o azeite : à vontade aí meio quartilho ou mais.
2 - Deitar cebolas migadas, alho e louro e o coelho migado grosso. Abaixar o lume e deixar cozer no azeite na cebola e no alho.
3 - Testar se o garfo já espeta na carne e juntar as couves (não esquecer que as nossas já estavam cozidas para ganharmos tempo). Tapar o tacho deixar cozer, lentamente.
4 - Quem gostar de umas batatas pode acrescentar depois de as couves já terem suado.Temperar de sal a gosto e picante se gostarem.
5- Sempre em lume brando
6- Juntar vinho tinto ou branco, avivar o lume, deixar apurar e servir.

NB: reparastes que não leva água. A água é apenas a resultante do próprio coelho e das couves. A importância de cozer sempre em lume brando e com o tacho sempre bem tapado, está aqui. Doutra forma tende a esturrar e lá se vai o petisco.

Muita atenção: não vale roubar o coelho!

terça-feira, janeiro 10, 2006

A NOSSA COMEDURA -IV - BATATAS (solteiras, assadas na água e à cão reles)

Sem dúvida uma das bases alimentares "do nosso povo" (onde é que eu já ouvi isto?), o tubérculo da batateira, para além de ser de muitas variedades permite quase tanta modalidade de confecção como o nosso querido e fiel amigo da Terra Nova, Noruega, Pacífico,...
Hoje vou trazer-vos aqui três possibilidades de confeccionar a batatinha, assim comédado. - E COMÉDADO, não custa nada - .
Iniciemos então a confecção:

a) BATATINHAS SOLTEIRAS

Arranjai uma boa caç(ar)ola, ou caçoilo de barro, ou melhor ainda uma travessa da mesma argila.(Em alternativa um bom tabuleiro (lata) de alumínio, daqueles de meter os bolos de leite ou os esquecidos, em tempo de boda, ) e
1 - começai por descascar as batatas ( se forem das novas e pequenas basta que as raspeis). Cortai aos cubos ou quartos, ou longitudinalmente em forma triangular;
2 - descascai também umas quantas cebolas;
3 - disponibilizai uns tomates e pimentos e meia dúzia de dentes de alho;
4 - cortai em fatias "ad hoc" umas tiras de entremeada, umas rodelas de chouriço;
5 - lavai duas ou três folhas de louro;
6 - no fundo da caçola vertei generosamente umas gorgoladas de azeite;
7 - envolvei as batatinhas aos cubos com as cebolas grosseiramente cortadas, os tomates rachados à balda e meia dúzia de tiras de pimento, as folhas de louro e os alhos espalhados, as fatias de entremeada e as rodelas de chouriço;
8 - fazei uma mistura de vinho branco e água em percentagem mais ou menos idêntica, dissolvei o sal necessário e um pouco de colorau. Podeis mesmo aquecer um pouco para que a liquefacção seja melhor conseguida. Despejai sobre o preparado anterior. Quem gostar de picante pode meter, a gosto;
9 - Metei no forno aquecido. (Bom, bom é em forno de lenha, mas não havendo, serve o do fogão doméstico) aí obra de uns trinta ou quarenta minutos e no caso de começarem a tostar sem estarem devidamente cozidas/assadas convém tapar com uma folha de alumínio.

N.B. - Acompanham divinamente qualquer prato de carne seja ela confeccionada no forno ,ao lume ou no fogão!

b) BATATINHAS ASSADAS NA ÁGUA

1 - Ponde um recipiente, com o tamanho que considerardes necessário para o número de comensais, com água, a ferver;
2 - utilizando de preferência sal grosso, vertei nessa água umas boas quatro ou cinco mãos cheias de sal;
3 - antes ainda de levantar fervura e com o sal já derretido introduzi as batatas com casca e bem lavadinhas, que devem ser adequadas, como se fosse para assar no borralho/cinza (a chamada batata miúda);
4 - a água deve apenas cobrir as batatas. Deixai cozer destapadas;
5 - quando estiverem prontas escorrei, deixai arrefecer só um bocadinho e apanhai para um saco de plástico. As batatas devem apresentar um coloração esbranquiçada na casca, fruto do cloreto de sódio;
6 - entretanto tende já feito um molho à base de azeite, vinagre tinto de vinho, bocadinhos de folha de louro, e bastante alho a que tirastes o grelo e esborrachastes grosseiramente e colorau.
7- socai as batatinhas dentro saco que deve ser transparente para haver a certeza que são todas murradas, despejai o molho bem batido e servi de imediato, a fumegar.

NB- São excepcionais para peixe assado na brasa (bacalhau, chicharro, besugo, sardinha, corvina, ...) ou mesmo carne: entremeada, entrecosto, febras, frango, ...

c) BATATAS SALTEADAS À "CÃO RELES"

1 - Descascai as batatas necessárias e cortai em cubos médioS; lavai bem;
2 - servi-vos de uma frigideira anti-aderente para a qual verteis um pouco de azeite e uma pouca de banha de porco. (nunca deveis fritar apenas em banha que facilmente esturra e é insalubre);
3 - introduzi as batatas, avivai o lume, tapai o recipiente, deixai suar;
4 - escarchai, mesmo com casca, meia dúzia de dentes de alho;
5 - quando destapardes o recipiente, aventai com os alhos para dentro, salgai a gosto com sal do grosso; tornai a tapar;
6 - quando as batatas aparentarem uma coloração levemente acastanhada, no caso de vos apetecer, salpicai com um chirrichichi de colorau. Mexei e servi de imediato.

NB - acompanham bem, lombo ou lombinho de porco assado, frango corado, entrecosto e o que mais for de carne boa e saborosa. Se gostardes de um pouco de verde para dar cor, estas batatas casam muito bem com um esparregado de nabo, espinafre, (...) ou mesmo roupa velha.
Facílimas de confeccionar, demoram pouco mais de 5 minutos num bom fogão e admitem quase todo o tipo de carnes para sua companhia.

Aqui vos deixo três desafios. Ousai experimentar e dizei-me dos resultados!
Bom apetite!

sexta-feira, janeiro 06, 2006

A NOSSA FALA - XLI - PI(E)LHARANCA

«Onde raio tenho a gaita que a não acho?» Perguntava o Mné Grande. E eu: " Ó Mnel isso já não é uma gaita ; é uma p(e)lharanca! deve ser parecida com a tripa duma farinheira cozida acabada de comer"!»Quando chegares à minha idade logo vês se não vais precisar dum peniscópio
Era um gosto vê-lo comer, a este pesado amigo.Tinha por hábito dizer que nunca na vida tinha almoçado:«só enganei o estômago
Sempre disponível: bastava que se lhe arranjasse um assento mais ou menos ajustado àquela massa informe e se lhe pusesse à mão o que fosse preciso ele fazer: descascar batatas, raspar cenouras, migar carne, e o resto - um pão dos grandes, um garrafão de cinco, uns nacos de presunto, queijo, malgas de azeitona retalhada e, por copo, uma garrafa - . Era assim: ia trabalhando, comendo e bebendo. Aí por essas onze já se ouvia o pigarro da sua garganta. Poucas falas, que quanto mais falasse mais ar entrava e mais se lhe irritava a garganta.Portanto: há que tapar a entrada do ar com mais pão e presunto e queijo e molhar bem a garganta para tudo escorregar comédado.Era só uma garrafinha de cada vez. Assim mesmo: uma garrafinha !
Ao almoço comia pouco- pouco é como quem diz: dois discos de sopa de feijão com couve e massa manga de capote, basta quanto pudesse ser, cinco batatas das grandes, uma massinha de borrego e uma travessa de esparregado de nabo por via dos alhos que catava a cada instante. Duma vez lhe vi comer três cabeças. Era aproveitado: sobrava pouco e, delicadamente perguntava: « as pelharancas, deito-as aos gatos?» às três mais ou menos começava a sesta. Até às cinco. Acomodava-se no assento e pronto, já só se ouvia ronco!
Quando era mais novo o nosso Mnel era trabalhado: arranjava sempre desafios no Domingo à tarde onde ele pudesse ser o vencedor e assim encher o fatinho sempre à mama.
Alguns dos que me lêem hão-de ainda lembrar-se das amoreiras no largo baldio da lameira - resquícios de uma pequena indústria artesanal- . A mais alta estava pegada à tasca do Cavalheiro. Não era raro que a rapaziada se queixasse e, mais ainda, as mulheres que tinham lavar as nódoas provocadas pela tintura da amora.(Se por acaso ficardes com as mãos sujas de comer amoras, o antídoto é lavar as mãos com amoras verdes. A roupa é que não se pode lavar assim) .
A pernada mais alta dessa amoreira tinha inclinação para o lado da estrada e o que se meteu na cabeça do Mné Grande?:«Pago cinco litros a quem me desafiar e chegar mais alto a subir a esta amoreira.» Depois de esperar que alguém aceitasse o desafio,acrescenta: «Cagões, sois todos uns cagões! Pronto: podeis juntar-vos cinco contra mim!» Aí, João 27, chico traitoiras, arrebenta canelas, zé encrencas e macuácua, aceitam a aposta. Impõem como condições que só poderia subir uma vez cada um, nunca voltar atrás à procura de melhor caminho e que o Mné Grande era o primeiro a subir.
A malta começou a juntar-se. Mné Grande ainda protestou, mas logo se ouviram vozes: "agora o cagão és tu"! .
Decidiu-se: embarra pela amoreira acima, galho após galho e com a envergadura dos seus quase dois metros, estica a mão direita, arranca um raminho e precura lá de cima: «Vistens todos donde cortei o ramo?» Confiante na vitória ele aí vem, sorriso franco, a encostar-se à parede. Arranca Encrencas, mas a falta da altura impediu-o de bater Mné Grande. Vai Traitoiras , mas um galho que se escavacou, obrigou-o a voltar atrás e pronto. Mnel não foi de modas: ´"ò Cavalheiro traz aqui 5 litros que alguém os há-de pagar!"Foram ainda tentar bater a altura do Mnel, o arrebenta canelas e macuácua, sem resultado.
Sobrava 27: perninha fina, sempre a piscar os olhos, gracioso no andar - a mulher até dizia que ele dava para modelo! -, tira o casaco de lã, arremanga as calças até um pouco acima dos tornozelos, cospe nas mãos e aí vai. A malta animava-o. 27, calmo, acenava com a palma da mão sinalizando que era precisa muita calma. Segue cauteloso amoreira acima...e o povo: ' o gajo cai, ai cai,cai.....! ' o melhor é agente afastar-se cassenão inda nos cai em cima.'
A pernada estreitava, 27 abanava mesmo no limite e eis que...para espanto de todos, Mnel Grande incluído, faz o pino na pernada e bate com os pés onde Mnel Grande tinha cortado o raminho. Com calma, endireitou-se , desceu até ponto mais seguro e: "Atão e agora, quem é que ganhou?hein?" E todos: ' Anda Mnel, paga e não bufas. Se quiseres um copinho tens que lho pedir por favor! ' e riam-se a bom rir.
Chegou 27 ao chão e são indizíveis os comentários.
Mné Grande praguejava, mas não teve remédio senão arrotar com os cinco litrinhos.
Diz o Traitoiras:" eu cuido que a minha guardou na gaveta umas plharancas de corates que sobraram do jantar de ontem. Vou por elas e de caminho a ver se arrebanho umas cõdeas de pão por mor de termos mataborrão pra tanto vinho." Encrencas empurrou-o logo: «despacha-te!»
27 nem parava dum lado pro outro.Todos lhe davam palmadas e ele:« porra! já chega! vandens mas é a malhar no cu da burra!
Chegou Traitoiras com os restos do jantar e dois couchos e foi um ar que deu aos cinco litros.
Aqui está o poder de uma mão cheia de pelharancas!

quarta-feira, janeiro 04, 2006

ACTA ANTECIPATIVA DA MORTE DO MARRANO

Às sete da manhã nevoenta
De 30 do mês do Natal
Saíram de casa, com pêlo na venta,
Os constituídos para dar cabo do animal.

A equipa é mais que distinta,
Moca, nosso Fernando, nosso Zé,
Karraio, e Changoto da quinta,
Gaducha, Chaves e um Sardones até.

Ali bem perto, às Poldras
Junta-se à trupe o Zé Caçador,
Grita: "Já cá levo as cordas",
E acelera forte o seu tractor.

Chegados ao local de abate,
Aguardente fraca, pouco adoçada,
Nozes e figos secos como contraste
Iniciam a valente almoçarada.

Apresentam-se as armas à porfia:
Fusis, navalhas, serrote e machado,
Pedras, maçarico e até um fio,
Mais a banca para o condenado.

Muda-se a farda, calça-se a bota,
Entra-se na furda, separa-se o tó,
Ata-se-lhe a pata, empurra-se prá porta
Cada um sua sentença, afaga-se com dó.

O animal já habituado ao aposento,
Recusa-se a percorrer o caminho...
E então que num momento
Se lhe aperta um arame ao focinho.

Com três a puxar e quatro a empurrar,
O malhado lá passa a porta do curral.
Os outros, todos a ver, acabam de ralhar
E acompanham os algozes ao tribunal.

Diz um:"passa-lhe a corda por baixo"
E outro:"vê se me tombas o animal"
"Cala o bico senão inda te racho
Pega-lhe no rabo que não te faz mal".

Ao fim de uma boa meia hora
(vergonha das vergonhas em matança)
Lá conseguem tombar a alimária.
Podia finalmente começar a dança!

"Vá lá!" diz o mestre, "todos ao mesmo tempo,
Um dois trê..."espera aí que me vai escapar"
Aguarda-se então um breve momento,
E, depois, então, foi só levantar.

Poisa-se o volume ao comprido na tábua,
Puxa-se a jeito, compôe-se a faceira...
Logo um traz um balde de água,
E o matador pega na matadeira.

E foi um "ai...", logo à primeira,
Enterrou a faca, tirou-a e ficou a olhar
O animal a grunhir, a ferida que fizera,
O sangue a correr em bica para o alguidar.

A colher de pau não parava no barro
Sempre a dar-lhe para não coalhar.
Metia-se a mão, sacava-se o tarro,
Comentava-se a facada sempre a segurar.

"Põe-te a pau que ele vai esticar"
Aconselhava o que pegava a orelha.
"Olha o esperto", diz o do traseiro a brincar,
"Vê lá se te foge e te chamo azelha."

"AtençãolAtenção! Vamos lá a preparar."
Clama o matador a ver a brincadeira!
"Não estive eu aqui a aprumar-me
E ficar envergonhado por uma asneira."

Ao fim de uns bons esticões
Lá se ficou o porco, sem bulir...
Limpa-se a barbela, dão-se uns apalpões!
Desatam-se as cordas! Começa-se a sorrir.

"Arre porra, ninguém quer mecha!"
Diz o que segurava a pata dianteira.
"Um homem tem mesmo que fazer queixa:
Não há um copo! Só querem brincadeira."

Ouve-se então alguém a vir,
Viram-se todos para o portão.
Era o Barrocas campeão a tossir
Que já trazia o cigarro na mão.

"Vá lá, chegou mesmo à hora.
Tínhamos deixado molhar os palitos,
Mas não temos que nos preocupar agora,
Já temos quem acenda o maçarico."

Sorriso largo, fumarada solta,
Calmamente se aproximou.
Com a mão a todos deu a volta,
E foi ele que em vedeta se tornou.

Iniciaram-se piadas de caserna,
Até que se ouve uma voz tonitroante:
"Isto aqui é alguma taberna?
Assim isto não vai p'ra diante."

"Tens razão" comentam os conjurados
"Vamos mas é ao que interessa
Daqui a pouco estamos gelados
Por nos pormos a olhar aquela peça."

Foi assim que o maçarico se acendeu
E se chegou o lume à ferida.
Na agulha uma guita se meteu
E pouco tardou, estava já cosida.

"Vamos lá mas é a pôr ordem nisto"
Ditou o Barrocas então chegado
"Mas haja cuidado por Cristo
Qu' algum inda pode ficar queimado."

"Bem falado, então isto é assim":
Vocifera alto nosso Fernando.
"Um aqui sempre atrás de mim
Que eu dou-lhe lume brando."

A chama do escaldante queimador
Sempre orientada no sentido sul
Implicava atenção ao calor
Pois até já o bocal estava azul!

Lá se ia chamuscando, primeiro atrás,
Logo à frente, depois a barriga,
Sempre um a dizer como se faz
E em latim se inicia uma cantiga:

Infelix animal es, suine ora mortue,
Ut augeas ventres omnium scholarium
Dolore maxima, duces saevi, impiique
Te damnant, etiamsi sis sordidum.

A música é depressa por todos adoptada
Sai um coro afinado, sem maestro.
Apesar de não perceberem nada, nada,
Entravam bem na melodia, mesmo a estro!

E o porco lá ia, com jeito, sendo queimado
Sempre atrás do lume ia o raspador.
Em breve ficou bem pronto dum lado,
Aquilo é que estava a ficar um primor.

"Eh! Malta! Está na hora de ser voltado."
Logo todos se apressam para lhe pegar
Primeiro de costas, o lastro breve assoprado,
Depois com jeito e arte foi só virar…

"Vá lá a ver quem sabe arranjar o focinho",
Aponta o Gaducha ao vê-lo ainda por fazer
E logo um se lhe atalha ao caminho:
"Isso já toda a gente sabe quem há-de ser".

"Ouve lá, ó meu basbaque de tanto saber,
Inda não tiraste as mãos das algibeiras
Sabendo que há muito por fazer
E pões-te a dar sentenças brejeiras?"

Uns riam, outros acenavam que sim senhor
Mas lá acabaram por concordar:
A cabeça pertencia ao matador.
E lá teve o desgraçado que se baixar.

"E o rabo! Quem faz o rabo a preceito?"
E viram-se todos para o Caçador
"Eu cá não tenho qualquer jeito,
Haja alguém que faça o favor."

É agora a altura das carchanolas,
Unhas para os que são ignorantes
Queimam-se bem pois parecem solas
E brinca-se com elas como dantes.

Aquele que as tira, finge que as aventa
Mas guarda-as, bem guardadinhas
E metê-las nos bolsos é o que tenta
Das pessoas que estão mais vizinhas.

Os que dão conta, empurram-no com força
E ele aconselha-lhes alguma calma.
Calado, salta para outro como uma corça
Senão não dá descanso à sua alma.

Dá a volta e no que estava mais distraído
Lá enfia, por fim, a sua encomenda
Afasta-se aliviado e descontraído
E atenção aos outros recomenda

Todos, sem à partida fazerem referência,
Vão sempre guardando a rectaguarda.
Não fiquem eles com a indecência
De as levarem consigo na farda.

Enquanto tudo isto se passava
O cerdo ia ficando como novo
Barbeado conforme a navalha passava
Já quase se podia mostrar ao povo.

Apaga-se o maçarico já desnecessário
Grita-se por água rápida e com fartura
Procuram-se pedras de natureza vária
Inicia-se a lavagem à bacorura.

Nosso Zé, com muita jeiteira
Segurava a mangueira numa mão
Na outra, regava com uma cafeteira
A medida que se fazia o raspão.

Trabalho, trabalho, tinha o matador
A limpar as rugas daquela tromba:
Escarafunchava com raiva e vigor,
Estoirava como se fora uma bomba.

Já bufava e as mãos se lhe engadanhavam
Quando repara que faltavam as orelhas.
"Uma esfregadela era o que precisavam
Os que aqui passaram, os azelhas."

E exclama: "quem me traz sal grosso
Para vos ensinar como se devem limpar
Estes abanos às vezes rijos como um osso"?
Prestes, Karraio, logo lho foi buscar.

E preciso agora fazer-lhe bem o cu
De maneira que não se fira a tripa.
Resta saber quem será o gabirú
Que a tal trabalho se dedica.

Vê-se um, disponível, a sacar da navalha.
Tal disponibilidade a todos espanta
E quando ia a iniciar aquele trabalho:
"Eh! pá!, olha que é preciso tirar a trampa."

"Mau..., ainda ninguém teve fome?"
Diz um que andava com a perna manca.
"Olhem que até à uma ninguém come!
E servirem-se já da morcela da banca!"

Logo em resposta ouve o que pedia
"Galinha que canta é a que põe ovo,
Já era assim que o meu avô me dizia,
Come-a tu e diz-me que tal é o provo."

"Vai mas é buscar um bom nagalho
Enfia-o aí até ao fundo da abertura
Torce e puxa para ti, ó meu bandalho,
O que conseguires sacar da ranhura."

"Tem tento nessa língua, ó depravado,
Senão ainda limpo a essa linda cara
Aquilo que vier a ser o resultado
Da sonda que ainda há pouco enterrara."

Tão amena conversa se ia travando
Era tão boa a disposição de toda a gente
Enquanto no traseiro se ia cortando
Que ninguém se lembrou da água quente.

"Se isto vai continuar assim, desta maneira,
Digo-vos que ponho os pés a caminho.
Vamos lá acabar com a brincadeira
E ver se alguém me traz um copo de vinho."

E continua, alterado o grande artista:
"Tu, ó Faz-Nada, acadeja-me água quente
E vê se deixas de te armar em fadista
E te portas de modo a seres gente

"Porque é que logo me viste a mim
Que estava aqui tão sossegadinho
Toma mas é um raminho de alecrim
Que te faz muito melhor que o vinho."

Valeu à circunstancia que o Caçador
Ali apareceu com aperitivo e garrafão.
Assim, lá se acalmou todo o vapor
Da zanga que estava a ruinar a sessão.

Já com o chambaril o Moca aparecia
E os nervos das traseiras se revelavam
Há já muito tempo que se não via:
Todos com o transporte se preocupavam.

Uns apareciam com sacas de serapilheira
Outros com varapaus como fueiros
Cada um defendia a sua maneira
Tudo se acalmou e lá foram ligeiros.

A roldana e a corda tinham sido aprontadas
À entrada da porta alguma dificuldade
Tardou -os na sua pressa danada
E tiveram que refrear as ganas da vontade.

Já dentro da loja debaixo da viga
Engata-se a corda, eleva-se o animal.
Um sobe ao banco, faz uma figa
Dá um nó de modo que não fique mal.

"Pronto, já está, podeis deixar o bicho"
Devagarinho lá o foram baixando
O gato sapou para o seu nicho
E o material preciso se ia preparando.

Surgem alguidares, travessas, pratos
E logo: "Então, mas afinal isto o que é?"
Mais me pareceis uns grandes ratos.
Haja alguém que vá buscar um café.

Abre-se o ventre agora escancarado
Com golpe ao centro pouco profundo
Não tardou que o cutelo bem afiado
Trouxesse o corte direito até ao fundo.

Volta ao cimo e, com os dedos em V,
Abre caminho ao bico da navalha
As tripas logo toda a gente as vê
E traz-se o tabuleiro que as apanha.

Agucei então umas sovinas de esteva
Para o porco poder ficar largo a secar
E disse. "Atenção, daqui ninguém o leva,
Sem a carne estar boa para se cortar."

Entretanto, o cheiro de um fígado a assar
No borralho, que ficara sempre aceso,
Anima o corpo, que já estava a ficar
Devido ao frio, um pouco teso.

Então, sem que ninguém o veja
Changoto inicia a sua faena culinária:
Já tinha limpo das tripas a molareja
e agora limpa as glândulas da alimária.

Num tacho já frigem dentes de alho
Em azeite fino da bela oliveira,
Juntos com louro e um famoso molho
Que é criação da sua alta craveira.

A chicha, cortada em nacos valentes
Entra logo com a pimentada caseira
E todos com a fome afiam já os dentes
A contar com a cheirosa petisqueira.

Boné na cabeça, avental a preceito
Atento ao fogo, à trempe e ao tacho
Vai deitando vinho, sempre com jeito
Não se agarre a comida com o fogacho.

Dá a provar o molho de vez em quando
E cada um apruma o seu paladar
Ajusta-se o sal, corrige-se o picante
Envolve-se o entulho, fica-se a esperar.

Sai fumegante o tacho com o petisco
Cada um pega a sua arma na mão
Estava já um prestes a morder o isco:
"Vê lá se reparas que tens aí um pão."

Célere recolheu o braço atrevido
Mas os compinchas não lhe perdoarão:
"Tu, ficas a saber que já estás cozido
Ficas encarregado de servir do garrafão."

Lamuriento, teve de aceitar o seu destino
Ele que tanto gostava de dar ao dente
Até que deixasse atestar bem o papinho
Tinha agora que comer atrás da gente.

Pouco tardou estava o barranhão aliviado
A rapaziada dirigia-se já para junto do sol,
Quando de repente se ouve um alto brado:
"Cada um lave o que sujou, enquanto está mole.

Muito a custo lá foram até junto da torneira
Esfregão, pano, água e, claro, detergente
Deixaram tudo a brilhar na cantareira
Ficou a dona de casa toda contente.

Faltava agora descer o defunto esticado
Alarga-se o nó, deita-se sobre a padiola
Leva-se até ao veículo para ser transportado
Até junto dos qu' aguardavam junto da Escola.

A viagem correu sem qualquer acidente
Já todos traziam um lavado fatinho.
Na presença de quase toda a gente
Eleva-se até ficar bem, com jeitinho.

Finalmente, de novo fica o cerdo exposto
Já a lenha seca ardia na metade do bidão
Pouco faltava pra qu’o que lá estava posto
Não tardaria, estava feito em rubro carvão.

Cada um para o talho então se dirigiu
Cortava onde podia, apetecia ou conseguia.
Azelhice tamanha em muitos então se viu
Mas nem por isso arrefeceu a alegria.