sábado, agosto 18, 2012

A NOSSA FALADURA - CLXXXIII - AF(E)NÉDO


Marcel Proust, em “Em busca do tempo perdido”, que, confesso, nunca li na totalidade, realiza um notável exercício de memória de um tempo que ele perdera mas que reconstrói admiravelmente: o da sua infância. Claro que mais notável ainda é a sua capacidade criativa de o descrever, mas também é enfadonho e até doentio que esse passado lhe seja tão presente. É que, admito: são poucas e difusas as minhas memórias de infância. Mesmo sem o desejar, devo ter concebido e feito correr um programa de selecção dessas memórias, tão exigente nos critérios que só deixou algumas. E, mesmo que assim não fosse, reconheço humildemente a minha incapacidade de as reconstruir como Proust o fez. Tenho muitas dificuldades em encontrar aquele tempo, ou porque está perdido ou porque a minha memória o arquivou num dos seus cantos mais recônditos.

Todavia, tudo indica que subsiste uma relação da memória com o passado. O changoto já qui o declarou solenemente: a memória não encorrancha. Involuntariamente, resgatamos acontecimentos da infância e revivêmo-los, reconstruídos, na vida adulta. Por um processo complexo, o nosso passado está permanentemente a revisitar-nos, sem o chamarmos, ressuscitado por um cheiro, por um sabor, por uma imagem, por um som…
Agora mesmo, eis o que a minha memória foi represtinar: o velho Nicas, meu vizinho, cuja imagem mais forte o coloca dentro de um enorme pio (em boa verdade nem era muito grande, mas era essa a perspectiva do gaiato de 5 anos), ceroulas brancas com listas pretas finas longitudinais, arregaçadas ao máximo mal tapando as nalgas, marchando compassadamente no meio das uvas esmagadas; de vez em quando, agarrava no rodo e revolvia vigorosamente toda aquela massa meio líquida meio sólida da cor do que havia de vir a ser: de vinho.  Eu apareço à porta da loja, curioso, e ele:

- Anda cá ó roupinha afnéda qu’ê t’ensino a nadar aqui”.

Para além desta situação, noutras, com contornos difusos, não recriáveis, a minha memória regista que o epíteto de “roupinha afnéda” era-me bastas vezes aplicado. À sua maneira, o velho Nicas alimentou o meu auto-conceito de javarino que a idade, naturalmente, corrigiu.

Por essa época, também, o mesmo javarino tinha o privilégio de acordar ao som de fado de Coimbra. Nas manhãs mais amenas do Verão, dia novo de 7 horas, sem qualquer acompanhamento de guitarra, só com a sua tonitruante voz, Mnéixquim Carrêras plantava-se ali no vértice do Batoco em frente à minha casa e debitava, qual Luíz Goes:

O sol anda lá no céu
Tão contente atrás da lua
Assim minh’alma anda
De castigo atrás da tua

Mnéixquim Carrêras era uma figura invulgar numa pequena aldeia do interior profundo. Tinha o 5º ano (antigo, equivalente ao actual 9º) o que naquele tempo fazia dele uma das pessoas mais letradas da aldeia, vantagem que ele soube rentabilizar: toda a vida ganhou a vida a dar explicações. Décadas antes do ensino recorrente, o Carrêras foi pioneiro na educação de adultos. Todos os “cavalgaduras” que o professor José “tanganho” Paula de Campos não conseguia fazer passar no exigente exame da 4ª classe, todos os pastores, latoeiros, sapateiros, albardeiros que foram obrigados a trocar a escola pela “arte”, todos eles iam pedir ao Mnéichquim Carrêras, que a troco de umas moedas, os compensasse da falta de oportunidade ditada pelas contingências das suas vidas. Disso vivia.

O seu método não era muito distinto do que era utilizado no escola regular, salvo, talvez, as reguadas. Nem a exigência era menor: em vez de “cavalgadura” ele não hesitava em mimosear de “martelão” todo aquele que demorava a distinguir os advérbios dos adjectivos. A sala de aula era austera: uma pequena assoalhada, paredes toscamente caiadas de branco, piso de madeira carcomida, despida de qualquer mobiliário ou outro adorno a não ser uma espécie de carteira de escola, de pé alto, adaptada propositadamente para que o aluno se mantivesse em pé, estrategicamente colocada ao lado da única janela por onde entrava a luz. Com voz forte, a mesma com que entoava as baladas coimbrãs, ele passeava-se ruidosamente nas suas impecáveis botas de sola feitas à medida pelo sapateiro Guerrilhas, 5 protectores metálicos em cada uma, por detrás do aprendiz tentando que ele aprendesse os rudimentos, para a época, da gramática, da aritmética, da geografia (que neste tempo incluíam as colónias ultramarinas), da história de Portugal.

- Repete atrás de mim, rapaz: os reis de Portugal da Primeira Dinastia foram D. Afonso Henriques, o Conquistador; D. Sancho I, o Povoador, D. Afonso II, o Gordo, D. Sancho II, o Capelo, D. Afonso III, o Bolonhês, D. Dinis, o Lavrador, D. Afondo IV, o Bravo, D. Pedro I, o Justiceiro, D. Fernando, o Formoso.

Se ele não repetia af(e)nédo à segunda, lá vinha:

- martelão! martelão! martelão!

E o tratamento não fazia grande distinção entre o mancebo de 16 e o homem de 40 anos. Muita gentinha aqui aprendeu a ler e a escrever, outra tanta aqui apreendeu conhecimentos básicos mas essenciais para posteriores actividades noutras latitudes, mais lucrativas e se calhar menos rudes do que o pastoreio e demais trabalhos da lavoura – o movimento emigratório estava em crescendo no início daqueles anos sessenta.

Aos mais adiantados, obrigava a saber na ponta da lingua:

- Os minerais classificam-se segundo a sua dureza, do menos para o mais duro: talco, gesso, calcite, fluorite, apatite, feldspato, quartzo, topázio, corindo e diamante.

O fado de Coimbra aprendeu-o ele sem nunca ter posto os pés na cidade do Mondego. Machado Soares, Fernando Rolim, Luíz Goes e mesmo José Afonso eram sofregamente bebidos através da rádio Altitude que ele sintonizava no velho aparelho blaupunkt, aos sábados à tarde.

E nas manhãs de Verão lá comparecia ele na esquina do Batoco entoando, af(e)nédo quanto baste:

Fui ao Mondego lavar
As penas das minhas mágoas
Minhas mágoas eram negras
Negras ficaram as águas

Para um roupinha af(e)néda de 5 anos, era uma inusitada forma de acordar. E um luxo!

quarta-feira, agosto 08, 2012

A NOSSA FALADURA - CLXXXII - ACONDUTER

Nada, nem ninguém como as coisas de aldeia e as gentes de aldeia! Não sei se deverei falar em "bons tempos" aqueles em que vivi e, sobretudo, convivi na aldeia. Foi lá que aprendi muito da escola da vida. Poucos me ensinaram tanto como o velho Comandante, aquele avô severo, rude, áspero, bruto, na verdadeira acepção da palavra, que se gabava de nunca ter posto as mãos em cima dos filhos! Pudera! batia-lhes em pêlo com a bomba de borracha do vinho ou com o cinto pelo lado da fivela, quando não com as cordas de sobrecarga ou mesmo vergôntea de gesta ou arrocho de aperto.
Tito Lívio dizia de Aníbal Barca que mal dormia, pouco se alimentava, era de resistência invulgar, sempre o último a deitar-e e o primeiro a levantar-se, capaz das maiores façanhas, simultaneamente conselheiro e admoestador, capaz do elogio ou de uma sentença de morte que ele próptio executava, vigilante ímpar, passando furtivamente pelos sentinelas, verificando se dormiam ou se se mantinham despertos. O que fosse apanhado a dormir nunca mais acordava. O velho Comandante timha muito a ver com este famoso general Cartaginês, o primeiro que foi a atravessar os Alpes, ínvios até então, como conta Salústio repetido por Lhomond, ele, o seu exército e os elefantes. Foi obra: ir de Sagunto (Barcelona) até Cannas e derrotar os Romanos em casa. O velho Comandante era igual: por tal severidade a avó Isabel se findou cedo. Poucos aguentavam aquele ritmo: tanto trabalhava à canha como à direita, quer a cavar, a ceifar, a gadanhar a cortar, a podar,... Era um ambidextro, na verdadeira acepção. Sempre o primeiro a chegar ao trabalho e, se se tratava de trabalho onde pudesse adiantar, como na apanha da azeitona, por exemplo, era certo e sabido que quando os assalariados chegavam já tinham tudo montado: fato estendido, escada encostada, lume aceso e ele já no cimo da muda a gritar: CHOVA!CHOVA!. Era capaz de trabalhar de sol a sol, ir de noite a Espanha, no tempo da guerra civil, entregar vacas e estar na linha da frente para pegar ao trabalho logo cedo. Um fenómeno!
Cito, um tanto de cor, o retrato de Lívio que, sendo romano, nunca será muito probo relativamente a um cartaginês :" princeps proelium ibat, ultimus, conserto proelio, excedebat. Inhumana cruidelitas, perfidia plus quam punica, nihil veri, nihil sancti, nullum deum metus, nulla religio...".
Parcimonioso, mais que medieval, bastava-lhe um figo seco para aconduter uma refeição...
Fazendo aqui uma espécie de anacoluto convém esclarecer que não é raro, no lingujar popular a troca de sons, especialmente, no caso vertente, a troca do som E pelo A: em vez de assobiar dizem assobier, por mijar pronunciam mijer, por molhar preferem molher (as vogais finais devem ser abertas)... e por aí fora.
O nosso linguajar de hoje é alvo desta permuta de fonemas: em vez de a condutar, sai aconduter. ( leia-se ACONDUTÉR).
Que me lembre, apenas duas matanças aquele homem fez para casa. Não se pense que os porcos eram valentes; ao contrário... tal como o dono, eram magros, de cabelo ericedo (=eriçado), e de pequeno porte. Se nas outras matanças a refeição era uma festa, ali apenas se comia a meloreja, um prato de sopa de couve, mal aconduteda, fígado e soventre, bebia-se vinho por copos que mais pareciam dedais, lá aparecia uma cunca de queijo e "ala milhano" que se faz tarde!.
Raramente oferecia um copo a alguém e, se fosse o caso, nunca oferecia nada para aconduter.
 De facto, estranho que apenas conhecesse aquela casa iria com uma apreciação errada do que é uma típica casa de aldeia: junto do pipo se não havia, depressa aparecia um pão e o respectivo conduto, para acompanhar o copo: azeitonas, queijo, presunto, uns fritos de beringela, se fosse o tempo, ou, que mais não fosse, uma tora de toucinho salgado para fazer boca. Eram assim as casas de aldeia: sempre que se bebia tinha que se comer. Nunca se comia pão seco, sempre aparecia algo para aconduter. É esta a escola que eu pratico: alguém que me visite tem sempre pão e algo para aconduter. No velho Comandante não era assim.
Eu, enquanto neto, beneficiava de uma excepção: lá vinha o figo deco ou, raramente, um naco de pão com um queijo seco embrulhado em folha de botelha e guardado no arcaz da semente, "por mor de ficar macio".
 Agora que já vos matei a bicheza e vos trouxe um naco de prosa para aconduter, prometo voltar mais cedo para não vos desavezar...
XI GRANNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDDEEEEEEE


segunda-feira, julho 09, 2012

DE PASCENTE FILHO DE CAPRINO


AO CHEGAR

IR CUMPRIMENTAR
    E COM VÉNIA REVERENCIAR
           O GRANDE CHEFE NA ARTE DE BEM COZINHAR
                                                     “LOBO CERVAL” CUJA NOMEADA HÁ-DE CHEGAR
          MUITO PARA ALÉM DA TERRA E DO MAR.
  DE TUDO PROVAR
     COM PRAZER DEGUSTAR
   DEPOIS OPINAR
COM TODOS CONVERSAR
                 A BOA COMPANHIA SABOREAR
                        E COM RESPEITO AGUARDAR
                                                                        A ORDEM DE SENTAR.

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ODE PARA-HORACIANA

OH  ENCANTADORA QUINTA DO LÍRIO!
MAIS FAMOSA  DO QUE A FONTE DE BANDÚSIA
DO  QUE AS PIRÂMIDES EGÍPCIAS
E DO QUE AS PROFECIAS CALDAICAS.
É A TI QUE VÃO DAR
COMENSAIS MAIS QUE DIGNOS
DO REPASTO QUE  A SEGUIR APRESENTO:

EM VÃO A NATUREZA INCHOU A FRONTE TÚRGIDA
DO PASCENTE FILHO DE CAPRINO
PREPARANDO-O PARA AS LUTAS PELA PROGÉNIE
COM CHIFRES DE DUREZA CONSABIDA
EM VÃO!
SEU SANGUE TINGE DE PÚRPURA
GRÃOS DE ALVO CEREAL
E GRAVETO DE LOURO, TORO DE OLIVA
PAU DE AZINHO, APARAS DE MEDRONHO
O TOSTARÃO ATÉ FICAR CREME
ACOLITADO POR TUBÉRCULO RECENTE
BOLBO CHOROSO E DENTE DE CABEÇA ALHÍFERA
NACOS DE VENTRE PORCINO,AQUOSO TOMATINO
TUDO REGADO COM SEIVA DE BIFE DE CAROÇO
REFULGENTE NA SUA DOURADA FLUIDEZ.

À SUA FRENTE MARCHARÃO IGUARIAS OUTRAS
QUE PREPARARÃO A INOLVIDÁVEL SAPIDEZ.
LÍQUIDOS BÁQUICOS, UNGEM  O SACO VENTRAL
ENQUANTO PARA FAZER COMPANHIA
PELA ORDEM QUE SE IMPÕE
SURGIRÃO EM SUPERFÍCIE EUCLIDEANA:

AURICULAR CERDINO, A VERDE ENSALSADO
EM AROMA LEVEMENTE ACETINADO
E PARTÍCULAS DE ANEL BOLBADO
TRASEIRO CURTIDO FATIADO
CURTUME ENTRIPADO
PRODUTO LÁCTEO FERMENTADO
ACHINCHADO,DEPOIS CURADO
OLIVA  DE SABOR LIMONADO
SECO CICLISTA FRIO E PARADO
BEM TEMPERADO , ENSALSADO,
COENTRADO E ATUNADO

JÁ SOBRE A MESA DO REPASTO
FUMEGANTE E BASTO
VIRÁ RECIPIENTE VASTO
COM CALDO NABIÇASTO
À MODA DAS VELHAS CASAS DE PASTO

SEMPRE PRESENTE ANDARÁ O CASQUEIRO
FEITO POR HÁBIL FORNEIRO
FATIADO POR ARTISTA PRAZENTEIRO
ESPALHADO PELO ESPAÇO INTEIRO

A COR VARIADA DE BELEZA CATIVANTE
E DE SABOR ESTONTEANTE
CABE Á PERDIZ ERRANTE
ESCONDIDA POR INSTANTE
EM RÚCULA VERDEJANTE.
 E TOMATINO FULGURANTE
NÃO ANDARÁ DISTANTE.
 Changoto, 06/07/2012

 coitela aí!
 inté reluzia
 o changoto e a sua circunstância
  ó êgua




quinta-feira, junho 07, 2012

A NOSSA FALADURA - CLXXXI - BIMBIGO

Porque ambos são mamíferos e pertencem à mesma espécie, homem e mulher apenas se parecem neste ponto: no bimbigo. Em tudo o mais são diferentes, e ainda bem. Não é por acaso que a natureza exige a comparticipação dos dois para uma reprodução considerada natural.
A grande causa é que um e outro dos géneros produzem hormonas diferentes. São estas hormonas que são os grandes mensageiros e a sua importância é tal que o cérebro, que em princípio as coordena, está intrinsecamente dependente delas.
Ludwig Feuerbach e independentemente de concordarmos ou não com ele - não é aqui o local para essa controvérsia  - dizia que " o ser humano não pensa; quem pensa é o fósforo".
A divisão dicotómica vinda já dos pitagóricos e depois reforçada por Platão, dogmatizada pelo cristianismo, defendida por Descartes, polemizada em Kant, levada ao extremo com Hegel ... , a divisão em corpo e alma, matéria e espírito, mortal e imortal, temporal e eterno, finito e infinito, sei lá..., que de alguma forma Kierkggaard quis conjugar com o hiato ou intervalo de uma humanização da divindade na figura de Cristo, essa divisão, não faz sentido em Feuerbach. Aqui só o material faz sentido.
Em última análise, podemos dizer que o ser humano é complexo e multidimensional e já Morin em "O Paradigma Perdido" o explicava.
Face a tudo o que se vai sabendo, uma visão minimamente razoável do ser humano tem que considerar, no mínimo, uma série de dimensões que podemos simplificar num palavrão: o ser humano é um ser BIOANATOMOFISIOPSICOSOCIOCULTOECORELIGIOSO,  isto é, nasce cresce, reproduz-se e morre, aparenta uma figura que nos permite distingui-lo de qualquer outro ser vivo, é constituído por órgãos com função específica, mormente, dotado de um córtex cerebral único, reage a emoções, vive em sociedade no seio de um meio ambiente de que ele faz parte integrante, como bem escreve Karel Kosic, e é o único que criou um Ser transcendente a quem recorre e adora...E mesmo assim não o esgotamos. Alexis Carrel disse bem quando escreveu que o Homem (é) Esse Desconhecido.
Sem presunção de qualquer espécie, podemos reduzir este elemento da natureza a três características fundamentais: o ser humano é FÍSICO, QUÍMICO E ELÉCTRICO. Cá volta o nosso Feuerbach !
Físico, porque tem um organismo, ritmo cardíaco, metabolismo complicdo, temperatura organísmica,..., químico, porque mais de dois terços da sua composição é água e depois é cálcio, ferro, potássio. sódio, magnésio, fósforo, pois claro,... e eléctrico porque a sua relação com o mundo e consigo mesmos depende de influxos nervosos que mais não são que circuitos eléctricos de vai-vem com carga positiva e negativa nas células nervosas que se polarizam e descarregam em intervalos de um cinquenta avos de segundo...Quem regula isto tudo? a hipófise, pois, e o hipotálamo, e a amígdala e o simpático e o parassimpático, e... as hormonas.
Se é verdade que não há um homem cem por cento masculino, nem uma mulher que não tenha traços de masculinidade, - afinal o pai determinou o género sexual com o gâmeta veiculado no espermatzóide vitorioso na corrida para a fecundação e a mãe, salvo casos especiais, gerou-o durante trinta e seis semanas - . Cada um de nós é assim de dois e temos marcas dos dois, embora sejamos diferentes de cada um deles.
Ora o que  distingue um ELE de uma ELA são as hormonas que cada um produz: ele testosterona, ela estrogénios e progesterona. As outras não vêm aqui ao caso, porque são estas que fazem com que cada um deles, em regra, nasça com um sexo definido, que permite à parteira dizer «é menina» ou «é menino» e isso faça toda a diferença.
A sociedade tem normativos comportamentais para o menino e para a menina e a natureza, ela própria, atribuiu-lhes missões diferentes.Por isso é que só são  iguais no bimbigo!
Não é hoje dia de nos determos nesses normativos, mas sempre vos digo que todos temos tendência para só olharmos para o nosso bimbigo e mesmo os gémeos já lutam no ventre materno para cada um ocupar o melhor lugar, empurrando o outro  para o pior lugar no meio intra uterino.
Somos todos muito vaidosos e só narramos peripécias em que nós e o nosso bimbigo saiam por cima.
E pronto... Deixo-vos a olhar para o vosso umbigo e porventura  a desdizer do meu .
XXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIGGGGGGRRRRRRAAAAAANNNNNDDDDDEEEEEEEEEEE

terça-feira, maio 15, 2012

A NOSSA FALADURA - CLXXX - BIQUEBORNATO

Se havia cozinheira de boda afamada em toda a Raia, a Ti Maria Rainha levava a palma. Mulher cheia, de barruma na testa, braços mais que compridos, mãos lhanas e enormes, sapato para aí nº 40, tudo para mais, voz tonitroante, andar calmo, mas constante. Nunca se cansava e era capaz de trabalhar três dias e três noites sem ir à cama. Não sabia ler nem escrever e nunca precisou de contar ou pesar o que quer que fosse de ingrediente. Dizia que os ovos não eram todos iguais e que a proporção nunca era a mesma, porque era diferente se fosse de compra ou fosse de capoeira, se era de galinha pedrez ou castanha ou preta, pelada ou não, com galo ou solteira, sei lá! Muitas vezes lhe pedi receitas de iguarias ímpares e a resposta era sempre a mesma: " tu num vês que eu faço tudo a olho!?. E era mesmo. Até a têmpera do forno era medida metendo o braço na porta e dando indicações: "mete lenha de azinho", "mete esteva", "tira borralho", "passa o vassouro". Ela lá sabia. O facto é que caçola, bolo ou assadura saíam sempre na perfeição. Nem relógio usava, mas ela lá sabia quando virar, pôr à porta, afundar, tapar borralho, tudo.
Não usava artefactos de cozinha, salvo faca quando necessária.
Onde mais eu gostava de a ver trabalhar era na confecção dos bolos: sentava num tropesso de cortiça diante de um alguidar enorme, arremangava as mangas, lavava as mãos e queria uma pessoa a seu mando ali perto e todos os ingredientes que ela colocava à mão.
« Escarcha praqui ovos, bota mais, bota, bota», e o braço tocava a mão que ia batendo os ovos; quando via que já chegavam: bonda!, bota agora farinha, bota, bota, bonda! Agora bota açucre, bota, bota, bota, bonda! O braço esse andava sempre num vai-vem semelhante aos dos alcatruzes de uma nora ... De vez em quando os dedos procuravam algum cogulho, esborrachava e voltava ao mesmo movimento. «Vai-me por um cochito de biquebornato e desmancha-mo aí num chá de cidreira, mexe-te!» E a mesma lenga- lenga: "bota, bota, bota, bonda!".
Com a mão livre metia um dedo na massa, provava e logo: bota mai açucre, mai um pacote de farinha  e traz-me agurdente: bota, bota, bonda! Sempre assim foi, e ainda nunca provei nem bolos de leite, nem esquecidos, nem borrachões, nem biscoitos, nem arroz doce, nem bolo de noz ou amêndoa, pão de ló ou chocolate como aquele braço e mão faziam...
Fazia panelões de caldo, tudo a olho e no pino do Verão, quando as couves têm menos viço e são ásperas, lá vinha ela com o biquinho da faca transportando o indispensável biquebornato, as couves ganhavam um verde intenso e ficavam macias que era um regalo.
As bodas eram refeições monumentais: as famílias dele e dela começavam separadas e por volta das 10 lá se começava o enchimento com pastéís de toda a ordem, panados, bolos secos, branco e tinto com fartura e sumos para a canalha e para as mulheres. Ele chegava primeiro à porta da igreja e esperava que ela aparecesse. Só aqui é que ele podia ver o vestido dela. O pai entregava-a à madrinha e lá subiam a coxia e ficavam lado a lado. Recebiam-se, o oficiante dava as bençãos e saíam já casados. O almoço dos noivos era na casa dela e o jantar na casa dele. Os convidados duma e do outro iam para espaços separados. Só muito mais tarde é que se começaram a fundir os adjuntos.
As mesas já estavam compostas com mais bolos e com os frios assados avícolas: galos e perus.
Havia sempre duas sopas, uma das quais invariavelmente era canja e a outra variava entre o grão com massa e couve grossa, caldo verde, feijão grande com nabo. O prato de peixe era na maioria da vezes, bacalhau à Brás e depois vinham as carnes: arroz de sarrabulho, coelho com esparregado, galo de cabidela, borrego ou cabra guizados, carne de caçola, bifes de porco com batata frita, muita alface, e ao fim um número interminável de sobremesas, desde bolos a pudins e até, nas bodas mais finas, gelado que mais parecia um creme.
Havia gente que comia o prato cheio de todas as variedades. Duma vez vi comer catorze pratos diferentes a um Labouxa.
A situação mais aberrante, no entanto, aconteceu com o Balecas que me diz: « Se não fosse cá por coisas agarrava-me a este galo e vindimava-o. ! » E vindimou. Comeu o galo inteirinho com duas travessas de esparregado.
Durante a tarde havia bailarico, tá claro e à noite tornava-se a encher a blusa. Havia gente cujo estômago não devia ter fundo, tal a quantidade que ingeriam.
Os noivos na manhã seguinte tinham direito a pequeno almoço servido com todos os requintes.
Não raras vezes, ele pedia um pouco de biquebornato por mor da azia!
XXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIGGGGGGGGGGGRRRRRRRAAAAAAAANNNNNNNNNDDEEE

quarta-feira, abril 25, 2012

terça-feira, abril 24, 2012

A NOSSA FALADURA - CLXXIX - TARRABA ou TARRÁBIA

É por demais consabido que o tempo das matanças era e ainda é, sobretudo se se pretende fazer enchido, tempo frio, seguindo o velho aforismo: «ande o frio por onde andar/No Natal cá há-de chegar.» São muitas as razões explicativas para esta tradição, não sendo a menor a ausência de moscas .
Um porco, tratado a vianda, águas sujas, pouco farelo resultante de peneira, baldregas (beldroegas, sramagos (saramagos), bagaço de azeitona, figos, frutos da horta e, às vezes, restos de algum vizinho que não criava, um porco destes, demorava um ano a criar. Um ano ou mais! Por isso a carne tinha outro sabor...
Ora, os recos, às sete semanas, contas redondas, eram capados. Os criadores de pardeiras (porcas parideiras) chegavam a dita ao barraco (varrasco) em pleno Verão, por mor de terem os bácoros pelos fins de Setembro (S. Miguel) , princípios de Outubro, para os poderem vender ao fim das tais sete semanas, capados e sarados, pois nessa altura valiam mais umas notas. Convém assinalar, para os menos batidos nestas andanças a gestação de uma pardeira : "três meses, três semanas, três dias, três horas e bácoros fora". Basta fazer as contas e somar as já referidas sete semanas, antes das quais nenhum porco era vendido porque não teria competência para se criar sozinho, com as parcas viendas (viandas) e a friagem de furdas cheias de fetos verdes e frios como o diabo.
Não admira portanto que, por estas alturas, os capadores andassem de terra em terra com o seu pífaro cabeça de cavalo e chamassem a atenção com aquele toque característico.
Como nos enxertadores, também os capadores tinham clientela em função do êxito que lhes era reconhecido. Na aldeia xêndrica, o mais afamado vinha da Zebreira, montado na sua Zundapp cinzenta de três velocidades: uma bomba! Invariavelmente parava no batôco e era aí que ao colo, em angarelas, dentro de cestos, em carrinhos de mão, sei lá, os pretendentes à capadela vinham chegando. De lanceta na mão, deitava o reco no chão, e enquanto um segurava as patas ele punha o joelho no cachaço do reco e num instante lá se iam as potencialidades de maternidade ou paternidade: água desfeita em criolina servia de desinfectante e "venha outro".
Os conselhos era repetidos: «faça-lhe uma viandinha quente, com batatas cozidas e esmagadas, umas tarrábias bem migadinhas e tempere-lhe tudo com farelo e bote-lhe um pouco de azeite do escoreiro do ano passado e farelo. Tamém lhe pode cozer umas botelhinhas, mas não lhe deite tomate, nem bagaço,enquanto não estiver bem sarado, por mor da borreira».
Era sempre aos Domingos, depois de missa, que estas cenas aconteciam, que durante a semana, era preciso ganhar a jorna ou tratar do campo.
Não deixa de ser espantoso constatar que, trabalhando de sol a sol, fazendo tudo à mão, a bem dizer sem qualquer maquinaria nem transportes para se chegar mais depressa, não deixa de ser espantoso, dizia, que os campos estivessem todos cultivados, a poder de jeiras de ganhão, de arado de burrito, ou à força da enxada, quando não de picareta. Não havia esteva, codeço, gesta (giesta) , pinhal com caruma, nada! Tudo era rapado e mulher que quisesse cozer em forno privado tinha que ir por uns gravatos para lá da serra da Marvana ou da Raposa, já a dar vistas para terras de Espanha. Agora, com tanto tractor, tanto herbicida, tanto motocultivador ... está tudo pejado de vegetação espontânea e para se apanhar uma saca de pinhas, basta andar uns metros para fora da aldeia, até ao primeiro pinhal...
No tempo em que o tempo corria devagar, havia tempo para tudo, até para ter um rancho de filhos, agora, com artefacto facilitador, nunca há tempo para nada.O resultado é o que se vê: incêndios por toda a parte e em todo o ano.
Neste altura do ano, os campos estavam pejados de gente a alinhar as leiras para as batatas, o feijão de seco, os tomates, as cebolas, os pimentos, as alfaces, as botelhas, as tarrabas..que os grãos, esses já foram semeados em Fevereiro ; as cabritas, presas a uma estaca, iam sendo mudadas ... até ficarem fartas.
Faz-me lembrar o grande Vergílio: non, me pascente, capellae meae, carpetis salicem viridem aut cytisum amarum ... ( Não mais, cabrinhas queridas, enquanto eu for o vosso pastor, comereis do verde salgueiro ou rapareis as pontas do codeço amargoso...). A citaçaõ foi de cor, mas a mensagem era esta.
Neste tempo em que o virtual e o real se tocam, em que as metafísicas ( o METÁ TA PHYSICA) já não são os trancendentes, mas os electrões, em que a distância desapareceu e tudo se reduz ao instante, neste tempo, afinal já não há tempo! Ou somos nós que não temos tempo?
Haviamos de ter vivido no tempo em que os recos demoravam uma ano a criar e as tarrábias eram um dos seus alimentos preferidos. Aí já teríamos tempo!
Como dizia o velho Comandante do Inferno: AH! Tempo!
XXXXIIIIIIIIIIIIIIIGGGGGGGGRRAAANDE

sexta-feira, abril 13, 2012

A NOSSA FALADURA - CLXXVIII - BABANCA

« És  mesmo um abre-nó, um cagarela, fazem-te o ninho atrás da orelha, comem-te as papas na cabeça, e tu, meu babanca, aguentas tudo. Um homem quere-se com génio! Eu até cagava um pé todo se fizessem assim mangação de mim! podes crer!».
Esta pedagógica advertência travava-se entre Zé Estanqueiro e seu filho, também ele Zé, candidato  e depois efectivo soldado da GNR.
Os Estanqueiros, embora tivessem casa na aldeia, viviam a maior parte do ano para os lados do Carregal, paredes meias com a ribeira das Taliscas. Vinham ao povo apenas aos Domingos e era ver o velho Estanqueiro, garboso, montado na sua mula esgueira, de albarda bem bordada e estribos laterais, bota com esporas reluzentes, fato de surrobeco, colete justo, relógio Cortebert, atacado por corrente de prata no bolso pequeno, jaqueta à meia haste, chapéu de cartola : um príncipe dos lavradores.
O filho, esse, deslocava-se noutra montada, uma bicicleta pasteleira, sempre com os guarda lamas por mor dos charcos que tinha que atravessar evitando assim os salpicos resultantes do acelerar dos pedais.Vinha à escola com a bolsa a tiracolo, onde cabiam o livro único, o caderno das cópias e das contas, a gramática do Zé Maria Relvas, a História do Tomás Barros, e, claro, a pedra e o ponteiro.
A mãe fazia um enchido de paladar único e não foram poucas as vezes que eu trocava um chocolate de cinco tostões da Regina por uma tora daquele chouriço cujo unto escorria pelos dedos e que eu lambia sorvendo os dedos, a ponto de não ser preciso lavar nada. Era um rapaz espadaúdo, bota número 45, alto para idade, tanto mais que as calças não tapavam as botas, o que o fazia parecer ainda mais alto. Moreno quanto baste, cabelo farto e forte, emaçarocado por falta de lavagem conveniente, mãos enormes e unhas que pareciam sachos.
Nunca o vi sem dinheiro e era com ele que, muitas vezes, comprava a resolução dos problemas que o professor mandava para casa e que o Estanqueiro se via aflito para deslindar. Ainda ganhei uns trocos.
Um dia o professor topou o jogo, levámos os dois reguadas que chegassem, eu papei um raspanete e o Estanqueiro levou o recado para o pai ir à escola a falar com o senhor professor. Queria saber de onde lhe vinha o dinheiro, se o tinha tirado do lenço das mãos da mãe ou da boieira do pai ou se lho tinham dado. À cautela foi-lhe confiscado.
O velho Estanqueiro lá foi e os três esclareceram ali o assunto, o dinheiro foi entregue ao pai e é aí que sai aquele diálogo tão edificante com que comecei a crónica de hoje. Ouviram-se dois estalos e o Estanqueiro lá volta para a sala, mais encarnado que tomate coração de boi, envergonhado e a vociferar baixinho. Um quadro digno de Van Gogh!
Não há dúvida de que são as emoções que nos comandam e determinam a nossas reacções.
Há mesmo alguns autores que defendem que nós temos mais do que uma personalidade. Talvez seja por isso que não é pacífico defender se os diferentes Pessoas são heterónimos, ortónimos ou até pseudónimos. Se bem que não venha aqui ao caso tratar esta temática em profundidade, não deixa de ser relevante que, em regra, quase toda a gente afirma que encontra diferenças entre o que é e o que gostava de ser. Há sempre ícones que são directrizes e cuja imitação se torna para o ser humano um desiderato sempre incumprido mas sempre referencial: ser inocente como uma criança, ser puro como Cristo, ser futebolista como Eusébio, ser cantor como Springsteen, ser engatatão como Casanova, ser inteligente como Einstein, ser revolucionário como Mandela ou Gandhi, sei lá... ser como o ídolo. Sempre vos digo que a palavra "IDOLO"  vem do grego e significa na sua origem, EIDOLON -  aquele desvelo que Heidegger sempre propunha para entendermos o que as palavras querem dizer,- significa, dizia, sombra, imagem, parecença. Não está longe, se repararmos bem, de uma outra, EIDOS cujo significado não é outro senão IDEIA. As ideias são assim, algo que ainda não existe materialmente mas cuja realidade é indiscutível, pois é em função dos nossos IDEAIS que pautamos grande parte da nossa vida. Desde cedo se defendeu que o ser humano é um insatisfeito e que sempre pugnou por se transcender a si mesmo num incontido desejo de ir mais além. Foi este apego à descoberta, à novidade, à ruptura com o estabelecido que fez andar a humanidade e nos possibilita um progresso cada vez mais acelerado, a ponto de o presente passar num ápice a pré história. Há sempre um diferencial entre o que somos e o que gostaríamos de ser ou ter sido, entre o que temos e o que gostávamos de ter. Por isso labutamos na vida, projectando sempre, antecipando o futuro, querendo mais do que o que podemos.
Deixamo-nos continuamente ofuscar, deslumbrar , extasiar com os nossos almejos que não reparamos na realidade à nossa frente e, por isso, perdemos inúmeras oportunidades de sermos muito mais do que somos porque queremos demais. Somos mesmo uns babancas.Tão espertos queremos ser e tão pavões nos avaliamos que deixamos que nos comam as papas na cabeça e nos façam o ninho atrás da orelha, só porque, distraídos com o enorme, esquecemos de reparar no pequeno pormenor que faria toda a diferença. É o absurdo humano.
Que me lembre, não foram muitos os movimentos de massas na aldeia xêndrica: a tomada de assalto das escolas primárias devolutas, as"guerras para decidir da manutenção da fonte na Lameira, do atascamento do Poço Novo, do estabelecimento do horário de trabalho e da jorna para os trabalhadores agrários, a defesa da igualdade de salário entre homens e mulheres nos trabalhos agrícolas e pouco mais. Fiz parte de algumas destas movimentações e contribuí para muitas das conquista de então. Adiante.
Foi depois de uma dessas acções colectivas, chamadas de movimentos de massas, que se chega a mim o Estanqueiro, nessa altura já GNR em Medelim e me pergunta: "Sabes qual é o mais belo movimento feminino, oh rapa a unha?» E eu: "É o movimento pela emancipação da mulher!" e o Estanqueiro: "O mais belo movimento feminino é o da anca! És mesmo um babanca!"
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sábado, abril 07, 2012

ALVÍSSARAS



Não sei se também foi lá que a Brigada recolheu estas ALVÍSSARAS, mas foi em Aldeia de João Pires que eu as ouvi. À semelhança de muitas outras terras por esse país fora, a terra dos cucos é rica, provavelmente a mais abastada aqui à volta da Baságueda, nas tradições quaresmais e pascais, algumas delas com características únicas, como a ladainha dos homens (todas as sextas feiras da quaresma) e a ladainha das mulheres (apenas na quinta feira santa).

No sábado de aleluia, ALVÍSSARAS.

terça-feira, março 13, 2012

A NOSSA FALADURA - CLXXVII - BURRANCANA

Se há animal em que a performance não condiz com o nome, sem dúvida, esse é o burro. Já vos trouxe aqui alguns dos mais famosos asininos da família xêndrica. Perdoareis, todavia, que "ressuscite" alguns - ou não estivéssemos nós perto da festa do anho pascal - !
Começo pela famosa burra do velho Freitas a quem só  faltava falar, pois, garantia ele, se fosse à escola e fosse dotada de mãos, escreveria como nenhum estudante; depois, o ultra burro do Zé Luís Barata, de nome o ESTUDANTE a quem não era preciso guiar na lavra, aguilhão para se acostar fosse ao tiro do carro em que fazia parelha com uma vitela turina - a BONECA -, fosse aos varais da carroça, fosse à tracção do arado ou charrua... Nunca precisava de guia e bastava que alguém estivesse na ponta da torna e lhe mudasse a aiveca que ele se encarregava de trazer o rego sempre a direito até à outra extrema; a um assobio parava, a dois arrancava, sempre em marha certa, sem esticões; a ti Lurdes só lhe dizia: ENCOSTA!  e ele ajustava ao baturel onde ela estava, bastando que se deixasse cair para cima da albarda para ficar montada e guiava-o sem esforço apenas com pequenos toques de rédea; não comia fora do pasto e nunca roeu nada para além dos cômoros das propriedades de Zé Luís; sabia de cor os caminhos  dos terrenos, bastando, tão só, que o "enregueirassem" como dizia Zé Luís que, muitas vezes, quer com a bácora no corpo, quer de noite e ele se dormisse, sempre o conduzia ao destino sem se enganar; manso como a terra, era o que se podia chamar um burrancana! Mas, havia mais: o burro inteiro da Ti Conceição Pires do João Rela, pequeno e verguio, com uma pujança de alto lá com o chouriço: cobria tudo quanto fosse burra saída! A este propósito perguntou-me um dia aquele que alguns chamavam de burrancana  -João Feijão - : "Sabes quando é que uma burra anda saída? " E eu « Não!» E vai o Feijão: " Olha que o burro sabe! "
A minha avó materna tinha uma burra que era qualquer coisa de invulgar: ia de aldeia ao Sabugal por montes e vales a passar ali ao Salgueirinho, pela serra da Malcata e a velhota ia atrás arreatada ao atafal da albarda e dormia a andar sempre ao ritmo da burra que a levava, a ela e aos figos secos, às barras de sabão, às dúzias de ovos e a uns quilos de toucinho februdo até ao mercado! um espanto!Conhecia-me na perfeição e fazia o que eu lhe ordenasse. Também ninguém a tratava como eu que a desaguava sempre com umas águas de farelo que ela sorvia até à última gota.
Enfim... paremos com a enumeração explicativa, mas muitos mais podiam vir aqui à liça,: o calmeirão do Alberto Rogante, a pachorrenta do Jaime Pexogo, o esquivo do Calça Defuntos, sei lá! tantos!
Bem... do que não restam dúvidas é que o mais burro de todos os animais somos nós mesmos: os seres humanos. Ufanamo-nos de ser o Rei dos animais, de estarmos no topo da pirâmide hierárquica, mas basta ver  as  burrices que vamos cometendo. Deixo-vos a mor delas todas: é muito mais barato um milénio de paz do que um dia de guerra! E que fazemos nós?! andamos sempre aos tiros uns aos outros. Não que fale apenas das guerras inter ou intra povos, não!  É o marido e a mulher, o aluno e o professor, estes, uns com os outros, aqueles, idem, o peão contra o condutor e este contra todos num buzinar desenfreado, até aqueles que deviam dar o exemplo, os que pregam o bem contra o mal, vestem-se de fundamentalismos inqualificáveis e em NOME DE DEUS autorizam-se a tudo! Isto sim que é burrice!
Não é possível, menos ainda no âmbito do BASA esgotar as definições que ao longo dos tempos foram sendo dadas de HOMEM! A mais clássica e quiçá mais expandida é a de Aristóteles: o homem é um animal racional! Já antes Platão tinha dito que era um bípede sem plumas e apanhou com o cínico Diógenes que lhe apresentou uma galinha depenada e gritou: eis o bípede sem plumas! - o homem! Mais contemporaneamente  Roland Barthes acentua a mitomania do homem, como já antes a história o tinha definido como faber, erectus, sapiens, ou Goldeman corroborado por Damásio destruindo o dualismo antropológico Pitagórico/ Platónico e depois cristão e mais ainda cartesiano, quando se detêm: o homem é um ser eminentemente emocional!
Daí a sua falibilidade: reage ao instante!  É mesmo burro! Sem ofensa para os referidos!
Aqueles que mais eco fizeram dos chamados impulsos vitais, Nietzsche primeiro e depois Freud, foram proscritos, escorraçados, castrados, expulsos, dados como loucos... A verdade às vezes é dura de ouvir!
Só que eles não foram burrancanas: ousaram propagar aos sete ventos que o que nos rege são os mais primários impulsos, pulsões, forças primárias - alguns chamam-lhes mesmo instintos! -  e que o nosso prazer e a nossa salvação não está num sofrer neste mundo para alcançarmos a beatitude num outro mundo prometido por aqueles que sempre tiveram o mandarinto do poder e habilmente foram moldando as mentes para aceitarem com coragem o sofrimento, confundindo o que é cobardia com capacidade de sofrer estoicamente as agruras da vida. Quão fácil é confundir humildade com subserviência e rebeldia com atavismo cobarde! Burrancanas!
Acompanho João de Sousa Monteiro  em " Tire a Mãe da Boca" e no segundo volume "Tabu, Príncipe dos Cágados de Fraldas ao Vento Ladra às Portas do Futuro" ( publicados na Assírio e Alvim) quando diz que somos pouco mais que uma bola de sebo, de unto e de ranho: vemos os males dos outros e não vemos os hitleres, os mussolinis, os átilas, os bush, e afins que estão dentro de nós mesmos!
O que mais queremos é que os outros sejam mesmo uns burrancanas para nos montarmos neles e, de esporas no estribo colado ao calcanhar, os aferroarmos e obrigarmos a ir para onde nós decidirmos que eles devem ir!
Somos mesmo muito lindos não somos? Umas bestas é o que somos! Mainada1
Vamos lá ver se não nos deixamos montar como os burrancanas e se nos revestimos da metamorfose de Nietzsche que nos aconselha a alijar os valores caducos de uma ideologia dominante e avivamos os valores da vida, aqueles que nos fazem ser nós, sem termos que nos sujeitar apenas ao ter.
Um dia destes volto aqui. Por hoje chega.
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domingo, fevereiro 26, 2012

A NOSSA FALADURA - CLXXVI - EMBALDE/IMBALDE

Claramente, os tempos que correm são tempos em que o domínio do TER sobre o SER é avassalador. Os novos deuses  - o poder, o dinheiro, o sexo, o lucro fácil, a mentira, - substituiram os valores de não há ainda muito tempo.
Faz já uns bons anos participei na elaboração de um inquérito aplicado a púberes (11-13 anos) em que uma das questões exigia que enumerassem as 3 preferênias valorativas na vida futura.
Creio não me enganar na ordem, mas, ainda que me engane, não vem mal ao mundo por isso: Vivenda com piscina, carro desportivo, muito dinheiro para viajar. Quando, depois, foram confrontados com os outros valores: saúde, paz, amizade, trabalho, solidariedade, fim da miséria no mundo,... , alguns lá foram respondendo : pois, também, é verdade,... .
Não há dúvidas que o descartável, o consumismo, o efémero, .. invadiram o globo e a pessoa humana, esse que devia ser o primeiro e maior valor, foi relegada para trás das costas e quando alguém morre é que se recordam alguns dos seus valores humanitários, mas, a breve trecho, logo se esquece.
O humanismo - e logo a humanidade - estão a perder vitalidade e capacidade de mobilizar. Vive-se um individualismo fechado, em que nem os vizinhos do mesmo patamar se conhecem, as portas se trancam , as partilhas e convívio desapareceram, salvo naturalmente honrosas exepções.
Quando muitos dos que nos lêem foram pela primeira vez para a escola, ouviram  a mãe - em regra o pai não se intrometia nestas tarefas - dizer para o senhor professor:" Se ele se portar mal ou não aprender, puxe-lhe as orelhas, a este malandro. Só se perdem as que cairem no chão!"
Entretanto, em casa, o pai já tinha provavelmente dado o seu conselho máximo: vê lá se não me envergonhas a cara... Não te metas com ninguém, mas se algum se meter contigo, não sejas embalde e arreia-lhe logo que é para ele não se tornar a meter contigo..."
Vivia-se, então, neste transe de não nos portarmos mal, senão o senhor professor arrancava-nos as orelhas, dum lado e do outro com a máxima paterna: nunca deixes que te ponham as botas no cachaço, para não sermos imbaldes.
Dum lado a obediência, o respeito, a consideração pelo senhor professor, do outro o auto conceito, o amor próprio e a defesa do nome da família.
Vem a talho de foice que nas aldeias havia seis autoridades cuja importância não se discutia: o senhor prior, o senhor regedor, o senhor professor, o senhor presidente da junta, o senhor patrão e o senhor pai. Ninguém tratava um pai por tu.
Basta reparar, para corroborar o que atrás disse, quem eram as pessoas que pegavam no pálio nas procissões festivas e quem levava as lanternas e os estandartes...
Sabão era um dos bombos da escola. Todos lhe malhavam e ele tudo tolerava. A mãe vociferava com ele quando o inspeccionava e lhe via todos os dias novas nódoas negras. Ralhava com ele, filho único e chamava o pai à pedra dizendo que também ele era um imbalde um bananinha mole que não era capaz de incutir no filho a fibra que ela tinha.
O maior perseguidor de Sabão era o Modas, que lhe fazia a vida negra.
Era costume, quando fazíamos o exame da 4ª classe e íamos à Vila , muitos pela primeira vez com fato e gravata, era costume, dizia, levarmos sumos de litro ao senhor profesor como prova de agradecimento e reconhecimento pelo seu trabalho connosco.
O Modas era maluco por pirolito.
O Sabão levava uma garrafa de pirolito das grandes e o Modas diz para o Sabão: "passa para cá a garrafa que eu tenho sede" .O Sabão tinha sido ensaiado por mim, Coiote Pete e Contra Mestre: "Se o Modas se meter contigo, tu dizes que a garrafa é de nós os quatro e que a tua parte é a do fundo e portanto não lhe podes dar a garrafa para ele beber." O previsto aconteceu. O Modas quer a garrafa e o Sabão: " Eu dava-ta mas isto é de quatro e a minha parte é a do fundo e os outros não te dão e eu não te posso dar a minha parte que é a do fundo"
O Modas ficou a olhar para ele sem entender, mas não se atreveu a gamar a garrafa ao Sabão, com medo de que depois nós lhe chegássemos a roupa ao pêlo.
O Sabão nesse dia deixou de ser embalde e quem vinha por lã acabou por ser tosquiado.
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quinta-feira, fevereiro 23, 2012

PORQUE HOJE É DIA DE ZECA



O ambiente musical é dos Luar na Lubre (galegos), a voz é da Sara Vidal (portuguesa), a música...é do ZECA.

quinta-feira, fevereiro 02, 2012

A NOSSA FALADURA CLXXV - (A)MER(E)CER

O fator crítico para o sucesso do ser humano parece estar na sua capacidade criativa. Inadaptado ao meio ambiente, desenvolveu a arte de criar artifícios para que a vida lhe fosse mais fácil. Pena que essa arte carregue o paradoxo de não ser usada exclusivamente em seu próprio benefício. É caso para suspeitar que o Homem não (a)mer(e)cia tal dom.

A primeira grande criação foi o domínio do fogo (aproveita-se o ensejo para recomendar, para quem nunca viu, o fabuloso filme “A guerra do fogo” de Jean Jacques Annaud, 1981). A segunda grande criação, aquela que é habitualmente classificada como a maior, foi a invenção da roda. Mas foi sobretudo nos últimos 200 anos que a capacidade criativa do ser humano mais resultados produziu. Bons e maus. Com prejuízo de outro juízo, destaco, não necessariamente por ordem de importância: o livro impresso, a rádio, o telefone, a eletricidade, o preservativo, os óculos, o automóvel, está bem, o computador, bom, a televisão também, etc, etc.

Uma das criações que raras vezes é referenciada mas de igual importância é a do figorífo e da arca congeladora. A nossa vida seria um pouco diferente, para pior, se não tivéssemos um livrinho para ler – com óculos ou não -, um telefone/telemóvel para estar sempre contactável, um computador com internet para visitar o Baságueda, um automóvel para levar os meninos à escola, uma televisão com telenovelas da TVI... Estou convicto, todavia, que seria seguramente muitíssimo pior se não tivéssemos frigorífico ou arca congeladora.

Diferente de outros inventos, estes eletrodomésticos não vieram apenas conferir mais qualidade à nossa vida, eles vieram efetivamente facilitá-la. Sobretudo porque o conseguem numa área que nos é muito sensível: o sistema digestivo. Somos bem capazes de viver com um frigorífico (ou arca) e sem computador, duvido que tivéssemos qualquer interesse em seguir a telenovela ou espreitar a blogosfera se o mesmo eletrodoméstico não estivesse disponível (e carregado).

Mas a arca congeladora não trouxe apenas benefícios: produziu efeitos terríveis no sistema sócio-económico das pequenas comunidades rurais. Explicito. Antes de ser possível a conservação dos alimentos na arca, os pais dos nossos pais e seus avós tiveram de desenvolver, utilizando sabiamente o seu dom criativo, esquemas mais rudimentares, mais trabalhosos, mas não menos eficazes, para conservarem alguns produtos alimentares, pelo azeite, pelo sal, pelo fumo… Não eram consumidos em fresco, mas não era por isso que sabiam menos bem. E os frescos? Como consumiam eles carne fresca sem irem à grande superfície, simplesmente, comprar? Para resolver o problema, os nossos avós e seus progenitores só precisaram de ser “sociais”, que é aquilo que o ser humano sabe fazer da melhor e da pior maneira, com os melhores e com os piores resultados. O ser humano é um eminentemente social, um ser que precisa de se relacionar com os outros, de ser solidário, de (a)mer(e)cer afetos, de os receber, de os dar...

DAR! Para (a)mer(e)cer!

Imagine-se um mundo em que o DAR era um valor supremo: quanto mais déssemos, mais (a)mer(e)ciamos, mais subíamos na escala social, mais elevado era o nosso estatuto. A riqueza e a fama não resultavam da posse mas da dádiva. E imagine-se que todos os elementos da sociedade assumiam esse valor. E que o praticavam! com o mesmo empenho que se aplica à acumulação egoística da riqueza dos nossos tempos. Um mundo (quase) ao contrário. Um mundo em que o prestigio do dador aumentaria na proporção da sua dádiva. A vantagem estava no dar, no receber, no retribuir, não no ter ou possuir.

Como bem diagnosticou Marcel Mauss na sua obra mais marcante intitulada “Ensaio sobre a dádiva”, dar, receber e retribuir são elementos essenciais à constituição e manutenção das relações sociais nos povos “primitivos”, regulando a amizade e o conflito, a proteção e a assistência mútua. A reciprocidade e o intercâmbio funcionariam como fator de estabilização da comunidade. O espírito calculista e interesseiro orientado primordialmente para a vantagem material que actualmente subjaz à dádiva seria dirigido para a conquista de prestígio social. A competição não estaria em conseguir riqueza e guardá-la egoisticamente, antes, estaria em produzi-la para a redistribuir. Mas isso era nos povos “primitivos”.

Numa escala e num tempo específico, esse mundo foi experimentado. Numa tribo do Canadá, o antropólogo Franz Boas foi encontrar uma sociedade cuja organização social assentava no potlach, um sistema de trocas em que a dádiva era socialmente valorizada. Havia uma espécie de campeonato entre as aldeias e o título era conquistado pelo chefe da comunidade que dava mais.

Na nossa beira rural, no tempo dos nossos avós e dos pais deles também se praticava uma espécie de potlach à moda da beira, e era com ele que ficava resolvido o tal problema de consumir carne fresca sem grandes superfícies comercias: bastava-lhes dar, receber e retribuir. Porque faziam por (a)mer(e)cer a dádiva…retribuindo.

Tacitamente repartidas pelo calendário do tempo mais fresco, e descontadas as partes destinadas à conservação no fumeiro ou na salgadeira, as famílias da comunidade iam matando o seu porco e distribuindo pelas outras, as partes consumíveis em fresco, num fenómeno que ia muito para além da dimensão estritamente economicista, baseada apenas no cálculo racional, porquanto carregava uma matriz de componentes simbólicos associados ao reconhecimento, à solidariedade, ao reforço dos laços, à integração na comunidade, à identidade colectiva.

A casa da Ti Mari Rancheira era a última, dos 8 irmãos dela, a matar o reco e a quarta dos 5 irmãos do Ti Manel Rancheiro, seu homem. Desde Outubro que andava a receber chicha fresca todos os fins de semana. Agora, na entrada de Fevereiro, tinha sido a vez dela. O que restava do animal depois de retiradas todas as carnes para o fumeiro e da pata traseira para o presunto da salgadeira, jazia alinhado na banca escura de castanho. Ti Manel já tinha feito uma primeira divisão das carnes, separando o chispe, o lombo, a pá, a barriga, o entrecosto, o toucinho. Ti Maria começou por escolher as partes que ia mandar para a sua irmã Natércia, que era quem (a)mer(e)cia mais, por via dos 4 garotos pequenos que lá tinha em casa; e também porque ela tinha tido pouca sorte com o homem, coitada, o borracholas do Porfírio Néné, que não tinha artes para trabalhar. E sem se lembrar sequer que a irmã lhe mandou apenas a prova da farinheira quando matou o porquinho, Maria fez questão de ser generosa: escolheu um bom naco do lombo, e outro de toucinho da barriga e acondicionou tudo cuidadosamente no fundo da cestinha de verga comprada ao Ti Ambrósio cesteiro no último mercado.

A compreensão deste tipo de impulso para a dádiva, ensina Pierre Bourdieu, precisa que se abandone o paradigma que junta a filosofia que reduz toda a ação ao princípio da intenção consciente, com a teoria economicista que dogmatiza o cálculo racional e o interesse económico. Se existe uma intenção consciente na Ti Maria Rancheira, não é seguramente a busca de proveito material. No vocabulário característico de Bourdieu, ela renega a dimensão económica a favor da dimensão simbólica, o que ela busca é a acumulação de capital simbólico, conquistado precisamente pelo ato de dar. Nenhuma sociedade sobreviviria com este paradigma como dominante.

Voltemos à casa da Ti Maria:

- Ó Mnel, anda cá. Vá! Vai lá à nossa Natércia a levar isto, mas no te demores porque inda tens de ir hoje ó nosso Farnando, ó nosso Zéi, ó nosso Tó e à nossa Glória.

Mnel Rancheiro, como qualquer homem daquele tempo, não se metia nos meandros e pormenores daquele potlach, a sua função tinha terminado com a desmancha do porco, agora era com a patroa, e saiu de casa sem sequer ver o que levava. O caminho até à casa da cunhada Natércia passava pela rua da taberna do Fatela. O convite do compadre Fcisco Cávai para um copito de tinto impôs-se à recomendação da mulher. A moda da rodada ditou que bebesse 3 e pagasse o quarto, enquanto se entusiasmava com o debate sobre a poda da vinha, arte em que ele se assumia exímio. Só se deu conta do relaxe quando o cunhado Porfírio Néné entra para a sua sexta visita ao Fatela e pergunta:

- Ó Fatela, andas a tratar os cães com´a reis, ah!?

- Eu?, Ná! Atão proquêi?

- Ia ali o fadista e o leão à bulha por um bocado de tócinho

- Ai valha-me nossa senhora! – grita Mnel Rancheiro – tu queres ver que era o tocinho estava ali na cesta qu’a minha me mandou ir a levar à tua!

- Ó porra!, atão aquilo é meu? Cabrões dos cães, espera aí qu’ê já os coço.

sábado, janeiro 07, 2012

ENUMERATIO DELITIARUM JENTACULI

DE CONVIVIO  AMICORUM,  HIC ET NUNC, VOS CERTIORES FACIO


I  - ANAS PLATYRHYNCHOS

II - ORYCTOLAGUS CUNICULUS

III - LEPUS GRANATENSIS

IV - CERVUS ELAPHUS

V - GALLUS GALLUS



ACCOLLITI:

BRASSICA NAPUS
OLEA EUROPAEA SATIVUS
ALLIU CEPA
VITIS VINEFERA
ORYZA PUNCTATA
BRASSICA OLERACICA SABANDA SYLVESTRIS
CUCURBITA
SOLANUM TUBEROSUM
SEMIRAMIS
ARBUSTUS ONADO DESTILATUS
CAPRA HIRCUS
OVIES ARIES
ALLIUM SATIVUM
CARYOPHILUS AROMATICUS
LAUROS NOBILIS
FRUCTUS OLIVAE


ET COETERA ...


 Aqui vos fica o desafio da descoberta...


Prometo deixar aqui também as diferentes receitas para a confecção capaz destas verdadeiras iguarias.
Entretanto ide-vos roendo de inveja, vós outros que não pudestes degustar destes verdadeiros manjares.
Mais ainda: não pudestes partilhar do convívio destes bons amigos que uma vez por ano, por esta altura, se juntam na já lendária quinta do lírio  ... quando se proceder à solene abertura dos frutos vinícolas lá criados, fermentados, acondicionados, destilados, ...  novos prazeres nos aguardam.
Tendes todo o direito de vos roer de inveja...


Pronto, deixo-vos uma receita: sopa de lebre à moda do changoto


Supondo que conseguis arranjar uma orelhuda veloz, daquelas mesmo verdadeiras, começai por ter cuidado na esfoladela. Há que ter atenção para não deixar qualquer pêlo e conferir se o tiro a não rebentou e esteja conspurcada por algumas fezes. 
A técnica consiste em convidar um amigo, fazer um corte ao meio do lombo e cada um puxar para seu lado. Aquele que ficar com a parte das patas segura a lepurina e todo o ouro trabalho compete ao artista que, com faca afiada, deixa o animal ao léu, bem limpinho, sem bofe, nem queixais, vestígios de rabo ou diafragma. Nada.... O animal deve ficar assim mesmo comédado.
Em panela de pressão com duas belas cebolas, duas folhas de louro sem veio, um ramo de mangerona e uma chisca de vinagre de vinho, coze-se durante 25 minutos, dependendo do tamanho e idade.
Quando cozida, retira-se e desfia-se. A água da cozedura, a que se retiraram as cebolas, e as ervas, é coada e reserva-se.
Numa panela juntam-se obra de um quilo de feijão branco,previamente cozido, e do qual se coou a água, feito em puré através de PASSE_VITE, para evitar que as cascas se misturem com o puré, meio quilo de abóbora amarela ou porqueira, um bom ramo de salsa, 5 cabeças de nabo, 5 batatas, 3 cebolas , 6 cenouras, a água da cozedura da lebre e do feijão, já coadas, a que se junta a considerada necessária para a sopa ficar bastinha . Estando tudo cozido, tritura-se grosseiramente com varinha ou, melhor, colher de pau e garfo à moda antiga, rectificam-se os temperos, adiciona-se a lebre, três boas couves lombardas, esfarrapadas à mão, deixa-se levantar fervura e completa-se com massa cotovelo, canudo, ou mesmo cuscus e aromatiza-se com um valente ramo de hortelã, não esquecendo de temperar com o belo azeite de oliva. Deixa-se cozer em lume brando e serve-se quase a ferver.
Experimentai e contai-me o resultado.


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terça-feira, dezembro 27, 2011

A NOSSA FALADURA - CLXXIV - GANAPO

Começo com Aleixo: " Não sou esperto, nem bruto/ Nem bem, nem mal educado/Sou apenas o produto/ Do meio onde fui criado". Não vamos discutir da asserção mas vamos servir-nos da sua mensagem.
A maior parte do que somos, fazemos e pensamos - sim que o fazer é sempre antes do pensar... - resulta das influências que vamos mamando desde ganapos.O pior, bem, o pior, é que, depois nos convencemos de que somos os únicos a ter formas correctas de ser, estar e pensar, esquecendo a evidência que nos rodeia: a maioria está em desacordo connosco. Costumo dizer, por graça, que o signo com mais gente é o de Caranguejo, que andando para trás, pensa que é o único a andar para a frente. Ilusões...
Por exemplo, quantos se questionam sobre a existência ou não da alma? Poucos... Como aprendemos que o corpo morre e a alma espera uma Ressurreição final, pronto, nada nem ninguém pode contrariar esta credulidade. Ou, menos polémico ainda, porquê o Natal nesta época do ano. Basta ler A Escritura e logo se depreende que O Menino não podia ter nascido neste tempo de caramelo. De facto, lá se diz que os pastores dormiam ao relento... Vai lá vai... Em Agosto pode ser, mas em Dezembro?!
Se olharmos bem esta época do ano, a entrada do Inverno, coincide com o Solstício, o que simplesmente quer dizer que o Sol  ESTÁ, ou seja, o Sol permanece por três/quatro dias mais ou menos fixo no mesmo local, no seu movimento aparente... Só depois é que os dias começam a crescer. Plutão começa a saber que a sua Psosérpina regressará no Equinócio para junto da mãe Ceres. Tudo cresce, tudo medra, o calor vai chegar e vencer a humidade e o frio como já o velho Anaximandro escreveu e a Natureza vai exultar de alegria com o desabrochar das plantas. Afinal a exuberância do cristianismo está aqui: o Menino vai trazer calor ao mundo e vencerá a tenebrosa morte, as trevas e o mal, para, numa Páscoa de Aleluia, refulgir em todo o esplendor . É a isto que os cristãos chamam o Mistério da Fé. O problema é que transformam o mistério (o que é oculto, complicado, intrincado) num Dogma, ou seja numa verdade indiscutível, na qual tem que se acreditar.
Como vemos, o que se aprende de ganapo é esta misteriosa teia de dogmas, quando afinal , tudo mais não é que um aproveitamento sábio das práticas antanhas dos antepassados, em muito, do cristianismo e é claro do Menino. A verdade é que o Natal é um festa  que aparece tarde na mitologia cristã. Muito depois do édito de Milão de Constantino em 313. Muito depois...Curiosamente aqueles que não aceitam ou ainda não conhecem o Menino são pagãos. Mainada!
Ganapo que ande na catequese é embebido nesta fabulosa história, que o é, sem dúvida: menino nascido em palhas, aquecido ao bafo de burro e vaca, cedo fugido para o Egipto às sevas mãos de Herodes, o seu desaparecimento e logo aparecimento em ganapo mais crescido já a discutir as Escrituras com os sábios do Templo, a pôr de lá a cabanir os vendilhões, a entrar de jumento em Jerusalém, a ser contraposto a Barrabás, sei lá com multidões sempre atrás dele.... Então ninguém trabalhava? quem sustentava aquelas movimentações de gente? Questões de ganapo arguto que não gosta que lhe comam as papas na cabeça.
Mas há um valor sem sofismas no meio de tudo isto: o Menino traz o Amor, a igualdade com o outro, a partilha, a solidariedade, a luta por ideais universais que, se fossem levados à prática, na sua grande maioria trariam, de facto a paz ao mundo. E bem precisamos dela!
Foi por causa de terem estragado esses valores que houve cisões e novas formas de reinterpretar o Menino, mas é para se aproveitarem dele, não para o respeitarem.
Impõe-se aprender com o Menino e não usar o Menino. Varram-se dogmas e deixemos de pensar que só há uma razão e que essa é a nossa.
Até para o Ano. Que o Menino vos acompanhe no seu bem fazer.
Xi GRRRRRRANNNNNNDDDDDDDDDDDE

quarta-feira, dezembro 14, 2011

A NOSSA FALADURA - CLXXIII - EMBISGA/EMBISGAR

Foram, que eu saiba, duas, as mulheres a quem se atribuiam poderes de bruxaria nas terras xêndricas: a velha Batorelhas e a velha Casaca. Batorelhas morava mesma à esquerda da igreja, primeira casa, com acesso por uma escadaria granítica a meio da qual havia um bureco do qual dependia, de manhã e à tarde, uma tábua com travessas, por onde duas pitas e um galo desciam e subiam, já que era ali a capoeira. Todos os dias Batorelhas tomava o cu para ver se tinham ovo e, a confirmar-se, subia a um baturel, metia a mão num caco colocado à entrada e tirava o ovo; a velha Casaca morava numa casa ao início da rua das aranhas, paredes meias com a velha tasca do estanqueiro, tinha uma loja que nunca vi aberta e ascendia-se ao primeiro andar, também por uma escadaria de pedra, só que, em vez de ser frontal como a de Batorelhas acompanhava a parede da casa e acabava num pequeno alpendre que tinha um telheiro suspenso por colunas de madeira. Diziam as más línguas que a casa não tinha sobrado e que Casaca, mesmo de noite, se passeava pelas traves e caibros e que, de vez em quando se ouvia um zunido que resultava da vassoura de giesta que ela montava. Não havia mobília a não ser uma pedra de lar onde, dependurada das cadeias , baloiçava uma panela de ferro, serventia constante da magra culinária. Como ninguém a via ir à lenha, diziam que, de noite, montada na amestrada vassoura, ia à serra da Carochinha, ordenava aos gravetos que se formassem em molho, metia a vassoura por baixo e aí vinham, ela e a lenha até casa. Chispava uma pinha com  um embisgar do olho direito e o lume acendia-se não sendo preciso meter lenha, já que bastava ela mostrar vontade e o gravato saltava para a fogueira. Famoso era o seu escarro. Puxava lá do fundo da garganta o muco, enrolava-o na cavidade bucal e expelia-o com trejeitos de arte a uma distância considerável. Com um tremoço no meio, pareceria um ovo estrelado. Saía pouco, sempre de preto e a olhar de lado, desconfiada. Garoto que a vislumbrasse ou adulto que por ela passasse punham as mão atrás das costas ou dentro do bolso e faziam figas com as mãos ambas e praguejavam: vade retro Satanas".
Batorelhas não era tão misteriosa: desde que o tempo o permitisse sentava-se na escada, chamava as pitas e o galo, esfarelava-lhes pão molhado ou restos de uma batata cozida e estimulava-os- pnina,pnina,pnina, gatcha,gatcha,gatcha...,tomava-lhes o cu e, toda escanchada, deixava ao léu tudo, sem qualquer pudor, e se lhe apetecia verter águas, abria as pernas por debaixo do bureco das pitas e ali mesmo se aliviava, limpando-se à combinação de flanela, cuspindo, também ela um valente escarro, mas não com a arte de Casaca. Sempre descalça, a sola dos pés podiam pisar um alacrário ou carapetos de silva, até mesmo um brocho que os cascos aguentavam, qual muralha inexpugnável às arremetidas dos picos. Uma vez a vi eu a esfregar ouriços para lhe sacar a castanha. Aquilo sim, era calçado!
Era raro ver-se Casaca na rua;  já Batorelhas corria as ruas sem qualquer problema, mas não se livrava que a canalha  a apupasse com o " olha a bruxa, olha a bruxa...! " Acompanhava-a sempre um pau, que lhe servia de bengala e com ele ameaçava qualquer garoto que dela se aproximasse. Já sabia que se o atirasse a algum nunca mais o via. A figura era de uma mulher esguia, de pescoço alto, seca de carnes, nariz um tanto adunco e um olhar mortal. Quando zangada, ora embisgava um olho, ora o outro e, ao ralhar, mostrava uma gengiva com três dentes apenas e fazia um esgar que a tornava numa figura cuja aparência não se afastava muito daqueles desenhos clássicos das fadas más das fabulosas histórias de então.
Curiosamente não era a elas que o povoléu recorria quando queria mezinhas, unguentos ou qualquer artifício para enfeitiçar alguém. Todos lhes tinham medo. Outras eram as benzilhoas que quebravam os quebrantos, deitavam a agulha ou tinham preparados para as maleitas, chás para as dores e sei lá que mais : Figo Seca, Espeta Figos, Rosa Manata, Julha do Toco, Olho de Lata, e outras.
Que conste nos anais xêndricos, nada aconteceu de mal que estas mulheres - repare-se que são sempre mulheres- alguma vez tivessem causado, fosse pelo embisgar dos olhos, fosse pelas curandices.
Outros que vós bem conheceis, de fato e gravata, bem montados e sempre acompanhados por acólitos de igual vestimenta e montada, loirinhos e de olhos azuis como os meninos bons das minhas histórias da minha meninice, esses sim, parecendo que não partem um prato, escavacam a cantareira toda.
É com esses que vos deveis pôr a pau porque sendo coelhos não comem couves, nem cenouras, mas subsídios de Natal e de férias.
Bom Natal para todos!
XXXXXXIIIIIIIIGGGGRRRRRRRRRRAAAAANNNNNDDDDDDDDDDDDDEEEEEEEEEEEEE

domingo, novembro 27, 2011

A NOSSA FALADURA - CLXXII - ESCANCHADO, ESCARRAPACHADO, ESCARRANCHADO

Artista a cavalgar uma burra era Teixeirinha: malino como era, metia por debaixo da albarda da alimária uma silva seca, cheia de carapetos e o pobre do animal, picado e ferido de dor com os picos da silva troteava a passo veloz, enquanto Teixeirinha, à laia de cowboy da Flecha Quebrada, guinchava gritos de prazer... Era de facto um artista escarrapachado na albarda da burra do seu avô, velho Freitas, que em matéria de aldras, só teve comparsa no seu próprio filho Manel, acolitado, e bem, por Zé Luís Barata.
Figura não menos famosa era Zé Labouxa, o homem que descobriu o ninho à moucha, como ele próprio se definia, e que negociava em tudo, "mediante uma pequena comissãozinha", desde burros, mulas, vacas, milho, alhos e até, gabava-se, mulheres.
Numa tarde de Domingo, Labouxa jogava ao fito na rua do Desembargador, precisamente com Freitas e Barata. Conversa puxa conversa e Barata assevera a Labouxa que o melhor negócio que havia na Terra Fria, era a venda de cascas de alho. Era corrente que as almofadas cheias com as cascas do alho evitavam o reumatismo, enxaquecas e demais maleitas, próprias de quem  ia entrando na velhice. Freitas corrobora  o reclame de Barata e Labouxa, depois de beber o copo da rodada do fito, esgueirou-se a casa e, munido de sacas de sarapilheira, agarra na sua burranca, vai direitinho à aldeia dos cucos e percorre as ruas escarranchado na burranca, apregoando a compra de casca de alho. Como não havia referência de preço para o artigo, Labouxa tabelou cinco escudos o quilo. As velhotas espantam-se com a novidade do negócio e nem inquerem para que serve tal produto, antes vão aos forros ver se arranjavam cascas bastantes para fazerem cinco mil réis que bom jeito dariam para compra de avental novo na loja do Mnel Lúcio.
Não tardou, Labouxa tinha as sacas cheias, teve que desmontar e encher as angarelas com o material, esperou pela noite e regressa a casa todo contente. Surripia umas almofadas à ti Lucinda enche-as com as cascas e mal esperou pelo caldo de couves põe-se a caminho do Sabugal com ideia de vender as almofadas a pelo menos cem mil réis, cada. Claro está que ninguém lhe comprou a mezinha e teve direito a choradela de entrudo levada a efeito pelo Teixeirinha montado na burra a quem só faltava saber ler, só que a culpa não era dela mas do facto de ser proibido que os burros entrassem na escola, porque senão passaria a perna  a muita gente. Labouxa queria matá-lo...
O quadro não ficou gravado senão na memória daqueles que a ele assistiram, mas o trejeito de Teixeirinha escanchado na burrica do avô, com um cabo de alhos a servir de gravata e duas sacas de cascas, fazendo-se arauto das benesses de tal produto para as mais diferentes maleitas. Barata e Freitas pareciam dois pavões de leque alçado.
São muitas as patranhas destes dois amigos, que entretanto já partiram, e não resisto a contar-vos uma outra em que Barata convenceu a velha Nacha de que o António Sala a queria a cantar e a tocar adufe no programa da manhã da Rádio Renascença. Ainda ouvi a Nacha a ensaiar e arranca para Lisboa e se não fosse o seu filho João, o Salazar, a avisar o  irmão Chico que era bombeiro, Nacha haveria de ter ficado perto de desmaiar no número 7 da Rua Ivens.
Extrapolando, verdade sem sofisma é que o povo também embarca facilmente em patacoadas de uns quantos malinos que com arte e manha convencem os incautos de que ainda há milagres. Quando depois acorda o povo lamenta-se, mas a breve trecho esquece e volta a cair na mesma esparrela.
Einstein, na simplicidade que o caracterizava disse: "é mais fácil desintegrar um átomo do que desfazer um boato". Os preconceitos e estereótipos enraízam com tal força na mente da populaça, que ninguém, mesmo com a força da evidência das experiências passadas e até vivenciadas, ninguém é capaz de os persuadir a alterar a sua forma de pensar. Na verdade persuadir não é convencer. O convencimento reforça a crença, a persuasão altera, mediante argumentação consistente, a forma de pensar, levando o outro a concordar com o orador.
Barata e Freitas eram destes. Persuadiam: um reforçava o outro e nem era necessário ensaiarem.
Vede o que se passa à vossa volta e reparai se não vos põem a comprar almofadas com cascas de alho para cura das vossa maleitas. Depois não vos queixeis.
XXXXXXIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIGGGGGGGGGGGGGGRRRRRRRRRRRAAAAAAAAAAAAANDE

terça-feira, novembro 08, 2011

A NOSSA FALADURA - CLXXI - TOLDO, PANAL, FATO






Olival do Baldio, 5 de Novembro de 2011.

Tópicos: oliveiras sujas, galega, cordevil, vermelhal, carrasquenha, toldo, panal, fato, garrancho, vibradora, feijoada, tinto, branco, jeropiga, picles, beringela, queijo, chouriço, morcela, farinheira, presunto... água.
Soundbyte: "dormir com uma mulher emprestada".


Espécie de reportagem AQUI

domingo, novembro 06, 2011

A NOSSA FALADURA - CLXX - BANDOLEIRA

A bandoleira volta de novo a poder dar jeito. Nela cabem a bucha para um dia inteiro, a botelha do tinto, e ainda podia sobrar espaço para transporte a tiracolo de algum borrego nascido tarde e incapaz de acompanhar o rebanho e até algum caçapo apanhado na lura, quando não uma lebre que tropeçasse no junco, bem lançado por pastor bem treinado.

 Ainda fiz algumas. Aquilo era, pode dizer-se, uma autêntica alcofa. Feita em cabedal  genuíno, ensebada como convinha para não se ensopar com a água da chuva, resistia a todos os maus tratos. Era tão resistente à torreira do Sol, como à maior das intempéries.

O genro da Velha Raposa, mais conhecida por Bandeira de Guerra, pastoreava rebanho misto lá para os lados da Mata da Rainha. Vinha aos xendros ver a mulher e as duas filhas de quinze em quinze dias , e a bandoleira vinha sempre com ele. Nunca vinha vazia. A filha da Bandeira de Guerra cortava-lhe a vasa e troco para os gastos domingueiros nunca havia. Papei muito coelho e lebre fora de época, porque antes de ir para casa, passava por onde ele muito bem sabia e levava logo o dinheirinho do pagamento da peça. Os coelhos ou as lebres, duma vez até um texugo porco, nunca vinham esmazelados e era um asseio  papar um bichinho daqueles em tempo fora de época. Outros tempos! Nunca ninguém sabia daquela jogada, a não ser eu e pouco mais.

Os tempos que correm são também eles tempos de bandoleira. Nada como ter a bucha garantida. Comer fora nem pensar, de modo que a alternativa eficaz é, volta a ser, garantir a paparoca, levando-a de casa.

Repete-se a história?.

Mais que académica, a questão já foi bem debatida  e se para um marxista justificar que a história é previsível e que nela, como no mais, há leis, já para outras correntes de pensamento aceitar o «18 do Brumário de Luís Bonaparte», é estultícia que nem sequer vale a pena debater. Popper está entre esses que defendem que não há repetição histórica e que previsão não passa, se se verificar, de mera coincidência. Do que não há dúvida é que é comum a tendência para fazermos efemérides e de andarmos sempre a fazer comparações entre o presente e o passado. Até parece que tudo volta ciclicamente. Não é por acaso que o mais antigo mito de que há memória é o mito do eterno retorno.

Vem tudo isto a propósito dos nossos tempos. Não que lá em casa uma sardinha desse para três, mas conheci algumas onde isso se verificava. Até parece que começamos a ter saudades desse tempo. Tudo era aproveitado ao limite: a azeitona curtida era rapadinha e raspadinha até ao caroço com navalhinha bem afiada, o conduto era sempre explorado até ao chupar dos dedos, os restos eram aproveitados para  a vianda, os dentes (quem os lavava) não eram escovados com a torneira sempre a correr, as águas residuais regavam as plantas, o dinheiro era bem contado, as despesas bem medidas, tudo, mesmo tudo era bem aproveitado. Em vez de se ter aprendido parece que se desaprendeu. Nem mesmo agora muitos já se convenceram de que não faria mal se imitassem os mais velhotes. Já nada é como era e nada se perdia se o velho mito do eterno retorno, retornasse, de facto.

Famosa na terra dos xendros por tão POUPEDA ser, era mesmo a velha Poupeda, mulher de velho Grilo, que não largava a sua bandoleira por nada. Não deixava de ser curiosa a composição das suas saias que mais eram uma manta de retalhos, já que resultavam do ajustamento, ad hoc , de tecidos, os mais variados, independentemente da textura, cor, formato, tamanho...Cozia as batatas que em princípio seriam para os porcos, numa panela de ferro que mantinha perto do lume  e ia descascando à medida que eram precisas. Azeite nem vê-lo. Apenas três azeitonas e um naco de pão já bem assente para surdir mais. Um chicharro era dividido em três: uma parte era assada, o rabo frito e a cabeça cozida. Dava para ela e para o Grilo para três vezes. Sempre descalça, rivalizava com a velha Lorpa, com a Pieres e a velha Nacha, vedetas que um dia destes aqui vos aportarei. O velho Grilo até dizia, para de algum modo disfarçar este aforro que era capaz de beber cinco litros só a lamber um caroço de uma azeitona galega e bebia uma pipa com uma cordovil. Fácil de consolar como se vê. Durante uma semana inteira só se lhe conhecia uma camisa... E assim viveram até tarde.

Foi gente como esta que não importa que permitiu que este país superasse a crise do pós-guerra.

O melhor que fazemos é também recuperar a bandoleira e andarmos sempre com a bucha às costas. Pode ser que ajude!

XIIIIIIIIIIIII GGGGRRRRRRRRRRRAAAAAAAAAAAAAANNNNNNNNNNNNDDDDDDDDDDE
changoto

segunda-feira, setembro 26, 2011

SYMPOSIUM ET CONVIVIA MMXI



Idos septembrini MMXI

MATINAS / PRIMA

v    Passas de quem passou por ninguém ter passado coadjuvadas por imo de duplo encascamento
v    Abafado misto rememorante do ano transacto

LAUDES
 
v    Lascas de entripado porcino seco em fumo de azinho
v    Abanos tapadores de olhos para não poder ver a porca da sua mãe, em salsa coentrina, acetizados, miscegenizados com bolbo choroso e dentado
v    Misto de leguminosa de cara verde garantia de aerofagia com lombo de bonito levemente picante e bem regado com sumo de oliva de baixa acidez
v    Frisante gelado arrotante e descomplexado
v    Amostras de transmontana iguaria em várias modalidades

NOAS
 
v    Caldo entulhado de leguminosa amarela com verdura quanto baste, sampaio, tubérculos vários, mantraste manso, bem adubado com naco traseiro bem curtido
v    Nacos de glândula de função glicogénica ao braseiro e sertã sempre bem alhado
v    Oriental cereal, levemente aguado e tostado em abóbada embranquecida e intestinado com chicha marrecal, criação da quinta do lírio como se impunha
v    Acompanhantes diversos em várias cores
v    Báquicos odores e sabores
v    Casqueiro genuíno
v    Bifes de caroço à moda antiga
v    Coalho fermentado de diferentes proveniências
v    Pentix agronómico à moda do manteigas
v    Negro fumegante e aromático
v    Destilados simples e triplos

VÉSPERAS

v    Continuação de báquicos, destilados e fermentada de cevada em recipiente orvalhado
changoto dixit

 

Alambasação de MMVIII
Embandulhamento de MMIX
Entulhamento de MMX