A bandoleira volta de novo a poder dar jeito. Nela cabem a bucha para um dia inteiro, a botelha do tinto, e ainda podia sobrar espaço para transporte a tiracolo de algum borrego nascido tarde e incapaz de acompanhar o rebanho e até algum caçapo apanhado na lura, quando não uma lebre que tropeçasse no junco, bem lançado por pastor bem treinado.
Ainda fiz algumas. Aquilo era, pode dizer-se, uma autêntica alcofa. Feita em cabedal genuíno, ensebada como convinha para não se ensopar com a água da chuva, resistia a todos os maus tratos. Era tão resistente à torreira do Sol, como à maior das intempéries.
O genro da Velha Raposa, mais conhecida por Bandeira de Guerra, pastoreava rebanho misto lá para os lados da Mata da Rainha. Vinha aos xendros ver a mulher e as duas filhas de quinze em quinze dias , e a bandoleira vinha sempre com ele. Nunca vinha vazia. A filha da Bandeira de Guerra cortava-lhe a vasa e troco para os gastos domingueiros nunca havia. Papei muito coelho e lebre fora de época, porque antes de ir para casa, passava por onde ele muito bem sabia e levava logo o dinheirinho do pagamento da peça. Os coelhos ou as lebres, duma vez até um texugo porco, nunca vinham esmazelados e era um asseio papar um bichinho daqueles em tempo fora de época. Outros tempos! Nunca ninguém sabia daquela jogada, a não ser eu e pouco mais.
Os tempos que correm são também eles tempos de bandoleira. Nada como ter a bucha garantida. Comer fora nem pensar, de modo que a alternativa eficaz é, volta a ser, garantir a paparoca, levando-a de casa.
Repete-se a história?.
Mais que académica, a questão já foi bem debatida e se para um marxista justificar que a história é previsível e que nela, como no mais, há leis, já para outras correntes de pensamento aceitar o «18 do Brumário de Luís Bonaparte», é estultícia que nem sequer vale a pena debater. Popper está entre esses que defendem que não há repetição histórica e que previsão não passa, se se verificar, de mera coincidência. Do que não há dúvida é que é comum a tendência para fazermos efemérides e de andarmos sempre a fazer comparações entre o presente e o passado. Até parece que tudo volta ciclicamente. Não é por acaso que o mais antigo mito de que há memória é o mito do eterno retorno.
Vem tudo isto a propósito dos nossos tempos. Não que lá em casa uma sardinha desse para três, mas conheci algumas onde isso se verificava. Até parece que começamos a ter saudades desse tempo. Tudo era aproveitado ao limite: a azeitona curtida era rapadinha e raspadinha até ao caroço com navalhinha bem afiada, o conduto era sempre explorado até ao chupar dos dedos, os restos eram aproveitados para a vianda, os dentes (quem os lavava) não eram escovados com a torneira sempre a correr, as águas residuais regavam as plantas, o dinheiro era bem contado, as despesas bem medidas, tudo, mesmo tudo era bem aproveitado. Em vez de se ter aprendido parece que se desaprendeu. Nem mesmo agora muitos já se convenceram de que não faria mal se imitassem os mais velhotes. Já nada é como era e nada se perdia se o velho mito do eterno retorno, retornasse, de facto.
Famosa na terra dos xendros por tão POUPEDA ser, era mesmo a velha Poupeda, mulher de velho Grilo, que não largava a sua bandoleira por nada. Não deixava de ser curiosa a composição das suas saias que mais eram uma manta de retalhos, já que resultavam do ajustamento, ad hoc , de tecidos, os mais variados, independentemente da textura, cor, formato, tamanho...Cozia as batatas que em princípio seriam para os porcos, numa panela de ferro que mantinha perto do lume e ia descascando à medida que eram precisas. Azeite nem vê-lo. Apenas três azeitonas e um naco de pão já bem assente para surdir mais. Um chicharro era dividido em três: uma parte era assada, o rabo frito e a cabeça cozida. Dava para ela e para o Grilo para três vezes. Sempre descalça, rivalizava com a velha Lorpa, com a Pieres e a velha Nacha, vedetas que um dia destes aqui vos aportarei. O velho Grilo até dizia, para de algum modo disfarçar este aforro que era capaz de beber cinco litros só a lamber um caroço de uma azeitona galega e bebia uma pipa com uma cordovil. Fácil de consolar como se vê. Durante uma semana inteira só se lhe conhecia uma camisa... E assim viveram até tarde.
Foi gente como esta que não importa que permitiu que este país superasse a crise do pós-guerra.
O melhor que fazemos é também recuperar a bandoleira e andarmos sempre com a bucha às costas. Pode ser que ajude!
XIIIIIIIIIIIII GGGGRRRRRRRRRRRAAAAAAAAAAAAAANNNNNNNNNNNNDDDDDDDDDDE
changoto
2 comentários:
A propósito da capacidade de absorção que uma azeitona era capaz de potenciar ao Grilo, lembrei-me do ti Luís Carmona (não, não era xendro) que declarava à boca cheia que a sua maior ambição era ter:
- Um pão do tamanho da casa da D. Maria,
- Uma pipa do tamanho do lagar do Sr. Esteves e
- Uma chouriça do tamanho da torre da Igreja!
Ambição não lhe faltava, mas, à falta de melhor, com umas azeitonas carrascas também já bebia uns bons copos.
É com interesse que continuo a acompanhar "A NOSSA FALADURA".
Parabéns pelo seu blogue.
a capa e a merenda nunca fizeram ruim companhia....
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