« És mesmo um abre-nó, um cagarela, fazem-te o ninho atrás da orelha, comem-te as papas na cabeça, e tu, meu babanca, aguentas tudo. Um homem quere-se com génio! Eu até cagava um pé todo se fizessem assim mangação de mim! podes crer!».
Esta pedagógica advertência travava-se entre Zé Estanqueiro e seu filho, também ele Zé, candidato e depois efectivo soldado da GNR.
Os Estanqueiros, embora tivessem casa na aldeia, viviam a maior parte do ano para os lados do Carregal, paredes meias com a ribeira das Taliscas. Vinham ao povo apenas aos Domingos e era ver o velho Estanqueiro, garboso, montado na sua mula esgueira, de albarda bem bordada e estribos laterais, bota com esporas reluzentes, fato de surrobeco, colete justo, relógio Cortebert, atacado por corrente de prata no bolso pequeno, jaqueta à meia haste, chapéu de cartola : um príncipe dos lavradores.
O filho, esse, deslocava-se noutra montada, uma bicicleta pasteleira, sempre com os guarda lamas por mor dos charcos que tinha que atravessar evitando assim os salpicos resultantes do acelerar dos pedais.Vinha à escola com a bolsa a tiracolo, onde cabiam o livro único, o caderno das cópias e das contas, a gramática do Zé Maria Relvas, a História do Tomás Barros, e, claro, a pedra e o ponteiro.
A mãe fazia um enchido de paladar único e não foram poucas as vezes que eu trocava um chocolate de cinco tostões da Regina por uma tora daquele chouriço cujo unto escorria pelos dedos e que eu lambia sorvendo os dedos, a ponto de não ser preciso lavar nada. Era um rapaz espadaúdo, bota número 45, alto para idade, tanto mais que as calças não tapavam as botas, o que o fazia parecer ainda mais alto. Moreno quanto baste, cabelo farto e forte, emaçarocado por falta de lavagem conveniente, mãos enormes e unhas que pareciam sachos.
Nunca o vi sem dinheiro e era com ele que, muitas vezes, comprava a resolução dos problemas que o professor mandava para casa e que o Estanqueiro se via aflito para deslindar. Ainda ganhei uns trocos.
Um dia o professor topou o jogo, levámos os dois reguadas que chegassem, eu papei um raspanete e o Estanqueiro levou o recado para o pai ir à escola a falar com o senhor professor. Queria saber de onde lhe vinha o dinheiro, se o tinha tirado do lenço das mãos da mãe ou da boieira do pai ou se lho tinham dado. À cautela foi-lhe confiscado.
O velho Estanqueiro lá foi e os três esclareceram ali o assunto, o dinheiro foi entregue ao pai e é aí que sai aquele diálogo tão edificante com que comecei a crónica de hoje. Ouviram-se dois estalos e o Estanqueiro lá volta para a sala, mais encarnado que tomate coração de boi, envergonhado e a vociferar baixinho. Um quadro digno de Van Gogh!
Não há dúvida de que são as emoções que nos comandam e determinam a nossas reacções.
Há mesmo alguns autores que defendem que nós temos mais do que uma personalidade. Talvez seja por isso que não é pacífico defender se os diferentes Pessoas são heterónimos, ortónimos ou até pseudónimos. Se bem que não venha aqui ao caso tratar esta temática em profundidade, não deixa de ser relevante que, em regra, quase toda a gente afirma que encontra diferenças entre o que é e o que gostava de ser. Há sempre ícones que são directrizes e cuja imitação se torna para o ser humano um desiderato sempre incumprido mas sempre referencial: ser inocente como uma criança, ser puro como Cristo, ser futebolista como Eusébio, ser cantor como Springsteen, ser engatatão como Casanova, ser inteligente como Einstein, ser revolucionário como Mandela ou Gandhi, sei lá... ser como o ídolo. Sempre vos digo que a palavra "IDOLO" vem do grego e significa na sua origem, EIDOLON - aquele desvelo que Heidegger sempre propunha para entendermos o que as palavras querem dizer,- significa, dizia, sombra, imagem, parecença. Não está longe, se repararmos bem, de uma outra, EIDOS cujo significado não é outro senão IDEIA. As ideias são assim, algo que ainda não existe materialmente mas cuja realidade é indiscutível, pois é em função dos nossos IDEAIS que pautamos grande parte da nossa vida. Desde cedo se defendeu que o ser humano é um insatisfeito e que sempre pugnou por se transcender a si mesmo num incontido desejo de ir mais além. Foi este apego à descoberta, à novidade, à ruptura com o estabelecido que fez andar a humanidade e nos possibilita um progresso cada vez mais acelerado, a ponto de o presente passar num ápice a pré história. Há sempre um diferencial entre o que somos e o que gostaríamos de ser ou ter sido, entre o que temos e o que gostávamos de ter. Por isso labutamos na vida, projectando sempre, antecipando o futuro, querendo mais do que o que podemos.
Deixamo-nos continuamente ofuscar, deslumbrar , extasiar com os nossos almejos que não reparamos na realidade à nossa frente e, por isso, perdemos inúmeras oportunidades de sermos muito mais do que somos porque queremos demais. Somos mesmo uns babancas.Tão espertos queremos ser e tão pavões nos avaliamos que deixamos que nos comam as papas na cabeça e nos façam o ninho atrás da orelha, só porque, distraídos com o enorme, esquecemos de reparar no pequeno pormenor que faria toda a diferença. É o absurdo humano.
Que me lembre, não foram muitos os movimentos de massas na aldeia xêndrica: a tomada de assalto das escolas primárias devolutas, as"guerras para decidir da manutenção da fonte na Lameira, do atascamento do Poço Novo, do estabelecimento do horário de trabalho e da jorna para os trabalhadores agrários, a defesa da igualdade de salário entre homens e mulheres nos trabalhos agrícolas e pouco mais. Fiz parte de algumas destas movimentações e contribuí para muitas das conquista de então. Adiante.
Foi depois de uma dessas acções colectivas, chamadas de movimentos de massas, que se chega a mim o Estanqueiro, nessa altura já GNR em Medelim e me pergunta: "Sabes qual é o mais belo movimento feminino, oh rapa a unha?» E eu: "É o movimento pela emancipação da mulher!" e o Estanqueiro: "O mais belo movimento feminino é o da anca! És mesmo um babanca!"
XXXXXXXXXIIIIIIIIIIII GRRRRRRRAAAAAAAAAAAANNNNNNNDDDDDDDDDEE
1 comentário:
A qualidade mantem-se!!!
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