sexta-feira, dezembro 30, 2005

A NOSSA COMEDURA - III - BACALHAU À ALMA DUM RAIO

Tempos dum raio aqueles: uma pessoa levantava-se - NO VERÃO - noite escura, breu como alcatrão, acendia-se o lume para a cozedura do malhinho (feijão frade) , aguado quanto bastasse que o caminho era ainda longo e não se compadecia com os gases intestinais. O caminho era para andar em rancho," c'ossenão!": se queres ver o teu companheiro a andar, põe-te a cagar!
Assim fui eu, garoto ainda, mais a minha mãe - mulher ímpar, há pouco desaparecida do mundo dos conviventes, mas que perdura sempre na propagação dos que amadamente gerou e criou - caminho da serra da Raposa fazer um quinto. Aquilo era a doer! Não tanto para para mim que não entrava nas contas, e que, quando me apetecia largava o sacho da sacha (= monda) do milho, quando se aterrava por mor de , se chovesse, a água não lhe levar a terra e deixar a raíz ao sol exposta e logo secar.
Se o calor me apertava muito, vinha para a sombra dum abrinheiro de rainha Cláudia - não era grande sombra, mas sempre era melhor que a torreira do sol - , dava volta ao resto da merenda e rapava o que aparecesse.
Quando, já noite adiantada, chegávamos a casa, eu e a minha mãe, ela mais estafada do que eu, o que apetecia era um refresco de vinagre, água do cântaro e açúcar.
Tantas vezes fiz esta maravilha de gelado!
Ainda hoje gosto deste refresco. Tem é que ser com vinagre do verdadeiro! Tinto. Assim mesmo comédado.
Ora.... (e lá vem a estória... e, claro, a receita!)
Ainda muitos dos que nos lêem se hão-de lembrar que se criavam porcos para a matança no centro do povo. No ano em que o Karraio (= ingrumêncio .) nasceu - 1961, Outubro, o nosso bacorinho crescia ali no beco do Chico, numa furda, paredes meias com o velho Valente.
Minha mãe, já ia adiantada na gravidez e as ordens foram estas: " ficas cá, pedes a burra emprestada à avó, tiras o esterco ao porco e vais a descarregá-lo ao chão na leira do poço pequeno que é por causa de lá semearmos as batatas."
Pronto! fiquei e tirei o esterco.
Não penseis vós que era tarefa doce! Para um garoto espetar a forquilha no feto, cardido e cardado pelo patear do roncador, e acertar nas angarelas, era aventura hercúlea!
Não me levantei para as migas do feijão pequeno, mas foi pouco depois. Três vezes fui com a burra a descarregar o esterco!
Eram para aí obra das cinco da tarde quando desaguei a burra, a meti no palheiro e me fui lavar debaixo do caldeiro com um funil invertido, furado à laia de chuveiro, coisa que era um luxo para a época! Lavava o cabelo com petróleo para evitar o piolho e ficar reluzente. Até alumiava!
Disse cá para mim:" vou-me a fazer um refresco de vinagre e espeto-lhe uma sorna das valentes!". esta era a ideia...
Quando chego ao pé do fogão vejo umas aparas( Pelharancas) de bacalhau na água a dessalgar!
Tiro de cabeça!:
1 - cozem-se uns quantos olhos de couve da branca, sem sal
2 - enquanto a couve ferve, estalam-se uns valentes dentes de alho numa sertã funda
3 - Quando tiverem estalado tiro-os e boto para o mesmo azeite uma cebola às rodelas e deixo alourar bem
4 - tiro a pele e as espinhas ao bacalhau, lasco-o grosso e deito para a cebola já dourada. Abafo!
5 - abaixo lume e deixo cozer lentamente
6 - escorro as couves, espalho maneirinhas, a fim de perder mais depressa a água e arrefecer um chisco
7 - confirmo se o bacalhau já se tomou do azeite assim comédado. Envolvo bem.
8 - deito o alho que fora retirado, avivo o lume, deito os olhinhos da couve e mexo com a colher de pau.
9 - Tapo bem aí obra duns cinco minutos. Torno a envolver e abafo.
10 - salpico com vinagre do verdadeiro, deixo suar!
11 - papo tudo e arroto!

PS. - para quem quiser, pode, na altura em que deita o bacalhau para a cebola a aloirar, juntar umas batatinhas cortadas largas, às rodelas. Só depois de quase semi fritas /cozidas, deve acrescentar os olhos da couve.

Só vos digo: é a oitava maravilha do mundo!

Minha mãe é que não gostou muito desta minha desenvoltura, e : Ah!ALMA DUM RAIO!

domingo, dezembro 25, 2005

A NOSSA FALA - XL - ABOBRINHO

Dantes havia muitas eiras por essa aldeia e campos fora.
De luxo, era a da ti Natividade, ali mesmo atrás da igreja: toda em lage, com guardas inclinadas, também em cantaria, com uma área para aí de 80 metros quadrados. Mas, havia muitas outras: no ti Mné Guerra, no Césaro, no velho Cavalheiro e uma também bem jeitosa ali para o chão do Robalo onde vivia quase meia aldeia nos tempos idos: zé padre, tonho troncho, ambrósios, feijão, césaros, sabão, potes, menina aguércia, e logo depois, puta maluca, passa culpas, abades, rainhos, ferrenho - já a dar para o bacharel- . Viam-se todos nas matanças e, claro, nas malhas. A semente juntava-se numa eira, onde o acesso da malhadeira, que, ao tempo, tinha rodas de ferro e era traccionada por um tractor, não fosse muito complicado. Isto, quando havia quantidade que justificasse a máquina, como lhe chamavam, porque, muitas vezes, a malha era a mangoal e o mandador era, quase sempre, o padre zé.
Engraçado foi uma vez o professor Leitão que quis pôr uma mota velha a fazer andar a máquina... Faz lembrar a história do S. Luís nos Escalos de Baixo: num ano em que não chovia tiraram o Santo da capela e fizeram-lhe uma procissão a ver se as núvens apareciam. A procissão acabou mas a água não chegou. Vai daí, o papa-arroz sai-se com esta: ' se o santo não nos dá água, damos-lha nós a ele'. e ala! : tiraram o santo do andor e aventaram com ele para dentro do poço, ali pertinho da capela. E não é que depois começou a chover?!!!.
O mesmo com o professor Leitão: a mota não fez andar a malhadeira e, de castigo, levou-a para o poço que tinha no chão colado à ribeira, ali mesmo, pegado ao café do Cavalheiro, mesmo ao lado da ponte, e obrigou a mota a tirar água. Eu vi! E tirou mesmo: Fazia re(de)moinhos na pia de pedra e ainda enregueirei a água para os tomates que o professor tinha por debaixo de uma nogueira enorme que aí havia. Era habilidoso o professor Leitão. Parecia o inventor Pardal! Engenheiro era também o nosso querido Amandinho, filho do dito, que vinha todas as Segundas--Feiras a Castelo Branco, ainda a estrada era em MacAdame, no super famoso Réu-Réu-Tum-Tum, uma preciosidade duma arrastadeira, que pegava a manivela e/ou de empurrão e a canalha, entre a qual eu, subia toda para cima e aquilo não amelancava! Chegávamos a andar vinte em cima do réu réu tum.
A matrícula era AC-00-01. Nós até lhe chamávamos o Antes de Cristo por causa do AC.
Vim nele fazer o exame de admissão à Escola e ao Liceu a Castelo Branco.
Comigo, fazia exame o menino Zequinha, filho único do sr. Barbas, que tinha um armazém de solas e cabedais ali junto à Sé. Quando me viu tão cedo, antes da chegada da camioneta da carreira, perguntou-me como tinha ido: «vim no réu réu tum tum»."Isso o que é"? «É um carro antigo com eixos de pau»."tu és maluco! agora eixos de pau!" «É verdade!». Fizemos o exame escrito e antes de ir para o almoço diz-me o Zequinha: "onde é que está o carro"? Levei-o lá. Deitou-se no chão a apalpar o eixo, chegando mesmo a raspar com uma latinha: "puto de merda! bem me enganaste: os eixos são de ferro!" e eu: « não, não são! parecem! São de pau-ferro que vem do Brasil». O Zequinha foi para casa com esta e foi o fim da tourada.
Bem, mas o que nos trazia aqui é o abobrinho.
Passou-se (ou não, que interessa?) na eira do choupa, para os lados dos pinheiros: Julho no fim, calor de assar tordos ao meio dia.
Puta Maluca, Passa Culpas, Aguércia, velho Comandante (há quanto tempo não aparecia o meu velho avô!), Rainho, Bombo, Ambrósio, Proença, e, claro, o Choupa, tinham todos a semente, dum lado e do outro da eira, para a máquina entrar no meio das duas medas e a malha acontecer nos primeiros dias de Agosto. Era regra que ao S. Bartolomeu já tudo devia estar bem acadajado e era preciso pagar a côngrua ao sr. prior e a poia pelas barbas ao patanisca.
Era para ser!
Então não é que a 28 ( ou seria 29?) desse mês de Julho se alevanta um cabrão dum abobrinho que, com vento com uma força dum filho da puta, rodopiando sobre si mesmo, passa no meio das medas da semente e arranca tudo para o céu! molhos inteirinhos de semente, de grão bem grado, foram cair a mais de cem metros! Aqueles que se desprenderam dos nagalhos espalharam-se pelo astro e foi ver cair palha e mais palha por toda a zona, até mesmo na aldeia! Um prejuízo dum corno!
Tudo olhava para o céu incrédulo, inventavam-se justificações para o fenómeno, a ti Rosa Manata, fez uma reza com esconjura, em pratinho novo de esmalte, com azeite virgem e raminho de oliveira guardado, propositadamente para estas ocasiões, desde o Domingo de Ramos ; a velha Bate-Orelhas faz quatro figas atrás do cu, e o Zé Borges (figura incontornável, que um dia há-de ser visita aqui no nosso blogue) não foi de modas: «Isto foi obra dos cabrões dos espanhóis que se puseram todos ali na fronteira a assoprar para não deixarem para cá passar as núvens com água.»
Deve ser por causa disto que: "de Espanha nem bom vento, nem bom casamento".

segunda-feira, dezembro 19, 2005

A NOSSA FALA XXXIX - CAFONES

Desde garoto que simpatizo com a cooperação transfronteiriça. Do outro lado da fronteira eu via um mundo novo, uma espécie de mundo”civilizado” onde havia mais de tudo. Numa primeira fase, este tudo resumia-se a chumbo para a pressão de ar, caramelos e torrões de Alicante. Numa segunda fase o interesse estendeu-se às “chicas guapas”. Mais tarde havia de chegar à cultura propriamente dita - incluída a componente gastronómica, evidentemente -, mas só muito mais tarde.

Lembro-me de uma vez que eu, mais o Montanhaque e o Molezas, garotos ainda imberbes, fugimos aos velhos, providos de duas latas de atum, uma cebola, um saquinho de plástico com duas pitadas de sal e 5 tomates dos grandes para o almoço, e partimos de bicicleta à descoberta de Valverde del Fresno, (inconscientemente) imbuídos de espírito cooperante. O Montanhaque pedalou numa bicicleta, tipo último modelo antepassado da TT, com volante direito, o Molezas deslizou numa de corrida, levezinha como uma pena e eu, tive de me esforçar a dobrar para os acompanhar na velha pasteleira que roubei ao meu pai e que era pesada como um corno. Escusado será dizer que a amarela não foi minha, mas subi ao pódio na mesma.

Já havia Tratado de Roma, mas nada de Mercado Único, Espaço Schengen, e outras futurices. Vá lá! quer os Guardas Fiscais, quer os Carabineros não nos consideraram perigosos e deixaram-nos passar, contra entrega do Bilhete de Identidade, devolvido à volta. Não podiam eles adivinhar que o objectivo da nossa incursão em terras de Castela era mesmo o contrabando e estava relacionado com motivos “bélicos”: comprar chumbo para a pressão de ar. Para os ludibriar, acondicionariamos as caixas de chumbo junto ao pirilau, bem seguras pelas cuecas, tendo eles visto apenas os caramelos. Uma vitória estrondosa sobre as forças repressivas da liberdade de circulação de pessoas e bens, e da cooperação transfronteiriça. A preocupação no sucesso da missão impediu-nos de pedir um golo de água às autoridades, apesar da sede que nos matava. Daí que logo que saímos da sua vista, atirámo-nos ao primeiro poço que descobrimos. Era estreitinho, não havia burra (picota, cegonha) e a água estava a 1 metro da borda. Valeu uma lata de salsichas velha e dois atacadores atados um ao outro. Confirmada a potabilidade da água segundo o método do cuspo – cuspia-se para a água, se a saliva dispersava, era boa, se permanecia junta, não convinha beber), bebemos sofregamente, não nos importando nada com a cobra que correu a esconder-se no fundo quando nos sentiu.

Dois ou três anos mais tarde, haveria de ser em Valverde del Fresno que eu entraria, pela vez primeira, numa discoteca, daquelas comédado, globo espelhado no centro da pista de dança, música muito alta, fumos, jogos de luzes e... chicas guapissimas. Encostado ao balcão, com ar displicente e uma Aguilla na mão, ninguém desconfiou. O ar do rapaz era o de tipo batido naqueles ambientes. O único problema que havia tinha a ver com o horário de funcionamento da fronteira. Como encerrava entre a meia noite e as 8 da manhã, ou os cooperantes portugueses abandonavam o barulho das luzes por volta das 11 e meia da noite para estarem no rio torto um minuto antes da meia noite – o que, convenhamos, não dava jeito nenhum, sobretudo se a chica guapa também estava interessada na cooperação transfronteiriça – ou, então, só de manhã é que se poderia voltar a pisar território luso. Naquele tempo, sem telemóveis com roaming activado, a maioria dos pais portugueses não compreendiam o alcance da cooperação transfronteiriça.

E eu simpatizava mesmo muito com essa coisa da cooperação transfronteiriça. E tinha pena do meu avô, cuja experiência era bem mais dura do que a minha. “Naquele tempo”, repetia ele, “conhecia eu melhor os caminhos para a Espanha de noite do que agora os conheço de dia”. As histórias dele, no que toca ao tema da cooperação transfronteiriça, eram todas de contrabando, sempre à volta de carregos pesados, de café, sapatos, borracha, de andar toda a noite, à chuva e ao frio, sempre a fugir aos carabineros e aos guardas fiscais que lhes podiam confiscar a mercadoria ,etc, ou seja, a cooperação transfronteiriça do meu avô não incluía nem caramelos nem discotecas, muito menos chicas guapas. Felizmente, as coisas evoluem.

Pioneira nesta modalidade arcaica de cooperação transfronteiriça por via do contrabando era a MariPortas. Sim, uma mulher, dir-se-ia mesmo, uma mulherona. Em portunhol precisar-se-ia: uma mulher de CAFONES. Alta, pernas ligeiramente arqueadas, voz grossa e vocabulário viril, manteve-se sempre solteira mas, consta, com experiência. MariPortas era inseparável do seu cão, apropriadamente baptizado de Fiel, que alimentava a ovos estrelados. Para além da cabrada que pastoreava, Maria Portas dedicava-se igualmente ao contrabando e fazia ver a qualquer homem, no volume e peso do carrego, no andar ligeiro e até nas artes de contornar a vigilância das autoridades. Contam-se duas peripécias.

Um dos estratagemas habitualmente utilizados pela MariPortas era aplicado quando contrabandeava calçado. A “importação” era feita em duas viagens, na primeira só entravam alpargatas do pé esquerdo, completando-se o par na segunda viagem. Na hipótese de ser apanhada numa das vezes, a preocupação de MariPortas era mínima, porque sabia que, em leilão da mercadoria apreendida, só ela poderia estar interessada em comprar 50 alpargatas, todas do mesmo pé.

Outro estratagema igualmente digno de nota, destaca-se pela simplicidade. Mari Portas vinha sempre à frente a bater terreno. Se calhava ser apanhada, coisa rara, armava um espectáculo de gritaria e correria por entre codeços, estevas e azinheiras, obrigando os guardiões da fronteira a mobilizarem-se todos para a encurralarem e confiscarem o carrego. Enquanto ela jogava ao esconder e achar com os guardas fiscais, o grupo que trazia a soldo rodeava o perímetro e escapulia-se em segurança. E que trazia o carrego da MariPortas? Palha.

Esta mulher era de CAFONES.

quinta-feira, dezembro 15, 2005

A NOSSA COMEDURA - II - ARROZ DO OSSO DA SUÃ

Expliquemo-nos: o osso da suã é a quilha do peito de sua exª, a bacoreza. Quem já abriu um porco não tem dúvidas sobre a sua localização, quem já assistiu a uma abertura, quando por exemplo segura numa parte do tabuleiro para aparar as tripas, facilmente o situa, mas quem não teve estes privilégios precisa de saber o que seja este osso da suã. Não é raro que a malta lhe chame: osso da sevã. Se é verdade a analogia,quase sempre ouvida nas matanças, e que consiste no provérbio: "mata o teu porco e conhecerás o teu corpo", se é verdade esta analogia, dizia, então o osso da suã correstonde ao nosso esterno. Pior! dizem uns. Vamos aos trocos:Já ouvistes falar da lei da simetria? Ainda pior! bradam muitos. Então é assim: os egípcios tinham uma forma característica nas suas forma pictóricas e que deixaram gravadas para a posteridade em túmulos, templos e outros locais em que apresentavam o corpo de perfil e o rosto de frente ou então o rosto de perfil e o corpo de frente. Esta é a regra. Há, no entanto, uma estátua em madeira muito famosa, chamada "O ESCRIBA",que aparece totalmente de frente numa simetria perfeita: Uma linha imaginária que passe pelo nariz, esterno e umbigo divide a imagem em duas partes simetricamente iguais. Aqui está a lei da simetria. O esterno é então aquele osso onde, à frente no nosso corpo as costels entroncam e que assim fecham a cavidade toráxica onde, contente (julgo) bate o nosso coração. Forma assim uma couraça protectora para que o músculo que faz expandir o sangue não seja facilmente agredido.
No porco passa-se o mesmo (salvo seja). Alguns ainda lhe chamam o osso do crescimento exactamente porque é um tanto cartilagíneo, isto é, é menos rijo que os outros ossos das costelas a ponto de, com um pouco de força, um faca vulgar, o cortar. Quando se separa do resto das costelas, então, miga-se grosseiramente com um cutelo ou um machado.
Inicie-se agora a confecção:
Ingredientes: Osso da suã, uma cebola média finamente picada, 3/4 dentes de alho esborrachados, pimentada caseira ou, em alternativa, colorau, um chirrichichi de azeite, duas folhas de louro, arroz, de preferência vaporizado, vinho tinto de uva, água e sal se não se usar pimentada, um ramo de salsa, picante a gosto.
1- Depois de migado, melhor dito, partido aí com uns 5/6 cm de comprimento lançam-se os ossos para uma panela de ferro ou tacho também de ferro. É decisivo que seja de ferro ou, noutra boa hipótese, de barro.
2- deixe-se fritar um pouco ( cerca de 5-10 min.) na sua própria gordura, com o recipiente tapado.O lume não deve ser vivo mas também não pode ser mortiço. Convém vigiar e mexer frequentemente para não colar.
3- Deite-se a cebola picada, deixe-se esturgir um pouco e arreganhe-se com um pouco de água.
4- Quando a cebola estiver bem lourinha, deite-se a salsa mais o alho, o louro, mais um pouco de água e aguarde-se que quase evapore
5-Acrescente-se o vinho; envolva-se bem e deixe puxar um pouco. Verifique se a carne está quase comestível por forma a que quando o arroz cozer ela esteja macia
6 - deite-se a água a ferver necessária para o arroz, ( se usar arroz vaporizado, que indubitavelmente é o indicado, duas vezes e um quarto, chega) o picante se gostar, tempere agora com o azeite -pouco- e o colorau se não usou pimentada. Rectifique temperos.
7- deite-se finalmente o arroz; dê uma boa mexidela e deixe cozer.
8-passados 8 a 10 min., depois de ter levantado fervura, confira-se o paladar, teste-se o arroz a ver se já abriu; se não, aguarde-se mais um pouco, sempre com o recipiente tapado.
9- Deite-se para o recipiente onde se vai servir e ponha-se de imediato na mesa de forma que ainda quase borbulhe. O arroz tem que vir soltinho mas sem ser escorregadio (malandro)
10-quem quiser, pode facultar coentros picados que cada comensal usará como lhe aprouver.
NB. - Pode, nesta confecção de prato, juntar-se o coração migado em cubos. Faz um bom conjunto.
Sempre vos digo que se sair simétrico ao que eu faço, a malta lambe tudo até ao fim.

sexta-feira, dezembro 09, 2005

A NOSSA FALA XXXVIII - F(E)CÁ !

Júlio Aspirante ou também Julho Casqueiro, levantava-se à hora de almoço. Quando os outros vinham para casa almoçar, estava Julho a chegar a parelha de burros ao carro, sempre armado de fueiros. Nazaré, sua mulher, andava sempre a duzentos à hora e, se não trazia o cântaro da água à cabeça, certo e sabido que na molídia pousava um caldeiro para o qual apanhava à mão todos os cagalhões de burro que ficassen caídos na estrada:'que eram para os alfobres,'dizia. Duma vez tinham dois porcos a criar. Um era o da matança da casa e outro queriam vendê-lo. Assim, num segundo Sábado de Dezembro - faz agora anos - por esse meio-dia, Nazaré, à frente, com caldeirinho de lata com meia dúzia de grãos de milho e 10 bolotas e Júlio atrás do porquinho, preso com um baraço a uma pata traseira, de giesta na mão - a qual acenava para orientar a caminhada do porco para um lado ou para outro - saem do portão do quintal para ir à lameira tentar vender a nalguda.
Arranca Nazaré abanando o caldeirinho para meter barulho com o milho e com as bolotas: Fcá!,Fcá! Fcá! . E Julho :" rais a palissem, anda lá bonita, anda nalguda! e a porca: "Ronron,ronronronron", bem, uma orquestra afinada. Fcá,fcá,fcá, nalgudanalgudanalguda, ronc,ronc ronc: experimentai fazer tudo ao mesmo tempo e vereis a beleza da orquestração.
O animal sai bem e abanando a nalga lá ia estrada abaixo... Nisto, à curva do adro, aparece a camioneta da carreira (é a camioneta, não é o Toni Carreira) e, como é sabido, na aldeia, apesar de ser aquela que de todo o concelho mais largos tem, o povo está sempre no meio da estrada, a camioneta buzina com toda a força, que o sr. Fernando não era de modos, e "filha da puta! "grita Casqueiro ao ver a porca passar-lhe ao lado assustada com o som da buzina. Julho puxa o baraço mas o cordel rebentou. Nazaré, aflita, corre para a frente da porca e, ao querer fazer mais barulho com os ingredientes do caldeiro, aventou-os e a porca foi rapar para a valeta um resto de erva, mas já ia quase àquilo do velho argentino onde é agora o Branquinho. Julho vai por outro nagalho, Nazaré apanha as bolotas e os bagos do milho e o povo, solidário, habituado que está a estas peripécias, abre os braços e vai enxotando a porca para baixo outra vez na direcção da lameira. Nazaré e Julho praguejam à porfia e com uma cordita de nylon lá vai ele tentar laçar a pata da nalguda.
É preciso dizer que não indo os dois com fato de ver a Deus, enfim, lá levavam uma roupita mais coisa e tal, que sempre iam ao mercado, não é verdade?
A custo Nazaré põe o caldeirinho com a bolota na frente do focinho da nalguda e Julho lá consegue de novo atar a baraça à pata da porca.
Entre praguejos e comentários: «vá lá, vá lá, mesmo assim o homem teve sorte. A porca era mansa! vá lá,vá lá!» ...É neste entrementes que a porca unta o fatinho de Julho Aspirante: " só me faltava mais esta! puta da porca agora cagou-me a farda! raispartamnodiabo! Nazaré ficou para morrer:« já passa da uma e nós aqui. Ainda por cima agora o meu Julho tem que ir mudar de farda. Atão mas há-de vestir o quê? O que está na arca está tudo amarfanhado e outra roupa capaz não tem!» Raisparatamnodiabo! Lá vai ficar a porca mais um mês na furda.»
Nosso Fernando tinha acabado de cortar o cabelo ao chicó-rela e deita os olhos à porca: " eh! Nazarée! nem penses ir a vender a porca hoje ao mercado:« À uma já vais tarde, e à outra ela está barronda. Ninguém ta quer assim. » Nazaré pôs-se logo a fazer contas: " o nosso mercado de Janeiro calha cedo, vá lá vá lá! assim não passam as quatro luas para estar barronda outra vez". Vai logo Nosso Mnel: "porque é que a não chegas? Lévasa ali ao barraco do jaimelgas e aquilo é um instante! Sempre fazes algum com ela. O que está a pedir é mesmo um salto do barraco do Jaimelgas. É mau filho de puta: o gajo chega ao cimo das giestas e chama-o: barraco!barraco! no sei donde é que o cabrão aparece, mas logo se chega a nós a roncar. oh filho do diabo! a porca no sou eu!vai-te lá encostar a quem te fez as orelhas.´Digo-to eu, é mau filho de puta o barraco do jaimelgas. Leva cinquenta paus pelo salto mas aquilo vale a pena. Não falha e se falhar para o mês que vem tornas lá, o porco goza e não pagas nada ao jaimelgas. " E a Nazaré chorosa: "e onde é que tenho os cinquenta mil réis. Ia agora a vender a porquinha para poder comprar a farinha para amassar uns pãezinhos que nem isso há em casa pr'os meus garotos."
Aí é que ninguém apareceu para ajudar a Nazaré e mais o Julho!
Lá voltam, Nazaré , julho e a nalguda para a furda. Tocam de pôr os burros ao carro e, mesmo sem almoço, lá se vão para a Tapada, ele de vara à frente do carro e ela de caldeirinho à cabeça para ir apanhando os cagalhões de burro que fosse encontrando pelo caminho. Haveriam de trazer umas couvitas, cozê-las com um naco de toucinho do porco do ano anterior, comê-las sem pão e sem luz que não fosse a que emanava de dois toros de videira que tinham trazido e toca para a cama que debaixo das mantas está-se quente e poupa-se lenha. Os filhos ficavam ali um pouco mais até ao esmorecer completo da brasa. Depois, cama também, que descer até à Rosa só lhes traria mais frio e outro lume depois não tinham.
Eram outros natais!
Já não há F(e)cás nas aldeias, daqueles criados a vianda. Há uns suínos engordados à pressa na maioria dos casos.
Outros tempos!
Já não há Nazarés de caldeirinho com dez bolotas a meter barulho e a fazer ouvir o F(e)cá!,F(e)cá!, nem há Julhos com parelha de burros. Agora há tractores e rautau-taus, !
Outras paisagens!
Ficam-se as lembranças. É isto a eternidade. As coisas perduram enquanto as lembrarmos. A vida é a relembrança. A rememoração. Os filhos lembram os pais e estes os avós. É isto a eternidade. Não é o céu, nem o inferno nem nada. É apenas a memorização. Apenas!

quinta-feira, dezembro 08, 2005

Madeiro

Hoje apetece-me ser politicamente incorrecto.

O madeiro é das poucas “tradições”, que ainda mobilizam o povo, que acode em massa a assistir ao desfile nos dias 8 de Dezembro de todos os anos.

Em Penamacor, parece que sentem grande orgulho em ostentar o ceptro de maior madeiro do país, porque mobilizaram meia dúzia de retros, uma dúzia de tractores, uma dúzia de motoserras, para deitarem abaixo uma dúzia de sobreiras.

Nas aldeias, são um pouco mais comedidos, ficam-se pela metade.

Digo eu, sem mais rodeios:

Nos moldes actuais, é praticamente inexistente a ligação deste madeiro ao espírito religioso (e/ou até pagão) original.
Na perspectiva ecológica, é potencialmente um crime.

Sem rodeios nenhuns:

A tradição do madeiro deixou de o ser.

domingo, novembro 27, 2005

A NOSSA CRENDURA -I

Lembrei-me de trazer à mnese algumas crenças, crendices, lengas-lengas, rezas e outras tradições que o tempo vai apagando na inexorável sucessão de dias e noites. " Cada noite páre um dia" e "porque atrás de tempo, tempo vem" a verdade mesmo é que, aos poucos, algumas formas de estar e viver se vão esboroando, ruindo anacronicamente e, ao fim, desaparecendo. Não vamos ser lamechas com uma ideia de um retorno ao passado, ( o sebastianismo é tão típico português!...) mas também não vamos condenar à partida quem tal não merece. Aprendi com Sophia que o decisivo é "ter saudades do futuro" e que, ao contrário de Joaquim de Carvalho, que defende que a saudade é exclusiva do povo luso, no seu Ensaio sobre a Saudade, mais próximo fico do professor Lloyd, que vê também a saudade no gesto feliz de um cão ao abanar o rabo, qual limpa- pára- brisas em dia de chuva intensa, ao ver o dono, mesmo que seja anos passados, como o demonstra claramente o de Ulisses quando, incógnito, pretendia entrar em casa para aquilatar da fidelidade da sua Penélope, vindo da sua Odisseia.
Dizem os nossos companheiros menos novos que" o tempo tudo leva e tudo traz", o que, bem vistas as coisas, não é em absoluto verdade, porque muito do que vai nunca mais volta.
Comecemos por uma lenga lenga:

Sarra madeira
no cu do zé Peneira
lá vem o leão
c'a tranca na mão
feijões p'ra mim
cagalhões p'ra ti

ou estoutra

pipa nova, pipa velha
foi ao mar arrebentou
aqui está meus senhores
quem se cagou

prossigamos com uma oração:

nesta cama me deitei
sete anjos nela achei
três aos pés
quatro à cabeceira
Nª Srª à dianteira
Nª srª m'apareceu
e Nª srª me disse
tu drume e repousa
não tenhas medo
de nenhuma cousa


Mas... baságueda, sem estória, perdia a tarimba. Cá vai ela:
Nosso senhor encontrou-se um dia com o diabo. Rivalizavam entre si acerca de quem era o mais poderoso e o mais esperto. Iam caminhando e chegaram a um chão todo cultivado, onde reverdesciam umas batateiras de " alto lá com elas". Diz Nosso Senhor para o diabo:« Vês aqui esta magnífica plantação?» « Claro» , disse o diabo.
«Então dou-te a escolher : queres ficar com a parte de cima ou com a parte de baixo ?» O diabo vendo a viçosidade das batateiras, floridas e com muitos frutos pendentes, apressou-se: "quero por cima!", Nosso Senhor disse-lhe: «então: está bem. Quando vires que estão capazes, ceifa-as e recolhe-as que eu cá virei buscar o que ficar por debaixo da terra,.» O diabo aguardou mais uns dias, poucos- que a pressa de ganhar o cegava - e ceifou a rama da batata. Nosso Senhor passados dois dias lá apareceu e arrancou as batatas, encheu o forro e comeu durante todo o ano, enquanto o diabo via as folhas a murcharem e os frutos a não ter qualquer utilidade.
Furioso dirige-se a Nº Senhor: "Tu já sabias. Tens que me conceder a desforra. " Nosso Senhor pediu-lhe que escolhesse o que quisesse. O diabo encontrou uma seara já com as espigas pendentes. Disse então: "Vamos apostar sobre esta seara." Nosso Senhor lá o convenceu a esperar um pouco até que acabasse de comer e dirigiram-se para a seara. Chegados ao sítio de onde a seara proporcionava melhor vista - o chamado PENEDO GORDO - o diabo propôs:" vês esta seara? Eu agora quero ficar com a parte de baixo". Nº senhor concordou. Quando o grão já estava grado e bem sazonado, Nº senhor ceifou, levou para a eira, malhou e arrecadou. O diabo esperou mais uns tempos convencido como estava que o fruto agora iria engrossar ainda mais e por fim decidiu-se a arrancar o restolho. Constatou que mais uma vez se tinha enganado. Como não tinha vergonha nenhuma e perder era o que menos queria - a vaidade emerge sempre -,voltou junto de Nº Senhor: "Até aqui foi a brincar, mas a partir de agora é que vai ser a sério. Quem ganhar desta vez é o melhor de nós dois". Nº Senhor, impávido: « escolhe o que quiseres" . O diabo esperou que as árvores florissem, e:" O que primeiro comer um fruto de árvore é o melhor"! As amendoeiras estavam todas floridas, naquele espectáculo magnífico que conhecemos e, logo o diabo: "quero ficar com o fruto daquela árvore" . Nosso Senhor: «Pronto, de acordo»!
O diabo, para aparecer logo com o primeiro fruto e poder cantar vitória, montou cama debaixo da amendoeira e nem de lá saía. Só que, entretanto, Nosso Senhor foi comendo nêsperas, macãs, pêras e o que mais de fruta havia e até oferecia ao diabo, que raivoso, roía as unhas até ao fundo do dedo.
E, já agora, ficais a saber que para sacar carapetos de silva do calcanhar , o melhor que há é unto sem sal. O unto sem sal é enxúdia de galinha doméstica guardado em papel de cartuxo em buraca onde rato não entre.
Para tirar espinhas de chicharro espetadas na garganta, nada que chega a papas de linhaça a ferver onde a pessoa se senta e ao gritar por causa da escaldadela, expulsa a espinha. Outro dia logo vos conto esta história...

quinta-feira, novembro 24, 2005

A NOSSA FALA XXXVII - GIRALDINHA ou GERALDINHA

Riconho era maluco pelos Rolling Stones. Mas não só: adorava uma cantora francesa de nome Sheila.Uma senhora febra! Riconho não se cansava de olhar para a capa do disco onde ela aparecia em todo o esplendor dos seus cabelos negros compridos e uma pele morena de revirar os olhos. Riconho tentava cantar ao desafio com Sheila: Écoute ce disque /et il te dira/que l'amour existe/et je pense à toi./Écoute ce disque/et tu comprendras/que l'amour existe/car je pense à toi. De polaina na mão, enquanto afagava os aros de uma porta - Riconho é carpinteiro - o gira discos passava a Sheila e Riconho arramalhava no seu francês de orelha: Écoute ce disque...
Paralelo no apreço por Mick Jagger e Keith Richard, só mesmo o camarada Licas e Chibeto. Licas acima de todos com o indispensável: «I can get(no) satisfaction.»Impagável o prazer de ouvir Licas a cantar e a dançar este monumento musical. Havia outros artistas na aldeia que um dia poderão vir à liça...
Riconho tinha uma bicicleta que partilhava com 'o nosso Mário'. Aos Domingos um e outro rivalizavam no cabelo com Brylcream e cabelo à Elvis. Apareciam no adro por essas 11 horas. Aí começavam as histórias e a disputa pela liderança da conversa. Engraçado é que nessa altura se tratavam por VOCÊ:
«Cale-se, você é um abre-nó! Errar uma perdiz daquelas que quase lhe cagava na cabeça!!» dizia Riconho;' Nosso Mário não se ficava atrás:"Atão e você?! sentado no barroquinho do Rela, a lebre a dormir-lhe aos pés, armado em otário, vai lá com um gravato a enxotá-la, grita Hei!, manda-lhe dois foguetes e nada! se eu lá não estivesse para a ardulhar, você via-a mas é ir embora! você é um azelha!" Era um prazer apichá-los e nisso tanto eu como Coiote Pete éramos exímios. Era mesmo um gozo!
A malta juntava-se e era risada de arrebentar até ao santo sacrifício da saída da missa. Nessa altura miravam-se as 'chicas' e toca para o almoço.
Invariavelmente Riconho alugava o táxi do Fatela e ia para a giraldinha! (ou geraldinha)
Duma vez foi com toco jabão à Covilhã ver um filme com música dos Rolling Stones, feito num espectáculo ao vivo em Los Angeles e onde ocorreram alguns assassinatos. Tinham sido os Black Angels da segurança privada dos Stones... Riconho que teve que pagar o bilhete ao Tonho Fatela, Tôco, fora o táxi vem pior que estragado:" ganda porcaria de filme! nem uma puta de uma cena erótica, nem uma boa tranca de mulher".
Quase ia perdendo o gosto pelos Ralingstanes, como ele dizia. Pela Sheila é que ele nunca perdeu o gosto: Écoute ce disque....
Outra amiga da giraldinha era Maria Bila. Ia a tudo quanto era excursão: Sra do Incenso, Sra do Bom Sucesso, Santa Luzia, Senhora de Fátima, Santa Maria Adelaide, e o que mais houvesse, Nazaré, Óbidos ou Peniche, Viana do Castelo, Serra da Estrela, tudo. Queria ir sempre nos lugares da frente, e era engraçada quando se apresentava, toda equipada, para mais uma corrida uma viagem: saia comprida reluzente de nódoas, ensebada a ponto de ser impermeável e blusa de chita de manga comprida com três botões no punho, bem vincada, aí com umas quatro linhas de ferro de engomar, boné a preto e branco na pála, escurecido como fora de tanto o pôr e tirar, alpergatas espanholas, que permitiam vislumbrar uns tornozelos encardidos com samarras de negridão, impenetráveis a qualquer doença que pretendesse invadi-la de fora, bolsa de merenda que mais parecia alforge de besta e, claro, uma cabaça de vinho a tiracolo cruzada no ombro por um baraço cuja cor não aparece em nenhum catálogo cromático. Um verdadeiro asseio, esta ti Maribila.
À hora de comer lá puxava ela da sua bolsa e depois de abrir o nagalho que a fechava, metia a mão e sacava-a com um bolo de leite, um pastel de bacalhau, três ou quatro azeitonas, uma talhadita de queijo, punha tudo no colo da saia e: "Eh! cachopos e cachopas, querendens provar da mnha merenda?" Logo uma a repreendia:«rais ta parta Maria. Atão tu misturas tudo dentro da bolsa? olha pra isso,tudo misturado umas coisas com as outras! Aí é que está um preparo! rais ta partissem.» e ela: «Atão?! Cá dentro não há prateleiras, cá fora escusa de as haver» e Eu: "MAINADA"!
Era trabalhada para voltinha esta ti Maribila. Pouco faltava para quase andar tanto na giraldinha como o nosso Riconho.
O pai, o ti Domingos, já desdentado com o queixal de baixo quase a comer o nariz, tanoeiro, punha aduela em pipo, martelava aro, compunha tampo, estancava fenda, bem lhe dizia: «eu no sei que vida há-de ser a tua ...sempre na giraldinha...

sexta-feira, novembro 18, 2005

A NOSSA COMEDURA -I - A MELOREJA

Iniciamos aqui um entremeado na nossa faladura. O homem nem vive só de pão nem só de palavras. Se o pão for bem acompanhado sabe melhor. Embora o povo na sua filosofia bruta diga quando algo lhe ocorre contra os seus desejos que "mais vale pão seco do que tal conduto", bom, bom,é que o pão e o conduto sejam aprazíveis ao paladar e que a sua degustação não sofra quaisquer contratempos. «Que vos faça bom proveito à barriga e ao peito são as contas que eu lhe deito.»
Nesta altura do ano começam as matanças e nada melhor para ensaiar a nossa comedura do que uma boa meloreja. Assim comédado!
A matança tem regras:
1- Determina-se o dia da matança
2- Convidam-se os amigos/familiares e verifica-se se não há empanques por parte de ninguém.
3-Na noite do dia anterior a vítima fica sem comer, por mor de não ter a tripa cheia ao outro dia.
4-Trata-se de preparar todo o apoio logístico: tripa, laranja, algodão, cominhos, tesouras e facas, loiça adequada, lenha com fartura, alho sal, pimentão do bom, azeite do melhor, tábuas de migar a carne, tabuleiro para as tripas ou até alguma carne, aventais...
5- Cedinho, por essas sete ou antes chegam-se os homens junto ao local da matança
6-O lume já está aceso e um pucheiro com aguardente desmanchada com água e açúcar amarelo já começa a circular para matar o bicho, metem-se as botas na ala, esfregam-se as mãos e
7- Prepara-se uma corda para atar o animal por uma pata
8 - O dono salta para a furda e "nalguda! oh nalguda!!" coça-lhe o samarro e tenta por bons modos enfiar a laçada da corda numa das patas traseiras do bicho
9 - A bem ou a mal o porco/a lá deixa os aposentos e é conduzido até junto da banca
10- Tomba-se o animal, o matador aperta-lhe o focinho com um baraço, sobe-se para banca,lava-se a barbela com água quente, limpa- se com um pano, ata- -se bem à banca quando não até a uma árvore que esteja perto,os homens põem-se a postos um agarrados aos presuntos outro às mãos, o matador faz o sinal da cruz, abre a matadeira e pica o desgraçado, aparece o alguidar com sal e uma mão sempre a mexer o sangue que cai, vão tirando algumas farropas de coalho de sangue,o porco grunhe até dar as últimas.
11- Desapertam-se cordas e baraços, vai mais uma rodada de aguardente desmanchada e doce e
12 - antigamente com colomo de palha, agora com maçarico ,chamusca-se a preceito evitando queimar as mãos de quem raspa. São vários os utensílios usados, desde facas velhas até chapas de lata,ou mesmo as unhas das mãos.Tiram-se as unhas ao quadrúpede e inicia-se a lavagem com água quente.
13 - Quando já branquinho de todo faz-se o cu, e o picho se for macho, ata-se com um baraço,abrem-se os nervos, mete-se o chambaril e ala
14-Pendura-se o animal,limpa-se bem limpinho
15 - Embrulha-se rapidamente uma talhada de queijo fresco e quatro azeitonas retalhadas, uma dentada de pão e limpa-se o esófago com um tinto do novo apanhado do espicho de esteva e
16 - Inicia-se a abertura do ventre, aparam-se as tripas para o tabuleiro e enquanto o matador vai separando as peças e um vai à procura de duas sovinas pra deixar as banhas suspensas, dois ou três homens deitam-se à separação das tripas, ajuizando da sua qualidade.Há sempre algodões prontos para alguma fatalidade
17 - Sobe-se o caldeiro suspenso das cadeias, põem-se as trempes do lume, a meloreja é rapidamente migada e começa a cozer dentro da caçola ou de uma sertã de duas asas; batatas com casca são postas a cozer em panela de ferro.

18 - Aí vai a receita:

deita-se para a sertã aí obra de 2dl de azeite e logo a carne, esmagam-se alhos,tiram-se-lhes os grelos e atiram-se para a sertã, vai- se mexendo com colher de pau até a carne ficar meia frita, duas folhas de loureiro bem lavadinhas,picante a gosto,pimentada caseira se houver, rega-se com água, sempre a pouco e pouco,já que carne deve ficar entre o frito e o cozido, prova-se, rectificam-se temperos, e quando estiver quase pronta, um bom meio litro de vinho tinto para a confecção mexendo sempre, tiram-se as batatas do lume, descascam-se ou pelam-se, chama-se o povo para a mesa, despeja-se a sertã para um barranhão, parte-se pão com fartura põem-se as batatas em travessa e, cada um com seu garfo,pica na carne e molha a batata no molho e toca a comer. Não raro aparece um esparregado de nabo para dar o verde ao prato.O vinho é sempre a encher até o barranhão ficar limpo.
A seguir pode-se alindar esta classe de cozinhado com um prato de sopa de couve traçada e massa da grossa em puré de feijão encarnado, um arrozinho de osso da suã, fígado e soventre, sempre com azeitona retalhada e culmina com um galo ou um coelho bem guizado. Para sobremesa um arroz doce, pudim de ovos, tigeladas, e no fim um café e um bagaço do rijo para arrebater.
Às 11 os homens estão despachados e bem comidos e "ala para o sol".

quarta-feira, novembro 16, 2005

A NOSSA FALA XXXVI - CATANOS M'A CHAPÉREM

Ti Domingos Feduchas era um “engenhocas”. Deitava a mão a tudo: pingo em caldeiro roto, meias solas em bota gasta, remendo em agueira de telhado, enxertia de carapiteiro em pêra marmela, mergulho de videira, ilhó em cabresto, portado em capoeira, capador e matador de porcos, corte de cabelo, construção de carros de bois... Foi aliás um destes que lhe abalou a reputação: meteu-se a conceber e a construir um carro de bois dentro do palheiro, com rodas de pau revestidas a aro metálico e tudo, mas só no fim é que deu conta que não cabia na porta. O povo, quando soube, riu-se muito e, claro, teve choradela de Entrudo.

Era tempo de castanhas e a mulher, Ti Angélica Chamiça, entretinha-se a morsegar as martainhas que tinha comprado naquela manhã, enquanto Ti Domingos ajeitava o borralho. Avaliando oportuna a hora, lançou:
- Ó Domingos, atão sempre vamos a Lesboa ao casamento da filha da afilhada ó não? Já só faltam 15 dias e temos de dar uma resposta à rapariga. Tamém parece mal no irmos no encontras tu?

Ti Domingos Feduchas era avesso a viagens. A filha que tinha na França muito insistia para ele lá ir, mas ele, "está quieto!", "vinde cá vós se querendeis". Não sentia necessidades de sair do seu mundo onde tudo dominava. Era um verdadeiro homem do campo. Bastas vezes, quando chovia, calçava as galochas, agarrava no guarda-chuva de pastor e passeava pelos campos, sem destino, só para ouvir a água a cair e sentir o cheiro da terra molhada. Ele conhecia os caminhos como ninguém, sabia de cor a quem pertenciam todos os bocadinhos. Admirava os que os apresentavam arranjadinhos, reprovava o desleixo e o abandono. Claro que nenhum se comparava ao seu chão da quelha funda, à sua vinha da raivosa ou à sua horta na saramaga. As suas oliveiras e árvores de fruto apresentavam-se sempre devidamente limpas, a vinha exemplarmente podada e escavachada, a horta alinhada a régua e esquadro, com a ajuda de dois ferros e um baraço. Na agricultura, mandava ele hóstias. E no resto, que viesse o primeiro, mesmo apesar da história do carro de bois. Agora, tinha de ir a Lisboa, “rai's parta o diabo”. O vivo ficava entregue ao irmão, ficava bem entregue.

No dia anterior à partida, deu uma volta por todos os prédios, inspeccionando tudo demoradamente, como se se despedisse deles por muito tempo. Ti Angélica passou o dia atarefada a encher 4 cestos de verga com repolhos coração de boi, azeitonas carrasquenhas retalhadas, adoçadas à pressa à custa de uns escaldões, queijos de cabra, enchidos vários saídos do azeite, garrafas de jeropiga, figos secos, nozes, frascos de tomatada e de pimentada, malgas de marmelada nova, alhos, cebolas, ovos, pão e bicas de azeite cozidas no forno das traseiras. Já noitinha, ao Ti Domingos coube coser a serapilheira que tapava os cestos com guita e agulha de albardeiro. Foi nessa altura que Ti Angélica se lembrou que não sabiam a hora da camioneta. Aflita, corre Lagariça abaixo, sem mesmo se assustar com a botelha em forma de cara e uma vela acesa lá dentro que os garotos tinham pendurado numa oliveira. Estava tudo escuro e silencioso, mas ela não deixou de bater enquanto não lhe responderam do lado de dentro.
- Ó Rosa, atão a qu' horas é que passa a camineta das seis pa CastéBranco?

Como era de prever, Ti Domingos não se deu muito bem na capital da Nação, encafuado nas 4 assoalhadas do 10º andar frente, onde a afilhada morava em Odivelas. Custaram-lhe a passar aqueles 4 dias.
Na última noite, à ceia, descaiu-se para o afilhado que nunca tinha visto o mar. No dia seguinte, cedinho, foi conduzido ao Guincho. Embasbacado perante a imensidão, Ti Domingos Feduchas, homem simples, homem do rural profundo, soltou:
- CATANOS M'A CHAPÉREM! Já tinha ouvisto dezer qu’era grande, mas no fiz que fosse tanto.
O afilhado ficou-se de lado a apreciar, divertido, a expressão de espanto do padrinho, por isso não estava à espera que mesmo ali Ti Domingos Feduchas fizesse a sua análise de “engenheiro”:
- Ó Chico, o mar é bonito é poi! E grande com’á puta qu’o pariu…mas, o qu´ê gostava de ver era o paredão que aguenta tanta água.

quarta-feira, novembro 09, 2005

A NOSSA FALA XXXV - ÃIÃ

O café da Rosa é uma instituição. É ela a única que ainda mantém a traça original. Havia outros, mas a gadanha da morte já os ceifou : O Fatela, onde por estes tempos de chuva se jogava o fito e a raioula, o Chico Miguel, com talho ao lado e pocinho estreito e fundo com cesta presa por corda onde se refrescavam sumos cerveja e vinho ao natural - uma delícia -, O Zé Rolo, onde a Ti Maria Labouxa fazia jeropiga com laranjada Prazeres, açúcar amarelo e groselha, - uma purga - , o Zé Júlio com loja atrás para a troca dos taleigos e o Zé Cavalheiro que todas as semanas ia a Penamacor buscar a mistela para conceber um vinho branco que era a causa de muitas caganeiras do povo. Vá lá que a ribeira estava perto....
A Rosa também não foi sempre assim: Quando o Zé Augusto e a Rosa juntaram os trapinhos aquilo era uma casa em derrocada mais parecendo um palheiro. Ainda ajudei a subir as vigas lá para cima. Havia uma divisória que primeiro serviu de barbearia - o Zé Augusto foi ainda barbeiro - e depois funcionava como tasca com mesa de matraquilhos onde Tonho Branquinho, para além de se ufanar das suas capacidades pedreirísticas arreliava tudo e todos com os seus golos à cagadinha. A Rosa arranjava por lá uns petiscos de se lhe tirar o chapéu: lebres com couve, coelho bravo com batata cozida, meloreja, nacos de carne na caçola com entremeada e entrecosto à mistura e colorau com fartura, rolas estufadas, perdiz guizada, e o que mais houvesse! Eram poucos os dias em que, de Verão, eu jantava em casa.
Podia trazer aqui muitas histórias que se passaram dum e doutro lado do café/tasca da Rosa. Aí vai uma: Certa vez, um sábado, era para aí meio da manhã, um viajante todo bem posto entra na Rosa e« arranje-me um garoto se faz favor». A Rosa saíu, demorou-se um instante e sai-se com esta:« Desculpe lá mas agora não há por aqui nenhum; só está ali o meu, mas está a fazer os trabalhos da escola» . O homem começou a rir, a Rosa não achou piada: " ora o filho dum filho dum filho do diabo, hein! Não queria ele agora que o meu Zé Mnel deixasse de fazer as coisas da escola para o vir a aturar! Não queria ele mainada! Era só o que faltava! ÃIÃ!
«É assim mesmo Rosa! Uma mulher quer-se com génio! » diz o Tonho Pedro, alfaiate, que àquela hora já tinha enfardado aí umas dez ginjas com aguardente. «É preciso ter descaramento, um gajo que a gente não conhece a pedir para lhe arranjares um garoto! ÃIÃ! Eu mandava-o logo para a real grande puta que o pariu!»
É lugar comum dizer-se que a água lava tudo menos a má língua. Eu concordo. Só por isso, e não quero ser má língua, me atrevo a contar uma outra história ocorrida nesse fabuloso café da Rosa. Devo mesmo confessar, em abono da verdade, que em tempos não ainda muito afastados, não havia café mais saboroso que o da ti Rosa.Era um café marca ZULU. Acima de excelente. Mas como tudo o que é bom tem um fim rápido, também esse café desapareceu. Ainda bem que a Rosa não.
Aí vai a estória: a mulher do velho Melro chega ainda quase noite (embora fosse já madrugada) a casa de ter ido tratar do 'vivo' e encontra a filha Mariana toda nua na cozinha a tirar um prato de sopa da panela de ferro pendurada nas cadeias.«Atão que preparos são esses? Já não tens roupa para te vestires?» "Ai mãe, logo vossemocê apareceu; mas sabe: isto é o fato do amor!"(Esclareça-se que Mariana se tinha casado dois dias antes e por não ter ainda arrumada a casa para onde ia viver com o Amândio Solipa, tinha ficado a viver na casa da mãe, que naquele tempo não havia lua de mel).
A mulher do Melro apesar de tudo acabou por ter gostado de ter visto a filha como já havia muito não a via e até cogitou:« é jeitosa a minha filha! Não admira que dê que fazer ao Amândio!Bem bonda eu que nunca me apresentei assim ao meu Melro.»
A imagem e a frase da filha tornaram -se uma cisma para ela.Não lhe saía da cabeça aquela beleza de corpo e vieram-lhe uns apetites que há muito já não tinha e uma vontade enorme de naquela noite se encostar ao Melro que, coitado, também já tinha mudado a pena e devia ver mal que não reparava nela senão para lhe ralhar.
Rumina, rumina e decide-se.
Nessa noite a Mariana e o genro iam jantar à casa dos compadres e deviam vir tarde. O Melro andava à jorna, chegava cedo, comia alguma coisa e 'ala que se faz tarde! cama!'.
Até se arrepiava de ser capaz de fazer o que em todo o dia tinha andado a pensar.
Quando lhe pareceu que eram horas de o Melro chegar, ateou o lume, pôs lenha de calipo seca para a casa ficar bem quente e toca a despir. Só ficou com uns chanatos por mor do sobrado que lhe arreganhava a sola do pé.
O Melro chegou, subiu as escadas e dá de trombas com a mulher naqueles preparos:"tás maluca ou quê? Vai-te a vestir, dianho!Olha se por aí chega alguém! Rais a afundem!" E ela: «Sabes,Melro, hoje de manhã agarrei a nossa Mariana assim incourinha , chamei-a à atenção e ela : "ò mãe, tu não vês que isto é o fato do amor?"»Solta o Melro um som de chateado e sai-se:"Se querias apresentar o teu fato do amor devias tê-lo passado antes a ferro".
Esmoreceram os apetites da velha e só soube desabafar: ÃIÃ!

domingo, outubro 23, 2005

A NOSSA FALA XXXIV - ENGONÇO

Agora namora-se às claras. Dantes, nem pensar! O arrastamento da asa era coisa, não raro, tumultuosa: ele era o recado ao ouvido no baile da garagem do Cavalheiro, o encontro furtivo no chafariz, a piscadela de olho à saída da missa do dia, aos domingos, as combinações em carta metida no meio de livros de uma amiga confidente e concordante, um piropo recatado, mas com alguma provocação, o fazer parte do mesmo rancho no tempo da colheita da azeitona, alguns bailes particulares na garagem ou loja de uma que tivesse os pais em França e assim não haver empanques, algum magusto na encosta da serra ali para os lados do João Ratão e da Carochinha, enfim...que sei eu?

A oficialização do namoro ocorria quando o senhor prior lia os banhos do alto do altar: " D. Maria Cândida Peixota, filha de uma burra e neta de uma porca, quer contrair matrimónio com o senhor João Feijão, filho dum burro e neto dum cão. Se alguém souber de algum impedimento contra este dois animais, um leva a albarda outro leva os atafais, e é para esses que eu falo, deve declará-lo com juramento" .

Os menos atingidos pela pobreza compravam os banhos (ou pregões) e esses só tinham os editais colados com farinha amassada na porta da igreja, antes do guarda-vento. Tempos!

As primeiras amostras públicas do par de namorados, ele com uma camisa branca TV, com os punhos virados e colarinho de palmo, em bico pronunciado, um colete justo onde brilhava uma corrente que segurava no bolso pequenino um relógio marca Comboio e ela de casaco e saia beges, camisa de lantejoulas, meias de vidro cor creme e sapato também ele pardo, só depois da benção paterna. Era vê-los - estrada abaixo, estrada acima, ela com os braços cruzados, um olhar de soslaio de vez em quando e ele, corta unhas marca Trim, made in USA, girando freneticamente em torno do indicador, preso como estava a uma pequenina corrente de bolinhas e a outra mão no bolso. O sapato reluzia - . De mão dada só quando iam a casa dos padrinhos a levar o arroz doce e uma bandeja com bolos de leite, esquecidos, borrachões e uns cascuréis (=coscorões), para além de umas cavacas e um bolo de buraco, de noz ou amêndoa, não raro ainda quentinho,já quase em vésperas de casamento. Nessa altura já iam ao lusco fusco sem guarda nupcial (irmã ou irmão mais novo da noiva) e, claro, ao virar da esquina ele puxava-a e, PIMBA! espetava-lhe uma beijoca na cara. «Vê se tens modos», dizia ela.

Antes deste ponto, porém, tinha havido o clássico pedido: "ao que venho, venho, oh! que digo, digo, venho dizer à menina, se quer casar comigo". Era assim. A mãe dela era a primeira a saber das intenções do magarefe e preparava o pai: "Ó Chico, olha ca nossa Rosa quer cá trazer o Tonho da sarmaga; parece que o cachopo lhe falou bem e ela não está fora. Vê lá tu quando é que ela to pode cá trazer". E o pai «já tiraste inculcas do moço? Ele não é filho além do Faz Nada?» E a mãe: "Faz nada, não, que tem oito filhos!" E o pai: «A modos que ainda comem lá em casa em mesa de engonço e se alumeiam a candeeiro de sessenta luzes! A ti Catrina, a mãe, coitada, nunca tem nada para pôr na mesa que o Faz Nada não lhe dá troco. Tira lá isso a limpo e depois diz que pode cá vir aí no sábado à noite.» (Esclareça-se desde já: a mesa de engonço eram os joelhos e o candeeiro de sessenta luzes era uma pinha acesa).

Lá apareceu o Tonho. Bateu à porta. "Entre quem é". Descobriu-se o Tonho,subiu para a soleira da porta, uma mão no peito e a outra a segurar o chapéu: «Vossemocê dá-me licença, ti Chico? Boa Noite nos dê Deus! « "Entra lá Tonho. Podes pôr o chapéu na cabeça que o telhado não tem cocas» "Com sua licença. " «Senta-te aí nesse trapesso enquanto eu vou por uma pchorra de vinho. Não me demoro nada»

Entretanto Ti Deolinda e a Rosa chegaram. 'Boa noite' ! disseram quase em uníssono.

Tonho olhava de soslaio a Rosa, a mãe interpôs-se entre ambos, o silêncio era cemiterial.

Ti Chico surge da loja com o vinho: «Parece que meto medo! Tudo tão calado. Eh! cachopa, chega aqui dois copos e põe aí uma azeitonas, ao menos.»

A Rosa adiantou-se: "sabe, pai eu e o Tonho"...; «És tu que o pedes a ele ou é ele a ti?» Aí o Tonho afoitou-se: «Pois é, ti Chico, eu gosto da sua Rosa e, a meu ver , ela gosta de mim. Se Vossemocê não vê mal nisso eu queria-a namorar!» " Toma tento no que te digo: só tenho esta filha. Quando ela nasceu eu já sabia que não podia ficar com ela. Se ela quer ir contigo que vá, mas se algum dia a tratares mal ou a enganares e eu souber, é melhor desapareceres pra sítio onde nem o diabo te encontre. Entendeste? " «Sim senhor, ti Chico. Fique vossemocê descansado. !» "Bom: namoras às quartas e aos sábados, aqui em casa, à noite, até serem horas de cama e aos Domingos podeis passear por sítios onde toda a gente vos veja, que eu não quero cá maledicências." « Sim senhor ti Chico!»

"Bebe o copo, anda! " Tonho tremia... deu um golo no copo.

«Eu sei que sou mais pobre, já acabei a tropa e vou outra vez pra marcenaria a ver se arranjo uns patacos...»

«Isso é bom! Com o tempo logo se vê. Eu ódepoi logo vejo se merece a pena ajudar-te. Primeiro tens que saber o que custa a vida. Eu vou-me à cama. A Deolinda quando entender que vá lá a ter!»

E foi assim.

A casa da Rosa já tinha luz eléctrica. Estavam a pensar comprar uma televisão. O Tonho já a tinha visto na tropa. A Rosa fora um dia à casa do Chico Sarapião, regedor ao tempo, e toda a noite sonhou com aquilo: os retratos mexiam-se, iam e vinham, falavam como as pessoas, até parecia que era verdade!

Aquilo sim , ruminava o Tonho! não há cinza e não é preciso estar sempre a mudar de pinha como lá na casa da mãe. Não era preciso atear a ala nem acender pavio com palito feito de esteva seca, quando, às vezes, se acendia a candeia de petróleo. E a mais, não cheirava! Dizia de si para si : «ele há coisas dum filho da puta!»

Mais espantado ficou ainda quando a Rosa se levantou e foi buscar um gravador de fita: um FIDELITY, rebobinou a fita com a patilha, pressionou a alavanca de início, e, baixinho, que o ti Chico já ressonava, começaram a ouvir Joselito em : el pequeño roxinol. O Tonho não queria crer! Levantou-se a remirar.

«Ó Rosa vê lá se o teu pai ao Domingo precisar de ajuda lá na fazenda, eu não sei muito, mas vou-o a ajudar.» " Eu precuro-lhe," disse a Rosa.

Pouco mais disseram. Ali estavam a ouvir a música, a ver o lume, essa companhia muda, a olharem-se, lá sorriam um para o outro, estalava-lhes o coração, a ti Deolinda escabeceava, mas um estalo da lenha de pinho acordou-a e pronto!

«Vá, por hoje chega! vamos à deita.»

O Tonho deu as boas noites, uma manzada à Rosa e aí vem: 'Até têm uma mesa de vidro com um pé ao meio! E cadeiras de encosto! Assim não é preciso a gente estar curvada de cabeça para baixo para levar a comida da mesa de engonço até à boca. Se calhar também não comem só caldo de couves como lá na casa da minha mãe. Bem se lembrava ele da história que o abrutalhado do pai quase sempre contava: "Ó Arnaldo, queres caldo? Não que me escaldo! Eu antes queria pão, mas como o como se não mo dão?"

Eu não sabia que era assim a casa da Rosa!

O amor não aumentou, porque já não podia ser mais.

Nessa noite o Tonho, quando se espojou na enxerga de palha de milho, jurou:' Quando eu me casar com a Rosa já hei-de ter uma mesa de castanho com quatro patas e seis cadeiras de encosto e um espelho para pôr na parede! Rais ma partam se não hei-de. Não hadem fazer mangação de mim. E a canalha que eu tiver nunca há-de comer só caldo e menos ainda na mesa de engonço. Se não tiver luz eléctrica hei-de arranjar um petromax que até de noite se hadem ver as espinhas ao peixe miúdo. Olarila!

Dormiu-se assim !

sexta-feira, outubro 21, 2005

A NOSSA FALA XXXIII - CÔTCHE

A RTP andava já há uns dias a anunciar o documentário que iria passar no domingo à noite sobre Aldeia do Bispo, naquele final de Outubro de 1966. Marquei na agenda e reservei, à cautela, um canto do frigorífico para duas garrafinhas de Alvarinho, mobilizadas para acompanhar uma buchana retirada do pote do azeite, umas raspinhas de presunto da salgadeira, cortadas fininho com faca longa apropriada, umas tapas de queijo bem curado e convoquei o Changoto para se juntar a degustar os acepipes e a apreciar o dito documentário.

Quase uma hora depois da hora anunciada, de que resultou a necessidade de abrir uma terceira garrafinha, aparece o genérico do programa "Viagem à minha terra" com banda sonora dos Chieftains: flauta, violino, gaita de foles, harpa, primeiro à vez, depois todos ao mesmo tempo, a induzir a ambiência do campo e dos grandes espaços. A câmara começa por focar um cenário idílico, de campos que se pressentiam verdejantes, árvores frondosas, um pintassilgo a cruzar-se no ar com uma poupa, a harpa soava sozinha a pedir silêncio e atenção, e uma voz por cima, bem colocada e musical, começou a narrar:

“Falar da nossa aldeia, a irrequieta terra ribeirinha, menina gaiata, saltitando à borda da sua ribeira que lhe fertiliza os campos, e que outrora era muito mais larga e de corrente de água permanente, onde se pescavam saborosos barbos e bogas…”

O monitor albinegro mostrava agora uma pequena corrente de águas cristalinas a escorrer por entre os seixos, percorridas por peixinhos a “picar”. A cena passava depois sucessivamente por focar o Tzé Pragana a lavrar com a sua junta de vacas e a mulher à frente a espalhar semente, e pelo Tonho Estroncabrochas no caminho da saramaga, no seu característico andar desengonçado atrás das suas cabras, ao mesmo tempo que a voz continuava:

“Os habitantes de Aldeia do Bispo (…) vivem da agricultura e ainda, mas, em menor escala, da criação de gado. A agricultura exige trabalho, um esforço titânico para lavrar e cavar a terra, para depois lhe lançarem a semente e, mais tarde, cuidarem da nova planta que lhes há-de dar o fruto. Tudo isto, todo este trabalho ele faz com alegria. Ele sabe que é do seu trabalho, a maior parte das vezes, de rosto borbulhudo de suor, que lhe há-de vir o pão, o vestuário para si e para os seus.(…)

Aqui, obviamente, a câmara fazia um grande plano da cara do Tzé Pragana que escorria suor e que ele limpava com o lenço vermelho e pintas amarelas que trazia à volta do pescoço. O plano alargava para mostrar novamente a cena da lavra, debaixo de um sol escaldante. A câmara virou-se de seguida, lentamente, para a sombra do freixo junto do poço para mostrar a filha Etelvina que lia Os Maias, sentada na relva e o filhote, Carlos Miguel, metido dentro do tanque de granito, segurando nas mãos a pedra e o ponteiro, enquanto a voz debitava:

“Além do pão e do vestuário, é da terra, por intermédio da agricultura, que ele há-de tirar o dinheiro para a matrícula, para os livros e para a mensalidade do filho que anda nos estudos do liceu, do colégio, seminário e da Universidade”

Os herdeiros apareciam a rir. Os pais a cantar.

“Por consequência, trabalha com prazer e alegria, chegando até a cantar, atrás dos bois, ao desafio com os passarinhos.”

O plano não incluiu nenhum passarinho, mas era bonito, na mesma.

“O que dizemos do homem, podemos dizê-lo da mulher quando, nas lidas da casa ou do campo auxilia o marido no amanho da terra que lhe há-de compensar todos os seus enormes esforços. Aqui a vida de um casal e os seus filhos, é uma vida sã e patriarcal. Comem todos à mesma mesa, do mesmo pão, do mesmo caldo, do mesmo naco de chouriço, toucinho, farinheira ou morcela. (…)”

O documentário apresentava agora a cena da ceia da família Pragana. A Ti Maria estava de pé, sorridente, a entornar uma concha de caldo no prato de esmalte do Tzé, igualmente sorridente, enquanto os dois filhos brincavam com as mãos, sentados à volta de uma mesa coberta por uma toalha de linho, em banquinhos de tripé. Em cima da mesa podia ver-se um grande pão redondo, um chouriço, um naco de toucinho entremeado, uma farinheira e uma morcela, tudo ainda por estrear.

“Numa palavra, a gente da Aldeia é trabalhadora e no seu trabalho e nas suas festas encontra o bálsamo que lhe é necessário. É devota aos santos da sua devoção. Todos se estimam, mutuamente, como se fossem de uma só família, à semelhança de uma grande família patriarcal como a da antiga Lei.”

A cena mostrava agora uma festa de S. João na Lameira, rapazes e raparigas, velhos e novos, de mão dada a fazer uma roda à volta do pau com a boneca, alegremente cantando:

Indo eu, indo eu, a caminho de Viseu
Encontrei o meu amor, ai Jesus que lá vou eu
Vai de ruz truz truz, vai de ráz traz traz
Ora chega, chega, chega, ora arreda lá p'a trás

Nesta altura, deu-me para opinar:
- Que maravilha! Já viste? Aquilo é que eram tempos. O povo trabalha, o povo canta, o povo dança. Deviam ser felizes as pessoas naquele tempo...

O Changoto preparava-se para voltar a encher o copo mas interrompeu, e quando acabou de engulir, apressado, a lasca de presunto que acabara de meter à boca, olhou-me severo e disparou:

- Tás parvo ou quê? Então tu não vês que isto é um documentário de propaganda do regime? Olha bem para o vocabulário utilizado: aldeia irrequieta, menina gaiata, saltitando à borda da ribeira, trabalho e cantares ao desafio com os passarinhos, borbulhudo de suor,familia patriarcal, devoção...Está lá tudo, só falta aparecer o padre a agradecer ao Salazar por tanta felicidade. Isto é pseudo romantismo barato. Não vês que está ali a mão do António Ferro? Alguma vez aquela ribeira pode correr todo o ano e ainda por cima com peixes, saborosos barbos e bogas, diziam eles... vai lá vai! Com o clima mediterrânico que nós temos e a bacia hidrográfica da ribeira... só se fosse no período jurássico mas aí não havia barbos e bogas, se calhar havia era proto-crocodilos. E o povo? desgraçado povo, que trabalhava que nem galego, achas que ainda tinha vontade para rir e para cantorias enquanto trabalhava? Miséria e fome era o que eles tinham. E tu acreditas que naquele contexto havia tanta felicidade? Bom, se acreditas então deixa-te lá estar.

Desconcertado, tive de responder:

- CÔTCHE!

Logo a seguir, a televisão ficou só com a remanescência do Big Bang e a fazer um barulho irritante mas que me soava familiar. Levantei-me para o calar, estranhando que estivesse tudo escuro e o Changoto e as garrafinhas e o queijo e o presunto, tudo tivesse desaparecido de repente. Assarapantado, constatei que o despertador marcava 7 da manhã do dia 21 de Outubro de 2005.


Sugestão:
Clicar em Chieftains com o botão direito do rato, abrir noutra janela, voltar a esta página para uma segunda leitura com som.

Nota:
citações (em itálico) extraídas de
LANDEIRO, José Manuel (1966), Aldeia do Bispo (breve resenha monográfica).

terça-feira, outubro 18, 2005

A NOSSA FALA XXXII - IMBURRENTE

Entrávamos por trás. Nós os da primeira classe íamos a dar a volta à escola. As meninas, essas entravam pela frente: subiam as escadas,viravam à direita,subiam mais uns degraus,atingiam o alpendre e entravam na sala. A escola tinha sido mandada construir pelo pai da própria professora que assim tinha o lugar garantido. Ela e o marido. Este recebia os mais velhos.Tinha uma nespereira que dava sombra ao alpendre. Ai de quem tocasse numa nêspera! Até me lembro aqui do exponencialmente belo poema de Mário Henrique Leiria: "Uma nêspera estava numa cama. A velha chegou, viu a nêspera e comeu-a. É o que acontece às nêsperas que ficam na cama à espera do que acontece."
Bem, ... mas nós entrávamos por trás. Ficávamos na sala do meio. O professor era ele também novo: tirava o tirocínio connosco. Novos, mesmo novos, éramos vinte e oito. Depois, havia alguns repetentes:Lembro-me de dois: o tonho maregas e chquim passarinho. O maregas ainda por aí anda e ,cantoneiro, dá as curvas na mota sem virar o volante inclinando apenas o corpo. São mais que muitas as quedas do Spínola, nome por que também é conhecido. Passarinho, deixei de o ver. A avó dele era quem ia buscar os meninos ao Fundão. Lembro-me bem de quando, sempre queixosa, junto com a Rosa Rei, iam comungar e a língua dela era uma perfeita almofada de carimbo. Sempre tingida por mor das aftas, dizia. Havia ainda o Jolim da pata branca, tinha-me esquecido,vizinho do passarinho e do comandante. O pai era alfaiate. Está bem. É inspector do ministério do trabalho. Especialista em Finanças.
O professor entrou, colocou-nos nas carteiras, mas pôs logo Passarinho à frente, em frente da secretária e maregas, mesmo ao fundo, na última carteira, encostado à parede. Maregas já tinha o livro usado.O nosso até reluzia. Tinha as vogais na primeira folha: uma águia para o A, uma égua para o E, uma igreja para o I, um ovo para o O e uma uva para o U. Mascarilha repetia naquela voz grossa: A E I Ô U. Nunca lia um Ó aberto. Era sempre fechado: Ô. Jolim dizia: ó tonho, porque é que tu és sempre IMBURRENTE?. É Ó porra!, não é Ô! Mascarilha lá retornava: A E I Ô U. . . Sempre na mesma marcha. Duma vez dei-lhe uma malha junto à mimosa das escolas novas que agora já não são porque está lá a junta, tal como nas velhas parece que vai estar o centro de saúde. Se não fosse a irmã que casou com o Espeto, escarchava-lhe as ventas.
Passarinho ficou encarregado de arranjar uma vara para o senhor professor: foi roubar uma cana da Índia. O professor perguntou-lhe onda a tinha arranjado e arranjou logo sítio onde a estrear. Coitado do Passarinho: trouxe uma vara impecável e logo a provou na hora.
Eu- Rapa a unha -, coiote pete, sapo, baboso, contramestre, bolas, pito encouro, pinga, portas, filho do chico mai novo ou chiquinho, césaro, chamiço, varinha, jota na bata, planeta, zé pcanino, montes hermínios, mija a parede, domingos da portela, alguitarra, modas, mó, bugalha, cachiço, pote, barrigana, zé A, velho jonja, - julgo que os citei todos - caladinhamente dissemos: Bem feita! Não tiveras arranjado a vara.
Contramestre era também IMBURRENTE. Mais até que IMBURRENTE era ACUSA CRISTOS. Nunca estava de acordo com o que queríamos jogar no intervalo. Havia de ser sempre a ovelha ranhosa. Valia o Modas que se chegava a ele, olhava-o de frente, fechava o punho por debaixo do queixo e: ou jogas ou parto-te os cornos, meu IMBURRENTE de merda! Pronto! O modas dava no focinho a todos e o contrameste nem que fosse CONTRA riado, lá alinhava.
O alinhamento dos lugares foi sofrendo alterações sucessivas: utilizava-se a técnica dos postos militares. Cada um de nós tirava à sorte o posto: sargento, capitão, general,... A seguir começava a guerra : o do posto mais baixo desafiava o de posto mais alto e trocavam no caso de o david vencer o golias. Se quem desafiava, perdia, o ganhador tinha que lhe dar umas valentes reguadas. E não podia ser a fingir, senão o professor chegava-lhe a ele comédado. Se o desafiante ganhava, assumia o posto mais elevado e o perdedor para além de umas reguadas valentes, ainda aturava o chá da verborreia professoral. O problema era quando se tinha que bater no Modas. A ameaça estava sempre presente: "lá fora já as comes".
Também eu hoje quis ser imburrente (esclareça-se que esta forma de falar é uma degenerescência da palavra embirrante) sobretudo por causa de umas amostras de alcunhas que alguns textos atrás alguns comentadores se entretiveram a enumerar. Aqui, de repente lhes dei trinta e uma. Para além de nenhuma ser repetida, não cobro cachet, nem vou chamar o modas para vos arrear na incompetência. Reduzo-vos a soldado fachina, varredor da parada. Sou ou não IMBURRENTE?

domingo, outubro 16, 2005

O Senhor Prior

A partir de hoje, a casa paroquial de Aldeia do Bispo tem, oficialmente, novo inquilino. Com jurisdição alargada a Aldeia de João Pires, Aranhas e Salvador.

Um novo homem. Um homem novo. Um homem grande. Um homem de coragem.

Votos do Baságueda: que apascente o rebanho comédado.

terça-feira, outubro 11, 2005

A NOSSA FALA XXXI - CABANIR

Se nalguma afirmação Sto Agostinho tinha razão era no que ao tempo diz respeito: " se não me perguntam o que é o tempo, eu sei o que é o tempo, mas se me perguntam o que é o tempo ,eu já não sei o que o tempo é." Afinal é assim mesmo. O que é, está sempre a deixar de ser e o que ainda está para ser, ainda não é, pelo que, o que é, é a efemeridade. Tudo é efémero. Por isso mesmo tudo é eterno. É neste sortilégio daquilo que o velho Heraclito deixou lapidarmente escrito no seu mais que famoso: «PANTA REI», (tudo flui) que se se busca o instante do que é, e que o não menos velho Parménides deixou para a posteridade :« o ser é e o não ser não é e é necessário que não seja». Platão tentou a conciliação destas antinomias aporéticas introduzindo a verdadeira noção do relativo: o que é , é, enquanto é o que é, e o que não é não é enquanto não é o que os outros são. F. Chatelêt, mais perto, sumarizou: em tudo o que muda algo permanece, e, em tudo o que permanece, algo se altera.O tempo é mesmo assim : está sempre a mudar e nós com ele, mas cada uma das nossas fotografias seguram o tempo reduzindo-o ao instante: este sou eu. Afinal certo seria: este era eu.Verdade é que tendo-me eu alterado, nunca deixei de ser eu: sempre o mesmo e a cada instante sempre diferente.
O mesmo se pode dizer da arte: ela é sempre contemporânea do seu criador que por longa vida que viva é sempre efémero, mas a sua perenidade eterniza o autor fazendo ecoar o seu nome por todo o sempre.
Pensáveis vós que o blogue era só bizantinice chocarreira? Tirai daí o sentido e ide já roendo esta como aperitivo, que mais se avizinham para vos acordar da letargia hibernal a que vos projectais. ARRIBA!
Talvez não seja falso asseverar que aqui há trinta anos atrás cerca de 40% da população portuguesa era maioritariamente agrícola. Bem me lembro eu das searas que ondulavam ao vento até à marvana e serra da raposa e tudo à volta da aldeia era semeado.Ranchos formavam-se e tomavam hectares de quinto, ceifando tudo à mão ou mesmo já com ceifeiras debulhadoras . A verdade é que se cultivava. Os beirões, e não é por acaso que a canção da Eugénia Lima os eternizou como rijos e morenos como o granito, se bem que pequenos, não se confinavam à sua região. Trabalhadores como eram , partiam em demanda do Sul e por lá andavam, na peneplanície alentejana ceifando e malhando o grão. Eram os RATINHOS.
Miguel Arcanjo, de todos conhecido por CAIXA,- vá-se lá a saber porquê -tinha acabado de casar com a Miquelina do Pão Finto. Era esta uma cachopa com tudo no sítio. Faltava-lhe talvez um pouco mais de altura, mas isso era consequência das cântaras de leite que todos os dias acarrejava à cabeça, do Prado até à Aldeia em cima de molídia bordada. Algum desse leite ainda eu bebi e foi ela que me ofereceu o leite para o arroz doce do meu casamento.Tal pequeno atamancamento era compensado por umas mamas a quererem espreita da blusa justa, redondinhas, de encher o olho e a mão - não a minha, é claro - e por um traseiro que se arredondava por debaixo de uma cintura quase de vespa. A carinha era uma maça camoesa: sempre coradinha, cheia ser ser lorpa.Um encanto! O Caixa teve olho!.
De ofertas de casamento tinham tido 10 notas de 100 mil réis, 21 de 50 e uma boa mão cheia das de cinte escudos. Tudo somado pouco mais de dez contos. Coisa nenhuma a bem dizer.Mas se havia gente a quem o trabalho não metia medo era ao Caixa e à Miquelina.Lá conseguiram dois dias de descanso por mor de se aquecerem um ao outro e se avezarem a dormir juntos na mesma cama.Mas...« Este encanto de alma ledo e cego» nunca « a fortuna deixa durar muito».
A Miquelina estava habituada às panelas de ferro e às trempes. O Caixa também. Só que o Caixa disse à Miquelina: amanhã à noite, aí por essas onze, vamos estar atentos.Quando alguém tossir vamos abrir a porta que te comprei uma prenda.O homem vem cá a trazê-la de noite por causa das coscuvilhices.» Miquelina bem quis tirar os nabos da púcara, mas Caixa fechou-se. à hora tratada alguém tosse, Caixa até tinha oleado a fechadura por via do barulho da chave, e aí entramos como sombras eu e o meu pai: eu com a bilha do gás ao ombro e meu pai com um fogão Leão de três bocas, forno e prateleira para a Miquelina. As explicações de funcionamento foram rápidas e não tardou, eu e meu pai pusemo-nos a CABANIR. Ainda retenho os olhos incrédulos e o esgar de boca de espantada da Miquelina. O Caixa traçava-a pela cintura e ela: está quieto, tu não vês as pessoas? O que é que hão-de dizer? O Caixa mais apertou. Tenho a firme certeza que nessa noite houve fogo na cama de ferro de Caixa e Miquelina.
O que é bom dura pouco e, naturalmente , forçoso era que um e outro voltassem ao trabalho que quando se tira e não se mete depressa se acaba. Assim, muito a custo, Caixa propõe à Miquelina: eh! cachopa eu vou até lá abaixo ao alentejo, faço um mês de ceifa de ajuste e arranjo por lá uns trocos . De dia, ceifo à linha e, à noite, corto-lhes o cabelo ( o Caixa tinha jeito para a arte da tonsura) . Ganho duas vezes. Miquelina, a princípio, não queria, mas lá aceitou. O fogão adiantou as primeiras refeições do Caixa, Miquelina foi-se à casa da mãe e pediu-lhe uns chouriços, um bom naco de presunto e uma valente tora de toucinho, trouxe ainda três pães caseiros, uma bolsa de feijão grande seco, uma lata de feijão malhinho e umas boas mão-cheias de grão. Foi-se ao Trem e comprou uma valente peixota de bacalhau, encheu-lhe a infusa de azeite e botou-lhe umas pedras de sal num trapo para as primeiras impressões. Embrulhou-lhe as trempes numa saca se sarapilheira e recomendou-lhe cuidado com a sertã de esmalte . Manhã cedo meteram tudo numa espécie de alforges e aí vai o Caixa ver dos alentejanos.
Foi limpinho: a aparência saudável do Caixa, associada à sua característica humildade, de imediato lhe possibilitaram trabalho. À noite faltava-lhe o calor companheiro da Miquelina, mas a lembrança dela, à luz de uma pinha rabiscou umas linhas apaixonadas que me dispenso de reproduzir e pediu ao manageiro que lha metesse no correio.
Quando o Cartas deixou a carta por debaixo da porta da Miquelina não sabia que tinha despoletado a mais feroz paixão de mulher por homem, ultrapassando mesmo a de Inês por Pedro. Quando Miquelina vê aquele envelope e reconhece a letra do Caixa, com a pressa até rasgou o papel. Leu e releu. Chorou. Nem jantou. Procurou e não achou a caneta de aparo para responder. Dormiu mal. Encarregou a vizinha de lhe mercar uma carta e uma caneta nova. Esqueceu-se mesmo do vivo. Quando ouviu o galo é que lhe veio à mente que as galinhas e o porco não tinham ceado.
Durante o dia de quintos foi escrevendo a carta na cabeça. Quando chegou a casa foi só traduzir em letra as suas amarguras e desejos. Acabava assim: "Olha Miguel! ou tu te pões a cabanir daí para fora depressa ou eu não respondo por mim. Dou-me a outro". Caixa não queria acreditar no que lia. Respondeu na volta do correio. Que esperasse mais um pouco, que o dinheiro daria para comprarem um aparador para a loiça, uma quadro da última ceia e até para meterem a luz eléctrica no princípio do Outono. Miquelina leu, via a razoabilidade do Caixa, mas a natureza tem muita força e logo exige: "Se da próxima vez me aparecer uma carta em vez de ti, não estranhes o que te pode aparecer na testa".
Com filha da puta! berrou o Caixa. Foi-se ao manageiro, pediu as contas e ainda nessa noite pôs-se a cabanir para apanhar o combóio. Chegou a casa da sogra, que morava mais perto da estação, começava o dia a clarear. "Karraio! atão já voltaste?" "A culpa foi da Miquelina" -"O quê, está doente?" - "Não" - "São cá umas coisas".
Olhe lá, empreste-me aí o seu burro que ir com esta tralha às costas trava-me a marcha.
Caixa carregou o burro e pôs-se a caminho. O burro nunca tinha dado tão depressa à nalga. Caixa meteu-lhe uma silva debaixo da albarda e o pobre do Ruço quase voava e o Caixa atrás dele.
Já perto de casa reparou que o burro tinha o bastão esticado e que mostrava os dentes arreganhando o lábio superior: " ouve lá ó meu filho de puta: a carta era pra ti ou pra mim"?
Apanhou Miquelina ainda ao fogão a meter o caldo na merendeira para o almoço nos quintos.
Quando irrompe pela casa dentro colaram-se. Foi um cabo dos trabalhos para se separarem.
Miquelina mandou recado que não ia ao quinto e Caixa foi-se a ela como gato a bofe.
O amor é mesmo um animal de duas costas.
Percebestes agora porque é que eu vos deu cabo da mona com o tempo do Sto Agostinho!?
O tempo é longo ou curto conforme se goste ou não do que se faz e com quem se faz. O Santo é que nunca conheceu uma Miquelina!

A NOSSA FALA XXX - TCHOUTCHO

Antonho Batcharel foi parido no local do mesmo nome, com a ajuda da avó materna, a velha Emília Passarona, numa manhã solarenga de Abril, o primeiro de 5. Os primeiros sapatos calçou-os no dia em que fez 6 anos, as primeiras meias que enfiou foram as que o Menino Jesus lhe deixou na chaminé no Natal desse ano, e experimentou as primeiras cuecas já com 10. Passava os invernos com ranho constante no nariz e quando a mãe lhe ralhava "rais trinta ta partam Antonho, assoa-te mê bácoro", ele lá removia a pasta com a cota da mão que a seguir limpava ao cu das calças. Comia quando calhava. Quando lhe dava a fome, ia-se à panela de ferro que sempre estava junto ao lume e enchia o bandulho de couves, batatas e feijão. A partir dos 7 anos, bastas vezes escolheu sopinhas de cavalo cansado para o pequeno almoço. Por lá, variava entre a fruta da época que colectava directamente das árvores que encontrava nas andanças do pastoreio, e na sacola levava sempre um naco de pão rijo, queijo pedra, toucinho rançoso e azeitonas, raras vezes chouriça do ano anterior guardada no azeite. Nunca se sentou em carteira de escola, nunca pegou em aparo, nunca esfregou a pedra com cuspo, nunca aprendeu nem letras nem números. Até aos 15 anos, calcorreou a atalaia, o frade, a portela, a pedreira, a raivosa, o ferrador, atrás de 4 dúzias de cabritas . Ficou mudo e com cara de espantado o senhor alto e bem vestido que um dia se apeou dum grande carro preto e barulhento e lhe perguntou com ar sorridente:
- Ó rapazinho! Diz-me lá, então quantas cabras guardas tu?
- Ê no sei contar mê senhor – lamentou-se Antonho.
- Não sabes contar? Então como é que vês se te falta alguma cabra?
- Atão…ê conheço-as…
Chamava todos os animais pelo seu nome, e eles acudiam. A andorinha porque era preta com uma lista branca na nuca, a reboluda porque quando nasceu deu logo meia volta no chão, a peidada porque a mãe dava muitos dos implícitos, a aluada porque nasceu na lua cheia, o santinho porque fazia uns ruídos parecidos com espirros, o marradinhas porque desde cedo o habituou a dar-lhe marradas nas mãos, o tchoutchinho porque tinha uns olhos mortiços e parecia que andava sempre cansado, o intezédo porque desde cedo mostrou que ele é que havia de ser o bode mor, o barbicha, a malhada, a jinja, a peluda, a preta, a violeta, a estrela, a vitória, a esperta, a felosa. Quase todos os animais vinham comer-lhe à mão e as cabras deixavam que ele lhes chupasse nas tetas quando elas tinham amojo e ele fome. Era um menino feliz, o Antonho.
Todos os domingos ia à missa à aldeia, regressando ao fim da tarde carregado com as compras para toda a semana. Aos dezasseis anos o pai meteu-o a aprendiz de latoeiro na aldeia, mas deu-se mal porque o velho Tzé Latas o obrigava a estar todo o dia sentado a bater lata e a pôr pingos de estanho. Voltou para o batcharel e para as suas cabrinhas.
Todo o seu mundo se situava geograficamente entre a aldeia e o batcharel. Do lado de lá e do lado de cá, o desconhecido e admirável mundo novo. Tirando as 3 ou 4 vezes que foi à vila e às festas das Aranhas, saiu pela primeira vez da aldeia para ir às sortes a Coimbra, onde aproveitou para se fazer homem num quarto escuro e feio na rua direita que era torta como um changoto mal azado. Ficou apurado o mancebo e no ano seguinte apresentava-se no quartel de Elvas numa manhã de Outono, fria e chuvosa.

Antonho do batcharel não gostava da tropa, nem entendia porque o obrigavam a andar toda a manhã e toda a tarde a bater com as botas no alcatrão da parada. Vá lá! Ao menos as botas eram boas. A rigidez e a disciplina militar não jogavam com ele, habituado aos espaços abertos e arejados do batcharel, às vistas largas da atalaia, à liberdade de movimentos com as suas cabras. Por isso andava sempre muito THOUTCHO, isolava-se a pensar, nostálgico, no seu primitivo mundo, nos pais, nas suas cabrinhas, no burro pardal, na burra cotovia, nos cães piloto, bóbi e boneca, até nos irmãos que tanto teve de aturar e ajudar a criar. Um dia, estavam cumpridos dois meses de recruta, amuou. Não falou com ninguém durante uma semana inteirinha. Quando saiu do retiro decidiu dar inculcas. Pediu ao camarada d’armas Sabarigo, de alcunha o “gaspacho”, um autêntico torgalho que a todas as refeições gabava o gaspacho da avó de Barrancos, para escrever:
" Meus queridos pais e irmãos, estimo que estejam de boa saúde que eu cá vou como Deus quer. Então como está a burranca, já está melhor da pata? E a cocó já tirou os pitos? Meu pai, não se esqueça de dar o remédio à andorinha, porque ela está prenha. O porco era melhor matarmos no ano novo que eu não posso lá ir antes. Isto aqui na tropa não é bom porque ninguém trabalha. E o pior é fazerem-nos estar à torreira do sol e à chuva, só por estarmos. Dão-nos de comer às horas, mas a comida não presta. Quem me cá dera o caldo de grão e a molareja que a minha mãe faz. Não tenho mais nada para dizer. Saudades do vosso filho.”
Fechado e selado o envelope:
- Vá! Agora vais a meter a carta no marco do correio ali ao pé da porta d’armas.
No momento, vinha a entrar o Musgueira, seu vizinho na camarata, que o alertou:
- Então não dizes para onde a carta vai? Tens de falar alto para o marco saber para que terra é que tu queres mandar a carta.
- Aldeia do Bispo – gritou ele junto à abertura.
Uma das únicas vezes que se ouviu Antonho a rir foi quando o Musgueira, no escuro, lhe perguntou:
- Olha lá ó bimbo, alguma vez viste um peido luminoso?
O Musgueira estava deitado de costas, tirou as ceroulas, levantou as pernas para o ar, apichou um fósforo e chegou-o ao ânus, ao mesmo tempo que largava um ruidoso e prolongado flátulo. Antonho observou estupefacto a chama azulada que soprou das tripas do camarada.
Na ordem unida sentia muitas dificuldades em bater certo o pé e por causa dessa inabilidade, mandavam-no “encher” todos os dias. Finda a recruta, mal teve tempo de ir a casa despedir-se do seu mundo, mandado embarcar para a Guiné para, disseram-lhe aos berros, ir defender o nosso glorioso Portugal e matar os cabrões dos turras. Não conseguiu evitar uma lágrima quando deu a curva no caminho e deixou de ver a família toda que ficou a acenar. Uma só lágrima, contida, só uma, porque Antonho não podia saber que nunca mais voltaria ao Batcharel: na longínqua Guiné, uma mina terreste havia de o transformar em herói anónimo e inglório.

sexta-feira, setembro 30, 2005

A NOSSA FALA XXIX - INCULCAS

Quando ouvi, pela primeira vez, o BILHETE POSTAL dos Rio Grande, com letra do João Monge, avivei a minha memória e, se houvesse discos pedidos naquela estação de rádio, teria telefonado para a repetirem. Quantos eu escrevi....quantos!
Normalmente era aos Domingos, depois de missa, enquanto almoçava, passava uma e dizia:"Eh! Rosa, precura lá ao tê cachopo, se me pode escrever umas regras prá mnha filha Zabel que stá em Lesboa". Era ali mesmo no vão da escada. A Ti Purificação metia a mão no bolso falso da saia cimeira e de lá tirava a última carta, que eu já lhe lera , por via de ver a direcção da Zabel. Relíamos a carta e começava a ditar o que queria que constasse:«Mnha crida filha, muito estimo que ao seres recebora desta te encontres de boa saúde a mais o Chico e os netinhos. Nós cá vamos andando como Deus deixa. Sempre te quero dzer que o nosso porquinho já está bem cevado e que pensamos matar lá perto do Natal. As couves estão lindas e cá andamos na apanha da azeitona. O azeite há-de chegar pra todos. O teu pai já anda a beber do vinho novo e diz que é bom. O que é preciso é que quando cá tornares vás à vila por mor do nosso chão da quelha funda que dizem que não está lá registedo.Fui lá pra pagar a décima e não me souberam dar inculcas dele.Que não existia o nosso chão. Era só o que mais faltava. Bem sabes que eu não sei uma letra e o teu pai ainda menos.
(Num àparte queriam sempre que eu dissesse quem estava a escrever a carta, já que antigamente o escrivão mor da aldeia era o ti Emídio, figura de nariz rubicundo, cor de borra de vinho, sempre encarnado, os dedos amarelos do mata-ratos e da onça holandeza, sempre de cigarrinho ao canto da boca e que , como era ele que antes do João Constâncio distribuia as cartas pelo povo - o carteiro é aquisição tardia e de luxo - sabia sempre quem devia resposta a carta recebida. Tinha ele uma livreta, como ainda hoje tem o Zé Lopes quando aponta a malta para as excursões, onde registava tudo. Escrevia lindamente: uma caligrafia, sempre com caneta de aparo, que fazia inveja até à da ti Ermelinda da lameira, que sempre chamou estampilha aos selos de correio, e que era tida como a que melhor desenhava a letra. .. Engraçado.
O ti Emídio, desde que não estivesse borracho - o que era raro - mandava hóstias na escrita! Lembro-me que o Furdas, duma vez se sai com um grito meio espanhol ao ver aquela tinta sobre o papel: cafones!!!
Sabia a vida toda da aldeia este ti Emídio que morava ali no bairro da lameira, paredes meias com o Zé Maroco, sócio cortador de cabelo e raspador de barbas, aos Sábados, do inefável Do-do-ming-gos Pa-pata- ta- nisca. Tinha em casa um arcaz enorme onde metia a semente do poia pelas barbas e cabelos do ano inteiro. O Domingos gostava mais de dinheiro: os filhos eram bastantes e a tasca do zé julho e do ti zé rolo era mesmo ali a dois passos da barbearia. Às vezes esquecia-se e o sabão secava na cara do cliente. Nada que não se resolvesse, com mais uma esfregadela da fronha com o pincel.
Voltemos ainda ao ti Emídio: ia acima do cemitério e perguntava ao Refe: já tem inculcas do seu Mário? e o Refe: anda cá a matar a bicheza! três branquinhos como a carga do moleiro e se as inculcas ainda não tivessem chegado o Refe dizia ao velho Emídio: toma lá 5 mil réis compras o papel e o sobrescrito e já sabes o que dizer a esse malandro. Se sobrar dinheiro o fatela tem lá a gaveta! Era logo: tasca do fatela, mais um cagão dos grandes, uma cigarrada e o princípio do delirium tremens. Ia ao Arplano, ali no caminho da vila e era o mesmo: mais trocos na gaveta do fatela! mais branco no fígado do Emídio. Mas dava sempre conta do recado. Voltava sempre às origens e lá saía: olhe que eu já escrevi a exigir que eles dêem inculcas do que se passa! Bem hajas, diziam invariavelmente.
Ia mesmo ao campo: duma vez foi ao Chamiço, lá para os coitos da portela, bem para lá do batcharel, bem passado o zé ferrenho e encontra-o a caminho: onde vais, ó chamiço ?- Inda bem co vejo ó snhor joão: olhe lá, os meninos quando nascem já trazem as unhas grandes? - Alguns já, responde o velho Emídio. - Oia, o meu! brada o chamiço: traz as unhas como um gavião. Ia agora a registá-lo ao Tó Robalo. E o velho Emídio: volta pra trás que eu trato disso. Atão vamos a beber um copo! Emídio estava sempre disponível . - Atão e da tua cachopa tens tido novas? -Olhe que não: aquela velhaca nunca mais me deu inculcas.
Não longe do coito do chamiço, mais perto do tiago, servia de criado o grande zé luís barata. Coitado! Tinha fome mas a Aguércia não lhe dava comida bastante. Vai daí, um domingo, quando a menina ia à missa, começa à pedrada a ela para o caminho. Menina Aguércia, clama por céu e terra e volta pra trás. Barata andava por ali: atão não vai à missa? -O Zéi tu sabes lá: choviam pedras do céu! - é-lhe bem feita! - Rais ta parta. - É o que acontece a quem é avarento. Eu aposto que se me der um bocado de queijo e uma fatia de pão, o diabo já não a atenta! - Tu achas que é o diabo, zéi! - É poi! A velha Carapita até me deu inculcas dele, que ele anda por aqui a tentar quem vai à missa e não pratica uma boa obra antes. Aquelas que fizerem o bem levam o anjo da guarda e pronto, o diabo já não as atenta! Fosse como fosse a Menina lá foi buscar a chave, abriub a porta da rede mosqueira e deu o pão e o queijo ao Barata. «Vai a ver que já passa bem a quelha! Mas tem que fazer isso todos os Domingos. Quando eu tiver inculcas que ele abalou aqui das portelas logo lhe digo,! Olhe que a Carapita é má filha da puta e conversa com ele . Até diz que está casada com o diabo!» E a menina: «O Balão parece o diabo, parece!»
Assim Barata foi comendo e Aguércia passando.
Não se esqueçam de dar inculcas!

segunda-feira, setembro 26, 2005

A NOSSA FALA XXVIII - BARRONDA

Quando me juntei ao tribunal, naquela tarde de fim de Verão, o debate em curso andava na política e nas eleições autárquicas que aí vêm. Por regra, vou àquela “sala de audiências” mais para ouvir do que para falar, por isso, apesar de chamado a depor por diversas vezes, mantive-me cautelosamente neutro. De qualquer modo, o tribunal assume invariavelmente a sua vocação para a acusação e eu também não tinha argumentos de defesa. O debate já estava a amornar quando se chega Ti Fcisco Choças.

- Santas tardes a todos qant’stão. Isto é que está uma cousa, já aí está o S. Meguel e não há meios de chover.

Vendo aqui uma oportunidade para introduzir tema mais profícuo, lancei:

- Olhe, já que fala nisso, sabendens vós o que é que têm em comum os dragões, o peso das almas e a agricultura?

Ti Manel Fretas desconfiou que havia marosca na pergunta, vai daí, respondeu em conformidade:

- É o caralho que ta foda.

Ti Eugénio, 95 outonos, o homem mais velho da aldeia, mais 6 que o outro, não hesitou a impôr-se:

- Tento na língua ó rapazinho. Atão mas qu’arrai!

Apressei-me a esclarecer:

- É o S. Miguel, porque matou um dragão, é o que pesa as almas quando chegam ao céu e marca o fim do ano agrícola.

Não se podia esperar que algum dos arguentes presentes no auditório fosse versado em dragões. Em boa verdade, nem eu era. Igualmente, a problemática do peso das almas também não era propriamente um tema sobre o qual pudessem ter qualquer opinião. Confesso: nem eu. Daí que tenha sentido um certo alívio por ninguém ter pegado em nenhum desses temas. Dei o objectivo como alcançado quando Ti Fcisco declara:

- É o fim da agricultura é, atão se no chove…

- Mas isso vai a mudar ó rapazes, vem aí a lua do S. Meguel e vai a cair aguinha que Deus a há-de mandar – titubeou na sua gaguez Ti Domingos Patanisca. Fez-se entender perfeitamente quando continuou:

- Essa cousa da lua mandar na agricultura é qê nunca entendi comédado. Ó Inserme, tu qu’és uma pessoa com estudos, explica lá a estes burros que somos nós como rai a lua manda nas plantas.

- Ó diabo! Agora que você me chapou ó Ti Domingos. A influência da lua na agrícola! Atão vamos lá a ver se me safo. Bom, eu só conheço uma explicação, mas se calhar há outras ideias, portanto o que eu vou a dizer pode não ser bem bem a coisa como ela é. Isso tem a ver com o efeito da luz nas plantas. As plantas agradecem duas coisas: a água e a luz, se falha uma, elas não crescem. É ou não é?

- Ai isso, poi claro, sem aguinha, nada feito.

- Exactamente! Aguinha, mas também luz. Ora, donde é que vem a luz? Do sol, durante o dia, da lua durante a noite. Certo? Que elas agradecem o solinho, isso todos nós já sabemos, não é verdade? É que é essa luz que permite que as plantas façam uma coisa que se chama fotossíntese...

- Mau! Atão agora as plantas também tiram fotografias? – saltou Ti Julho Aspirante.

- Claro que não, Ti Julho, mas deixe lá isso da fotossíntese, o que interessa é que as plantas precisam de luz durante o dia. Atão e de noite? Põem-se a dormir? Ná, as plantas não dormem, portanto, também agradecem a luz durante a noite, porque as ajuda a não parar de crescer. Ora, donde é que vem a luz de noite? Principalmente da lua, é ou não é? Atão, se assim for, conforme o quarto da lua, as plantinhas desenvolvem-se mais depressa ou mais devagar. Por exemplo, da lua nova à lua cheia, ou seja, no crescente, dizem os entendidos, devem-se semear as plantas que nos interessa que desenvolvam os órgãos reprodutores...

- Qu'arraio de porra é essa? - interrompeu, e bem, Ti Augusto Estanqueiro.

- Olhe, Ti Augusto, faça de conta que é como se as plantas estivessem BARRONDAS, com vontade de criarem muitas sementes para se multiplicarem, como a fava, a ervilha, o milho ou as flores. Repare que cada grão de fava, de ervilha ou de milho é uma semente, não é? E quanto mais sementes elas tiverem mai contentes ficamos nós, mas elas também, porque dão melhor continuidade à "raça", faz de conta. Está a ver Ti Augusto?

- Já intindi.

- Mas se nos interessar mais que se desenvolva a parte vegetativa, como as folhas ou as raízes, então o quarto minguante é melhor. Olhe, por exemplo as couves, as cenouras ou as cebolas devem ser semeadas no quarto minguante. Quero eu dizer com isto que, nas primeiras fases do desenvolvimento das plantas, elas são muito sensíveis à luz da lua, precisam dela ou para crescerem ou para se reproduzirem, e portanto, quando se diz que a lua manda na agricultura, isso pode ter a ver com a influência que a luz da lua tem nesse desenvolvimento das plantas.

- Hum! É capaz que seja, é poi!

O debate prosseguiu com depoimentos vários sobre as plantas que se dão melhor com o minguante ou com o crescente, sobre a vinha e o melhor quarto para a poda e a inevitável história que foi um burro que ensinou os homens a podar as videiras. Eu só me metia para tentar reafirmar a teoria. Quando me levantei, satisfeito, para abandonar a barra, Ti Domingos Patanisca gaguejou ainda:

- Já vi que tu sabes, rapaz, no és burro nanhum, digo-to eu, mas tamém no quero que te vás imbora sem aprinderes nada aqui co’s velhos. Falaste aí em burros e barronda e o catano... Atão tu sabes ver cand’é q’ma burra está BARRONDA?

- Eu? Ó Ti Domingos, sei lá eu ver uma coisa dessas…

- Atão! S’os burros sabem, e são burros…