A infância de antigamente pouco tem a ver com a de hoje. Desde logo porque, em regra, as famílias eram numerosas e depois porque as circunstâncias nada tinham a ver com as de hoje. Garotos e garotas, se queriam brincar, tinham que imaginar e construir os seus próprios brinquedos. Essa criatividade e destreza são impossíveis de verificar nos tempos que correm: à uma os pais digladiam-se entre si para ver quem o há-de ir levar ou buscar à creche/infantário/ama. A bem dizer o que as crianças têm são tempos ocupados e não tempos livres. Ou seja: como só se é criança uma vez, esta malta nova de hoje nunca chega a ser criança e nunca deixa de ser criança. Os pais chamam-lhe sempre garotos/as, são controlados no espaço e no tempo (refiro-me a gente até por volta dos 14/15), mantêm-se sob dependência paternal/maternal cada vez até mais tarde, não podem brincar na rua, são assoberbados de tarefas mais que muitas: natação, música, judo, ginástica, música ritmada,...têm que se portar como adultos à mesa e, paradoxalmente, cada vez mais tarde lhes é concedida e reconhecida autonomia...
Não é tarefa do basa escalpelizar o tema. Volvamos, pois, ao xáxaro e afins.
Qual o garoto que não jogou à bilharda, ao pião, ao esconder e achar (escondidas), ao burro, à raioula, ao fito, à cavaca, ao pinoco, ao espeta, ao arco, à marca, ao fósforo, ao berlinde, ao eixo rebaldeixo, ... quem não rolou num carrinho de esferas, não fez um arco de mimosa e uma flecha com um alfinete na ponta... Teria mesmo havido algum garoto que não tivesse construído um carrinho de empurre com uma cana rachada, um pequeno eixo de esteva e uma roda de cortiça, um moinho ou vira vento feito de cana de embude seca, folhas de caderno usado e carapetos a servir de agrafos? Aposto que não houve. Eu fiz disto tudo e não foi sozinho...
E as garotas? Também elas brincavam. Raramente os dois sexos se juntavam no recreio da escola, mas apesar do muro divisório, fácil era observá-las a jogar ao descanso (macaca) à roda com um lenço, à rolha, ao ringue, à apanhada, à (t)china ou (t)chá(t)charo,... Era neste jogo que eu mais as admirava. As tchinas eram cinco pedrinhas (seixos) bem polidas, apanhadas em leito de ribeira, às vezes em buracos de calhaus rolados, e depois exigia-se toda uma técnica manual quer com a palma quer com a cota da mão. Era deslumbrante assistir a tanta perícia com uma rapidez e segurança incríveis. Jogavam entre si, à vez, a ver quem conseguia cumprir todos os passos de uma jogada. Em regra, acabava sempre com gritos estridentes por parte da vencedora, Uma beleza, era o que era.
E hoje, a que jogam os nossos meninas e meninas? Jogam aos telemóveis, aos tablets, aos androids, aos ipads,... Tudo jogos parados, tudo jogos individuais, tudo electrónico, tudo previsto, tudo mecanizado, tudo controlado, tudo pontuado.... Tempos, direis vós. É verdade. Do mal o menos: sempre se recuperou e aprimorou a função do polegar, esse dedo quase esquecido e que tão relevante papel desempenhou na evolução da humanidade.
Isabel Rela era uma das maiores artistas no jogo da tchina. Era um encanto ver aquela garota com os tchátcharos na mão. Nem sei mesmo como conseguia tamanha destreza, sobretudo quando aventava as cinco pedrinhas ao ar e as aparava, todas juntas na cota da mão. Como que fazia uma concavidade onde as pedrinhas, qual animal amestrado caíam juntinhas, virava num instante da cota para a palma e lá estavam as pedrinhas prontas para novo jogo. Não me lembro de a ter visto perder. Tinha uma língua como um braço. A ela se aplicava aquela máxima do velho Comandante do Inferno:"«às mulheres ainda que lhe cortem metade da língua, falam sempre o dobro do que devem». Não sendo propriamente uma regadora, Rela sabia dar a volta a uma qualquer história e pôr-lhe um cunho pessoal que fazia com que mais ainda toda a gente se calasse quando ela falava. Sim, porque tinha uma voz estridente, sonora e agressiva, que se sobrepunha a qualquer outra, assertiva no seu todo, Isabel ficava sempre por cima quando se dispunha a ser ela o alvo das atenções. A mãe, ti Conceição Rela distinguia-se pelo nariz que era qualquer coisa de descomunal. Viviam nas Portelas mas, aos Domingos e mesmo durante a semana vinham amiúde ao povo. Eram cinco irmãos e como todos, ao tempo, começaram a esgalhar bem cedo. Isabel, garota ainda, foi contratada por Tonho Paravós para o plantio de sobreiros na zona do Rosmaninhal. Trabalho duro, de sol a sol, sacola numa mão e árvore na outra, tinham que abrir um covacho de cerca de 30 cm de fundura enterrar o sobro, abrir uma caldeirinha para o tractor com água que vinha atrás os poder regar e a água não esbarrondar colina abaixo. Outros tempos em que o jogo não tinha electrónica!
Contava ela que um dia que ia na camioneta da carreira que apanhara no transbordo na ponte de S. Gens, sendo motorista da Martins Évora, empresa de camionagem concessionária dos transportes públicos, àquele tempo, para aquela zona raiana, sendo motorista dizia o ultra famoso Sr Ernesto. Era o único motorista que era tratado por SENHOR. Todos os outros eram ti João, ti Fernando, ti Zé Filipe,... O SENHOR Ernesto era da vila, sempre impecável no trajar, casaco e calça vincados, gravata sempre justa, camisa engomada, sapato reluzente. O cabelo, encaracolado, fazia inveja a artista de Hollywood. Conduzia uma GUY, a mais antiga da empresa, ainda com motor saído, cuja dianteira ia para aí uns três metros à frente do local onde Ernesto se sentava a conduzir. Tinha uma bitola ao centro e dois balizadores nas laterais. Ernesto nunca fazia marcha atrás. Só sabia conduzir para a frente. A velocidade máxima devia rondar os vinte quilómetros por hora, ao baixo e desde que a estrada fosse alcatroada, coisa que não era frequente naquele tempo e para aquelas bandas. Ernesto danava-se por mor do pó que lhe assentava na indumentária que ele, mal chegava sacudia e escovava ao pormenor.
Ia então Isabel rela com esta inesquecível figura da condução a caminho do Rosmaninhal para o plantio do sobreiro. Naquele dia ia mesmo no banco da frente logo atrás do banco da fiscalização, ocupado pelo também ultra famoso cobrador João Tarzan, que ali se sentara depois de ter cortado os bilhetes a todos os passageiros. Ernesto era de poucas falas, cão de vila, vaidoso quanto bastasse, dava pouca cúnfia, mas naquele dia estava para elas e vira-se para Tarzan: «oh!João, hoje vamos a andar bem, não vamos?» ( Rela a contar isto já quase não se tinha de tanto rir...) e João, malino como era, com a escola toda: " Vamos, pois, senhor Ernesto, olhe aí um macho atrelado a uma carroça, a ultrapassar a camioneta!"...
Era o que valia para matar o tempo àquela velocidade.
Boas Férias.
4 comentários:
Como sempre uma narrativa muito bem disposta e, simultaneamente, muito pedagógica, educativa mesmo.
Boas lembranças. Bons e quase esquecidos jogos, muito instrutivos, que facilitavam a aprendizagem, porque era aprender a aprender, fazendo. Com eles se desenvolvia a motricidade fina e a arte da construção e equilíbrio, para além da lateralidade.
Adorei, como sempre estas grandes lições que retratam a nossa gente.
Também gostei, mormente a falta da parte inicial, aquela onde o Filosofo amigo do mundo, vai buscar a substancia! Eu leio 2 ou 3 livros quando assim é! Sempre fui preguiçoso, com essa forma,ler-te é um luxo secreto, que eu tenho! Mas assim continua a ser muito bom. Já não sei é nada sobre lateralidade, mas gostava de aprender, bem como sobre motricidade fina e penso que, equilíbrio a construir!
BJS...
I Ó Luis! dureza assim cá, no blog! Doi. O que? doi muito, sábe a peixe de um dia pro outro! sabe a ter que comer pra crescer.. sabe ao doce amargo do meu fADO!|esse fado da verdade do pacheco, de que quem nasce pra Lagarticha, nunca chega a jacaré! Ou a minha verdade, de que ele é um grandre pavão!
Como é que eu posso mostrar o meu sorriso, digo gARGALLHADA.. Aqui no Blog!?
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